terça-feira, 10 de agosto de 2021

O (não) crime do aborto? Michael França, FSP

 Aqueles brasileiros que hoje veneram os Estados Unidos possivelmente não se sentiriam seguros de morar lá no início da década de 1990. O país era marcado pela violência, e os noticiários diários dos jornais refletiam a sensação de medo da sociedade americana.

As projeções para a década seguinte não eram animadoras. Enquanto a taxa de homicídios realizados por adolescentes apresentava uma progressiva escalada, o presidente Clinton argumentava que seria necessário reverter o crescimento do crime juvenil para evitar mergulhar o país no caos (“Freaknomics”, 2005).

Porém, algo inesperado aconteceu: os índices de criminalidade diminuíram sistematicamente. Aqueles especialistas que haviam feito previsões catastróficas logo mudaram o discurso. Diversas explicações surgiram e, dentre elas, as principais razões apontadas para a queda da criminalidade foram o maior controle de armas, a implementação de novas estratégias pela polícia, o aumento do encarceramento e o crescimento econômico.

Entretanto, uma explicação ficou longe do debate público da época. Segundo um estudo realizado pelos renomados economistas John Donohue e Steve Levitt, a legalização do aborto pode ter sido o principal fator para essa queda.

A explicação teórica é relativamente simples. A Suprema Corte descriminalizou o aborto em 1973. Com isso, milhares de crianças deixaram de nascer e, 20 anos depois, a quantidade de adolescentes, que são mais propensos a atividade criminal, diminuiu. Pesquisas realizadas na Europa já haviam mostrado que existe uma relação entre aborto e criminalidade.

Isso ocorre por diversos motivos. Negar o procedimento de interrupção da gravidez para uma mulher pode gerar um sentimento de ressentimento em relação ao filho indesejado. Desse modo, a criança tende a viver em um lar não saudável. Por meio de análise econométrica, mesmo com a utilização de controles para características socioeconômicas, essas crianças têm mais chances de cometer crimes quando crescem.

As mulheres solteiras, adolescentes e desfavorecidas têm maior probabilidade de demandar o procedimento. Estudos apontam que crianças geradas por essas mulheres apresentam maiores riscos de se envolver em uma atividade criminal na adolescência.

Adicionalmente, a capacidade dos pais de oferecer um ambiente acolhedor para a criança pode variar ao longo do tempo e tende a ser afetada pela idade, educação, renda, presença do pai e abuso de drogas ou álcool. Nesse âmbito, o aborto representa uma das formas usadas no planejamento da gravidez.

Donohue e Levitt exploraram a variação no tempo em que a legalização foi realizada nos estados americanos e estimaram que o aborto tivesse sido responsável pela queda de até 50% na criminalidade (“The impact of legalized abortion on crime”, 2001).

Além disso, eles concluíram o artigo, publicado em 2001, com uma previsão de que o aborto legalizado seria responsável por declínios de 1% ao ano no crime nas duas décadas seguintes. Em 2020, os pesquisadores incorporaram 17 anos de dados na análise e publicaram um novo trabalho apresentando evidências de que a previsão apresentou suporte empírico (“The impact of legalized abortion on crime over the last two decades”, 2020).

Nesse contexto, é impactante descobrir que existem fortes evidências sugerindo que o aborto tenha sido o principal responsável por uma das maiores quedas da criminalidade da história americana. Entretanto, mais impactante ainda é saber que esse tipo de evidência e mecanismos para melhorar o planejamento familiar não são discutidos com o cuidado que merece no debate público brasileiro.

O texto é uma homenagem à música “What’s Up?”, de Linda Perry, interpretada por 4 Non Blondes. Por fim, o leitor atento deve ter percebido que o colunista não tem intenção de fazer nenhum juízo de valor em relação ao aborto.


Alvaro Costa e Silva Vivemos dentro do golpe, FSP

 O presidente, nós já sabemos: é o pior da história do Brasil. Na votação do voto impresso, vamos descobrir se o Congresso é tão desprezível quanto Bolsonaro.

É cansativo elencar as mazelas pelas quais o regime é diretamente responsável: condução criminosa do combate à pandemia, destruição da educação, ciência, cultura e meio ambiente; suspeitas de corrupção nos ministérios, principalmente no da Saúde; apagão energético batendo à porta; 14,8 milhões de desempregados, sem contar os subempregados; carestia; famílias inteiras despejadas, vivendo na rua, com fome. Além do golpe em curso. Se é que já não vivemos dentro dele, com tanques e aeronaves desfilando em Brasília, e continuamos a maquiar a realidade chamando-a de crise institucional.

A discussão da bandeira bolsonarista contra a urna eletrônica é só um dos sintomas da doença insidiosa que se instalou na sociedade brasileira. Um debate artificial criado para manter a base de apoiadores motivada e que só existe em determinadas bolhas das redes sociais, impulsionado por mentiras e longe das aspirações do país, e que mesmo assim o presidente da Câmara resolveu levar ao plenário em troca da grana das emendas e do fundão eleitoral e, claro, de mais cargos.

Com ares de estadista, Arthur Lira escreveu no Twitter que passou o fim de semana lendo tratados políticos de Aristóteles, Locke e Montesquieu, para melhor entender “o sistema de freios e contrapesos que formam a separação entre os Poderes”. Mas não deu um pio sobre os ataques e xingamentos de Bolsonaro —entre os quais um sonoro “filho da puta” capaz de enrubescer a torcida do Flamengo na antiga geral— a ministros do STF e TSE.

Que bom se Lira pudesse ler —mas ler com a atenção dedicada aos clássicos, não de orelhada— o “Manual do Escoteiro Mirim”, que ensina a fazer coisas práticas e, sobretudo, recomenda boas ações. A abertura do processo de impeachment, por exemplo.

Cristina Serra A marcha da insensatez, FSP

 Bolsonaro vai dar um golpe? Quando? Como será? Ninguém tem respostas exatas a essas questões por uma razão muito simples: o fator militar. É difícil avaliar a extensão do respaldo fardado a Bolsonaro porque pouco se sabe sobre o que acontece nos quartéis. Nem ele sabe ao certo. Se estivesse seguro quanto a uma eventual retaguarda, talvez já tivesse arriscado um lance mais ousado, que desse concretude à sua obsessão golpista.

Quando os fardados falam, por meio da imprensa, é essencial distinguir informação de contrainformação ou, simplesmente, blefe. Quase sempre, protegidos pelo “off the record” produzem versões e teorias da conspiração à vontade. Contribuem mais para adensar o nevoeiro do que para dissipá-lo. A bem da verdade, são treinados para isso.

Que algum suporte existe, é fato. Mal qual seria o grau de participação e/ou de adesão de comandantes e comandados a uma ruptura da legalidade? O bolsonarismo contaminou bolsões radicalizados ou já tornou-se metástase fora de controle?

Dúvidas semelhantes se aplicam ao conjunto das forças de segurança do país: polícias militares e civis dos estados, Polícia Federal, Força Nacional, Polícia Rodoviária Federal. Para turvar ainda mais o cenário, há as milícias, cevadas pela facilidade de acesso às armas, e que, no Rio de Janeiro, travam sangrenta disputa por territórios.

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Mesmo sem um quadro nítido do apoio armado a Bolsonaro, o que parece certo é que ele não precisa do apoio majoritário, mas apenas de setores dessas forças dispostos a fomentar ambiente de turbulência e desordem pública que justifique medidas de força e exceção. Daí para a quebra institucional, é uma canetada.

Militares não dão golpe sozinhos. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), contribuiu com a marcha da insensatez, ao prolongar a discussão sobre o voto impresso, levando-a para o plenário. Deu de presente a Bolsonaro mais uma oportunidade de esticar a corda, desta vez, ameaçando com desfile de tanques de guerra em Brasília.