sábado, 7 de agosto de 2021

O crime organizado, Luís Francisco Carvalho Filho, FSP

 O presidente da República não gosta do Poder Judiciário. Trabalha, evidentemente, para escolher e nomear juízes estafetas, dotados de alma subserviente, mas não aprecia o Judiciário como instituição republicana (conservadora ou reformista), incumbida de dirimir conflitos e controlar a constitucionalidade das leis e dos atos administrativos.

Os ataques de Bolsonaro à Constituição são equivalentes, no plano político, aos desafios que o PCC e outras organizações criminosas costumam desferir contra autoridades carcerárias e medidas governamentais que contrariam seus interesses.

Desde a campanha, a repulsa ao Judiciário é externada sem cerimônia.

Jair Bolsonaro sempre repudiou a figura do “capa preta”, referindo-se ao magistrado que, na sua visão, mete mais medo no policial do que o bandido. O presidente cumpre promessa eleitoral quando defende licença para assassinato de suspeitos e impunidade de outros excessos policiais.

Em 2018, durante as eleições, o filho Eduardo Bolsonaro transmitiu um claro recado do pai em palestra proferida para estudantes que se preparavam para o concurso da PF: “Cara, se quiser fechar o STF, sabe o que você faz? Você não manda nem um jipe. Manda um soldado e um cabo”.

Foi para afrontar o Supremo Tribunal Federal, empenhado em estabelecer limites para a selvageria policial carioca, que Jair Bolsonaro celebrou alegremente a chacina de Jacarezinho, que resultou em 29 mortes.

Além dos crimes contra a segurança nacional praticados pelo próprio presidente (tentar mudar com grave ameaça o Estado de Direito, tentar impedir com grave ameaça o livre exercício dos Poderes da União, fazer propaganda de processos ilegais para alterar a ordem política, incitar à subversão), o governo age como autêntica quadrilha, conspirando contra mecanismos tradicionais de controle da administração pública.

A política de sigilos é ilustrativa. O Brasil tem orçamento secreto. Não são públicos os gastos com viagens internacionais e cartões corporativos.

São sigilosos os pareceres técnicos que orientam a Presidência a vetar ou sancionar leis.

Estão cobertos por sigilo (até 2036) documentos relacionados à “missão” do ex-chanceler Ernesto Araújo para supostamente negociar o spray nasal de Israel para tratamento da Covid-19.

Exército quer esconder, por cem anos, o conteúdo do processo administrativo que livrou a cara do general Eduardo Pazzuelo, que, na ativa, participou de manifestação política e golpista.

Documentos de inteligência dos anos 1990, relacionados ao impeachment do ex-presidente Collor de Mello (aliado ardoroso de Bolsonaro) estão ocultos.

Os registros de visitas do Palácio do Alvorada foram classificados como informação reservada, por coincidência, na mesma época em que o miliciano Fabrício Queiroz era homiziado pelo advogado criminal da família Bolsonaro.

O Palácio do Planalto também é tratado como uma espécie de valhacouto. A circulação (sempre suspeita) dos filhos do presidente é protegida por cem anos de segredo. Até a carteira de vacinação de Jair Bolsonaro (furou a fila da vacinação, presidente? Foi imunizado com a Coronavac, a vacina do Doria?) é matéria sigilosa.

Há um golpe em movimento, marcado por pequenas e aparentemente irrelevantes quarteladas, uma após outra.

O presidente da Câmara aposta no caos. O presidente do Senado faz de conta que é democrata. O procurador-geral da República é cúmplice.

lfcarvalhofilho@uol.com.br


Rodrigo Zeidan -Para o governo, pobres são sommeliers de trabalho, FSP

 O quem têm em comum as medalhas da Rebeca Andrade e a proposta de bônus do Bolsa Família? Que, por trás do sucesso, há grande esforço individual.

Para a esquerda, meritocracia é quase um palavrão, e, para a direita, o que falta para impulsionar a sociedade brasileira. Mas ambos estão errados, pois há lado bom e outro ruim na meritocracia.

Na verdade, o ideal seria abandonarmos essa palavra por algo que representasse os diferentes ganhos individuais; dos que venceram reais obstáculos e dos que contaram com diversos tipos de privilégio. No país das capitanias hereditárias, parte da elite vive de privilégios, não de esforços.

Meritocracia de verdade só funciona quando condições iniciais são próximas e regras do jogo são claras. No Brasil, temos é pronomiocracia, em que privilégios pavimentam o caminho do sucesso de uns poucos afortunados.

O mérito pelo esforço deveria ser chamado de talantocracia (ou amillacracia, segundo um amigo grego), antiga palavra para riqueza por esforço individual, mas que também transborda para a sociedade (os talantos permitiam que cidades pequenas pagassem impostos a Atenas, por exemplo).

Na vida real, não há como separar facilmente os dois lados da meritocracia. Não faltam casos de pessoas com privilégios que também se esforçam para serem bem-sucedidas. Também há, na nossa cultura empresarial e pública, corrida pela mediocridade. Mas o mais comum, como para muitos de nossos atletas, é quem encontra diversas barreiras para fazer valer o seu esforço. Em vídeo de 2009 com uma pequena Rebeca Andrade, o tema da reportagem era uma pequena melhora na condição de treinos; como se esforçar sem condições para isso?

Dou aula também na Dinamarca, há nove anos. O país não é a sociedade igualitária do imaginário brasileiro. As pessoas são livres para criar valor, e riqueza, mas com condições iniciais igualitárias e excelente rede de seguridade social.

Quer fazer faculdade de literatura? Fácil de entrar, e você recebe cerca de € 1.000 por mês para se manter. Quer estudar finanças na Copenhagen Business School? Dificílimo de conseguir vaga, mas você recebe o mesmo valor. Quer ficar rico? Vai fundo, mas vai pagar altos impostos.

No final, a Dinamarca tem a terceira maior desigualdade de riqueza entre os países ricos, de acordo com trabalho de Davies e coautores. Os 10% mais ricos detêm 76% de toda a riqueza do país (como comparação, no Japão esse valor é de 39%).

Meritocracia, sem considerar condições iniciais, não reflete esforço. Sem entender as condições iniciais que são cruciais para a avaliação do problema, políticas são “meritocráticas” só no nome e podem até piorar o problema. Por exemplo, a nova proposta do governo, de um bônus para beneficiários do Bolsa Família, falha em entender a ligação entre esforço e renda.

Para o governo, há muitas famílias que preferem receber o Bolsa Família (cujo benefício máximo vai passar a ser de R$ 250 por família) a arrumar um emprego formal, que pagaria mais de quatro vezes esse valor.

A literatura científica já mostrou claramente que isso é um mito, mas, para o governo, pobres são sommeliers de trabalho: “Não, essa vaga é muito ruinzinha, essa outra é para trabalhar muito duro e não quero, e aquela outra não é adequada ao meu perfil”.

Pagar um bônus para quem tem sorte de conseguir um emprego formal e deixando os outros à míngua? Vale tudo no país da pronomiocracia.