quinta-feira, 29 de julho de 2021

O governo quer o dinheiro, e não a expertise das entidades do Sistema S, José Pastore*, O Estado de S.Paulo


29 de julho de 2021 | 04h00

Mais uma vez trava-se um embate entre o governo e o chamado Sistema S. O governo quer usar 30% dos recursos das suas entidades (R$ 6 bilhões anuais) para pagar bolsas de estudo para jovens a serem treinados em serviço, nas empresas. As entidades querem ajudar o governo, oferecendo o que elas vêm fazendo ao longo de 80 anos: transmitir conhecimentos e valores humanos. Mas o governo quer o dinheiro, e não a expertise. O que dizer?

O projeto do governo tem mérito. O domínio de uma profissão é essencial para o primeiro emprego. Mas treinar em serviço é tarefa complexa. A simples transferência de recursos não garante a transferência de habilidades. Além da boa vontade, os gestores precisam saber como ensinar e como avaliar os jovens – tarefas que as entidades do Sistema S conhecem de cor e salteado. Por isso, penso que a parceria mais produtiva seria a de atrelar aquelas entidades em treinamentos presenciais e online para os próprios jovens, e apoiar didaticamente os gestores, ajustando os treinamentos à realidade de cada momento, porque o alvo é móvel.

Carteira de trabalho
O projeto do governo tem mérito, mas treinar em serviço é tarefa complexa. Foto: Amanda Perobelli/Reuters

Além de não garantir o sucesso do projeto governamental, a perda de R$ 6 bilhões anuais complicará severamente a vida daquelas entidades na sua missão de formar capital humano em grande escala. No conceito antigo, o capital humano se referia apenas ao resultado do número de anos cursados nas escolas. Hoje, o Índice de Capital Humano, criado pelo Banco Mundial, inclui educação, saúde, cultura, esporte e outras atividades que contam muito para a formação das pessoas e para a sua produtividade. O Brasil está mal nesta foto: ocupa o 81.º lugar em 157 países analisados, atrás de Sri LankaIrãAzerbaijãoMalásia e outras nações pouco desenvolvidas.

Ao longo do tempo, as entidades do Sistema S aprenderam a trabalhar os seres humanos desde o nascimento até as idades avançadas por meio de programas de pré-natal, puericultura, alimentação, esporte, lazer, cultura e, sobretudo, ensino profissional em vários níveis. Para tanto, utilizam uma enorme rede nacional de centros de promoção social e escolas profissionais, ancorados em pesados investimentos em equipamentos físicos e recursos humanos, atendendo milhões de famílias. Comprometer esse trabalho seria conspirar contra o Brasil que está dando certo. É pouco provável que a formação do capital humano seria alcançada por um treinamento em serviço sem orientação. Para aprender, não basta receber uma bolsa. Mais importante é receber uma educação de boa qualidade.

O que diferencia os bons sistemas de formação profissional no mundo são a “pontaria” sobre o que ensinar, a didática ajustada e os mecanismos rápidos de correção de rumos. O ensino profissional é complexo: demanda mestres experientes e devotados, material didático adequado, muita disciplina, equipamentos atualizados e o cultivo de valores sociais que conduzem à ética do trabalho.

Na minha longa carreira de pesquisador visitei centenas de escolas do Senai e Senac. Nunca vi um aluno terminar o dia sem antes arrumar a bancada e deixar tudo em ordem. Nunca vi um aluno ofendendo professores ou funcionários. Nunca vi uma parede pichada ou um banheiro sem manutenção. Nunca vi um gramado abandonado. Nunca vi desprezo pelo trabalho. Nunca vi promoção sem mérito. Zelo, disciplina, respeito e amor pelo bem feito são valores que contam muito na formação e na empregabilidade dos jovens. Centenas de pesquisas comprovam isso. Convém repensar o assunto.

*PROFESSOR DE RELAÇÕES DO TRABALHO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, É PRESIDENTE DO CONSELHO DE EMPREGO E RELAÇÕES DO TRABALHO DA FECOMERCIO-SP


Partido do Governo, editorial FSP

 Na reorganização partidária dos estertores da ditadura militar, no início dos anos 1980, o Partido Democrático Social (PDS) herdou o grupo político que até então sustentava o regime na forma da Aliança Renovadora Nacional (Arena).

Com o fim do governo dos generais, em 1985, de sua costela mais dissidente saiu o PFL (Partido da Frente Liberal), que por fim desaguou no atual Democratas.

Já o ramo original passou por fusões envolvendo cinco agremiações e se tornou Partido Progressista Brasileiro (PPB). Sua estrela era o presidenciável derrotado dos militares em 1985, Paulo Maluf.

O partido, hoje Progressistas (abreviado como PP), apoiou todos os governos desde a redemocratização, com mais ou menos poder —o ápice até aqui havia sido sob Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Com a chegada de seu presidente, o senador Ciro Nogueira (PI), à Casa Civil, sela a união que já ocorria na prática desde 2020 sob Jair Bolsonaro na mais alta posição atingida em décadas de adesismo: o coração do governo.

Não só. A agremiação controla a Câmara, na figura do alagoano Arthur Lira, que exerce comando férreo e serve por ora como um elusivo seguro contra o impeachment. É um novo patamar de poder para o chamado centrão, que ganha um partido dominante entre os cerca de dez (não há conta exata) que compõem o bloco.

É certa novidade, dado que o caráter gelatinoso do grupo associado ao mesmo tempo à fisiologia e à governabilidade sempre privilegiou caciques, não siglas.

Ademais, a eventual filiação de Bolsonaro, sob fogo dos interessados em manter alianças regionais com Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em 2022, garantiria ao Progressistas poder momentâneo enorme.

Um exemplo se vê no Orçamento, com o esquema das emendas parlamentares do relator, que somam R$ 18,5 bilhões só neste ano.

Invenção do centrão com beneplácito do Planalto, o instrumento permite gastos discricionários com baixíssima rastreabilidade. É um cheque em branco para a compra de apoio de deputados sedentos por verbas para se reelegerem.

Há percalços possíveis. Desalojados da Casa Civil, os militares do governo correm o risco de ver parte de seu butim em cargos ser ameaçada pelo avanço do centrão.

Desde 2020, esses fardados compartilham a Esplanada com as forças que costumavam demonizar como a encarnação dos problemas políticos brasileiros. Agora, numa ironia histórica, parecem destinados a ser minoritários na aliança de ocasião a sustentar Bolsonaro, enquanto ganham protagonismo os herdeiros da velha Arena.

editoriais@grupofolha.com.br


Endividamento recorde das famílias ameaça travar retomada da economia brasileira, OESP

 André Jankavski, Fabrício de Castro e Eduardo Rodrigues, O Estado de S.Paulo

29 de julho de 2021 | 05h00

SÃO PAULO E BRASÍLIA - No início da pandemia, Sidneia Soares, de 49 anos, recebeu a notícia de que seria demitida. Com o início das restrições de locomoção, a loja em que ela trabalhava, em São Paulo, fechou as portas, e ela ficou desempregada. De lá para cá, virou-se com trabalhos informais. Porém, as contas continuaram a chegar. Sem o salário mínimo que recebia, precisou da ajuda de familiares para não atrasar pagamentos básicos, como luz, água e condomínio.

Agora, trabalhando como atendente de uma lanchonete e também como aprendiz em um salão de cabeleireiro, Sidneia conseguiu encaixar as contas em seu orçamento, mas ainda não tem previsão de como vai pagar as mensalidades do Financiamento Estudantil (Fies) que contraiu. “Eu fiz cortes nos meus gastos e reformulei tudo.”

Com a renda afetada pela pandemia de covid-19, famílias como a de Sidneia e também empresas nunca estiveram tão endividadas. Dados divulgados ontem pelo Banco Central mostram que o endividamento das famílias chegou aos 58,5% em abril, o maior porcentual da série histórica, iniciada em janeiro de 2005. Isso significa que, para cada R$ 100 que uma família recebeu no último ano, ela já tem uma dívida contratada de quase R$ 60. Já o comprometimento da renda mensal ficou em 30,5% em abril – ou seja, para cada R$ 100 recebidos por mês, R$ 30 foram usados para pagar parcelas dos empréstimos.

Sidneia Soares Silva, 49 anos
Sidneia Soares, de 49 anos, deixou parcelas do Fies sem pagar para conseguir fechar as contas do mês. Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Já levantamento do Cemec-Fipe mostra que o conjunto de dívidas das companhias não financeiras no Brasil atingiu 61,7% do Produto Interno Bruto (PIB) em março de 2021, patamar também histórico. No fim de 2019, antes da pandemia, essa relação era de 50,1%.

O aperto no bolso das famílias, especialmente em um momento em que desemprego e inflação estão elevados, pode atrapalhar a retomada do crescimento econômico, avaliam economistas. “Os juros vão subir, e as famílias que já estão endividadas terão opções de crédito ainda mais caras, o que pode comprometer a retomada do consumo no ano que vem”, afirma Sérgio Valeeconomista-chefe da MB Associados. Ele calcula que a economia crescerá somente 1,8% no ano que vem e que a retomada dos empregos será lenta.

Isso, na visão dele, terá impacto direto na renda dos brasileiros, que já está em baixa. Segundo dados do IBGE, a massa de salários em circulação caiu R$ 12 bilhões em um ano, o que representa um recuo de 5,4% no trimestre encerrado em abril em comparação ao mesmo período de 2020. Ou seja, o brasileiro está, além de mais endividado, mais pobre.

Para completar, a taxa de poupança das famílias vem em forte queda desde o segundo trimestre do ano passado. Segundo cálculos do Itaú Unibanco, o indicador chegou a ser de 31,1% no período entre abril e junho do ano passado, muito por causa do fechamento de comércios em geral no início da pandemia, e já voltou para 11,8% no primeiro trimestre deste ano.

“Muitas famílias de renda baixa deixaram de receber o auxílio emergencial no começo do ano e precisaram procurar outras formas de crédito”, diz o coordenador do Centro de Estudos de Mercado de Capitais (Cemec-Fipe), Carlos Antonio Rocca, que avalia como uma das principais características da atual crise a maior diferenciação entre as classes de renda. 

Na visão de Gustavo Ribeiro, economista-chefe do Asa Bank, a diminuição da renda do brasileiro não permite uma expansão da economia por meio de crédito, afinal muitos sequer estão conseguindo pagar as contas do dia a dia.

Crédito difícil

O endividamento pode ser positivo para uma pessoa, caso ela esteja se planejando para uma grande compra, como um imóvel, ou até para alavancar o seu negócio. Mas não é isso o que tem acontecido com muitos brasileiros de baixa renda durante a pandemia, que procuram empréstimos para pagar contas básicas. Elas, inclusive, têm dificuldade de conseguir uma linha de financiamento. 

Um levantamento divulgado pelo Serasa aponta que os bancos negam 44% das solicitações de empréstimos para pessoas que recebem menos de cinco salários mínimos por mês.

Um desses casos é o da diarista Eveline da Silva, de 39 anos. Ela viu a sua renda cair quase um terço durante a pandemia, para R$ 600, e o salário do seu marido ser reduzido pela metade. No mês passado, fez um cartão de crédito para conseguir fazer uma festa de aniversário para a sua filha. Conseguiu um cartão com limite de R$ 500 e gastou R$ 250 para comprar ingredientes para doces e salgados. 

“Vou pagar a fatura no próximo dia 5, pois não quero me complicar com os juros. Depois disso, vou deixar o cartão guardado”, diz Eveline.