domingo, 14 de março de 2021

Ruy Castro Aos biógrafos de Bolsonaro, FSP

 Sempre achei um risco biografar gente viva. Não por medo do biografado ou de sofrer um processo, mas por motivo mais sério: como contar uma história que ainda não terminou? Imagine se, no dia seguinte ao lançamento de uma biografia, o biografado comete algo terrível, como estrangular seu papagaio ou fugir com a mãe de sua mulher. Em um segundo lá se vai o trabalho de anos do biógrafo —por que ele não previu que seu biografado seria capaz daquilo? Donde o certo é esperar que o fulano abotoe naturalmente o paletó, para só então mergulhar na investigação de sua vida.

Mas, com Jair Bolsonaro, não se pode mais esperar que ele vá para o diabo que o carregue. É urgente começar a biografá-lo porque, pela velocidade de sua trajetória —não passa um dia sem praticar um crime contra a democracia, a saúde, a educação, a ciência, a cultura, a economia, a ecologia, a diplomacia, a Justiça, os direitos humanos e a vida—, em breve ela não caberá em um volume. E isso apenas desde que assumiu a Presidência.

Ai está. Uma biografia de Bolsonaro deveria recuar aos seus antepassados, como Hitler, Jack o Estripador, Drácula, Herodes e Belzebu; explorar suas origens em Glicério (SP), burgo de 2.000 habitantes em 1955, onde depositaram o ovo do qual ele nasceu— e chegar à sua infame carreira militar e ascensão política. Vai-se revelar o seu longo e meticuloso processo de corrupção de colegas, servidores, generais, policiais e juízes, e, de passagem, descobrir como construiu seu patrimônio imobiliário e transferiu esse know-how para filhos e mulheres.

O importante é que, em alguma etapa, surja algo que explique o seu grau de desumanidade estudada, demência, crueldade e ódio.

Pelo que sei, já há profissionais biografando Bolsonaro. Só garanto que não sou um deles. Há um limite para a náusea, e basta-me ter ânsias de vômito quando o vejo na televisão

Hélio Schwartsman - O custo de respirarmos mal, FSP

 Seres humanos, ao lado de buldogues e pugs, somos os piores respiradores do reino animal. Desde que aprendemos a cozinhar os alimentos, passamos a mastigar muito menos do que deveríamos, o que resultou numa série de deformações na mandíbula, nos sinos e na arcada dentária que prejudicam a respiração.

A opção por uma dieta com alimentos macios e as adaptações, especialmente na laringe, que deram maior maleabilidade a nosso aparelho fonador, não ajudaram. No caso das raças caninas citadas, nossa culpa é mais direta. Nós as selecionamos para apresentar a cara achatada, desconsiderando os impactos fisiológicos desse capricho estético.

E respirar mal tem um custo, que se mede numa série de doenças, algumas delas graves. Esse é o tema de "Breath" (respiração), do jornalista James Nestor. O livro é interessante e está calcado em boa ciência.

Nestor, porém, faz mais do que citar estudos médicos. Ele também narra suas experiências como cobaia de pesquisas, com direito a passar dias com as narinas obstruídas para verificar os efeitos deletérios de respirar só pela boca, e como "pulmonauta", isto é, como alguém que se dedica à arte de aprender a respirar melhor, embrenhando-se por comunidades místicas, correntes médicas esquecidas, yoga etc.

Uma dessas jornadas o trouxe a São Paulo, para conversar com um mestre yogui local.

[ x ]

O livro também tem um lado prático. O autor ensina várias técnicas de respiração que podem contribuir para uma vida mais saudável. A mais básica delas é respirar sempre pelo nariz, inspirando profundamente durante 5,5 segundos e expirando pelo mesmo tempo. Mas também há as mais sofisticadas, que, se você for dedicado, em tese lhe permitirão tomar banho em lagos congelados sem sentir frio e até passar por estados de consciência semelhantes aos provocados por drogas como o LSD.

Não experimentei nenhuma delas. Eu me satisfaço com os estudos médicos.

Ilustração de Annette Schwartsman para coluna de Hélio Schwartsman de 14.mar.2021
Ilustração de Annette Schwartsman para coluna de Hélio Schwartsman de 14.mar.2021 - Annette Schwartsman

O QUE A FOLHA PENSA - Maconha mexicana, FSP

 O debate em torno da descriminalização das drogas conheceu um novo e importante avanço com a aprovação nesta semana do uso recreativo da maconha pela Câmara dos Deputados do México.

A iniciativa ocorre dois anos após a Suprema Corte daquele país decidir pela inconstitucionalidade da proibição do consumo da erva, e mais de três anos depois da liberação da cânabis medicinal.

Agora, o texto segue para o Senado, antes de ser enviado à sanção do presidente Andrés López Obrador. A aprovação é dada como certa, visto que o Parlamento é controlado pelo Movimento Regeneração Nacional, favorável à norma.

A medida permitirá aos cidadãos consumir e portar a substância, bem como, mediante uma licença, cultivar até oito pés de cânabis em casa, além de facultar aos produtores suas safras da erva.

Se promulgada, a lei colocará o México ao lado de Canadá e Uruguai numa lista pequena, mas crescente, de países que legalizaram a maconha no continente americano --nos EUA, ela já é permitida para fins recreacionais em 15 estados, e o partido democrata no Senado, que exerce controle sobre a Casa, prometeu eliminar a proibição federal à erva neste ano.

Como defende esta Folha, a mera repressão, ou guerra contra as drogas, revelou-se tão cara quanto ineficaz, tendo chegado o tempo de tratar da questão pelo prisma da saúde pública.

O paradigma proibicionista, aliás, mostra um de seus resultados mais desastrosos justamente no México, onde a violência associada ao narcotráfico deixou mais de 150 mil mortos nos últimos 15 anos.

Especialistas advertem, contudo, que o impacto da nova lei nesse aspecto tende a ser diminuto, já que a crescente legalização da erva nos EUA fez com os cartéis mexicanos se concentrassem em substâncias sintéticas, mais rentáveis.

Por outro lado, o país de 127 milhões de habitantes passará a ter o maior mercado de cânabis do mundo –sem considerar nesse ranking o mercado americano, muito mais rico e de população total maior, mas no qual as normas variam de estado para estado.

Assim, a experiência mexicana, dados o tamanho e as características do país, tende a se tornar um divisor de águas global na questão da legalização da maconha e outras substâncias. Convém ao Brasil, onde esse debate não dá mostras de que amadurecerá tão cedo, observar seus resultados com atenção.