domingo, 29 de novembro de 2020

Flavia Lima Erros nas sabatinas de Covas e Boulos, FSP

 

Em meio à expectativa de que os jornais dissequem vida e obra de candidatos em períodos eleitorais, é esperado que o leitor que é também eleitor olhe com desconfiança para o tratamento jornalístico dedicado a seus escolhidos.

Mas, desde o início da campanha, no fim de setembro, recebi mais comentários de leitores que não entenderam os motivos de a Folha ter escolhido acompanhar as eleições em Jaboticabal, cidade do interior paulista, do que reparos à abordagem das candidaturas à Prefeitura de São Paulo.

um traço verde passa por dentro de um funil
Carvall

Essa quase calmaria, em comparação a eleições anteriores na capital, foi quebrada poucas vezes, a maioria delas envolvendo a novidade à esquerda, o candidato Guilherme Boulos (PSOL).

No caso mais recente, na quinta (26), Boulos e o atual prefeito de São Paulo, Bruno Covas (PSDB), foram sabatinados pelas jornalistas Thaís Oyama, do UOL, e Luciana Coelho, da Folha, em conversas de 45 minutos—eclipsadas pelo desfecho de uma delas.

Faltando 44 segundos para o fim da sabatina com Boulos, Oyama fez uma extensa (e mal formulada) pergunta, deixando-o com sete segundos para responder e apresentar as suas considerações finais, o que, obviamente, não foi possível. O candidato foi cortado, a jornalista agradeceu a participação e Boulos sorriu, sem graça.

Uma carta com mais de 130 assinaturas encaminhada à ombudsman destacou a assimetria no tratamento dos candidatos e afirmou, entre outros pontos, que as suspeitas que recaem sobre o vice de Covas, Ricardo Nunes (MDB), foram "tocadas suavemente".

Um leitor chegou a dizer que o ocorrido lembraria a edição do famoso debate de 1989 entre Lula e Collor.

Calma lá. Em 1989, o último debate antes das eleições ocorreu nos estúdios da TV Bandeirantes e foi transmitido por um pool formado pelas principais emissoras de televisão do país.

Para a sua programação do dia seguinte, a Rede Globo selecionou parte do material e foi criticada por apresentar o que seriam os melhores momentos de Collor, dando mais tempo a ele na edição. A partir deste episódio, a Globo decidiu não editar debates políticos.

Na sabatina UOL/Folha, o final constrangedor foi marcado mais pela desorientação do que por uma ação (ou omissão) deliberada para prejudicar Boulos, algo que a presença de um diretor (inexistente) teria resolvido.

conservadorismo do vice de Covas, assim como as suspeitas que recaem sobre ele, foi tratado. Foram outros os pontos da sabatina que fizeram a balança pender para Covas.

O tópico mais tenso com Boulos, sobre a possibilidade de aumento de impostos em São Paulo, é abordado um pouco depois de três minutos de conversa, e, entre idas e vindas, só vai se resolver aos quase 12 minutos, quando Oyama diz a Boulos que o programa dele está mal escrito.

No caso de Covas, o ponto de maior tensão se insinuou quando lhe foi perguntado o que faria de modo diferente para evitar as mortes em São Paulo durante a pandemia. Covas insistiu que os números precisavam ser relativizados e, a despeito de uma tentativa de interrupção, falou por mais de três minutos.

Ao final, disse Oyama com deferência: "O senhor tem toda a razão sobre a necessidade de relativizar os números, mas não se trata disso. Só estava querendo saber se, de acordo com essa experiência, com o aprendizado de nove meses que a gente teve na pandemia, o senhor à frente da prefeitura, se o senhor poderia dizer se, do alto desse aprendizado, o que poderia ter sido diferente", disse. "Ninguém aqui está acusando o senhor de omissão, não."

Acentuando o contraste, na pergunta final para Covas, foi pedido que contasse qual foi o momento mais difícil no tratamento que faz contra um câncer. Sem sustos, Covas teve 44 segundos para falar sobre uma questão que tem apenas efeitos emocionais sobre os eleitores.

Vinicius Mota, secretário de Redação da Folha, diz que os erros objetivos nas sabatinas foram reconhecidos publicamente, como é o compromisso editorial das duas casas jornalísticas. "Cabe esclarecer que Boulos falou por 31 minutos e 24 segundos e ouviu as jornalistas por 12 minutos e 55 segundos. Bruno Covas falou por 30 minutos e 11 segundos, mais 1 minuto de pausas, e ouviu as jornalistas por 13 minutos e 46 segundos".

Murilo Garavello, diretor de conteúdo do UOL, diz que Oyama errou ao fazer pergunta longa e incorreta (Boulos lidera não apenas entre jovens de classe média alta, como disse a jornalista, mas entre todos os jovens) e que a produção do programa errou ao seguir friamente o regulamento. O diretor também se compromete a garantir o mesmo tempo de fala aos candidatos nas próximas eleições, independentemente da duração das intervenções dos jornalistas.

Sabatinas curtas e debates com banco de minutos são formatos que conseguiram renovar o interesse do eleitor, embora mereçam ser aperfeiçoados.

Da parte de jornalistas, o papel muitas vezes oscila entre a reprodução anódina de perguntas sorteadas e uma agressividade seletiva e desmedida com o objetivo de mera desconstrução de candidatos.

Como disse um leitor, a mídia tem responsabilidade de melhorar o debate político. Não fazendo isso, acaba ajudando a produzir a degradação dele.

Flavia Lima

Repórter especializada em economia, é formada em ciências sociais pela USP e em direito pelo Mackenzie. É ombudsman da Folha desde maio de 2019.

Ruy Castro - A cara através do pano, FSP

Nas poucas vezes em que fui à rua nos últimos meses, senti-me culpado por estar quebrando a quarentena. Embora todas as saídas tivessem motivo justo —médico, dentista, banco—, temi ser confundido com os que voltaram a flanar pela cidade como se a pandemia tivesse acabado. Minha esperança era que, de máscara, eu não fosse reconhecido e pudesse atravessar incógnito o Leblon. Mas bastou-me pôr o pé na calçada para descobrir que era impossível.

O porteiro do prédio ao lado, varrendo as folhas das amendoeiras, foi o primeiro a dizer, "Fala, Ruy!". O colega com quem ele conversava emendou, "E aí, Ruy, e o Flamengo?". Meu vizinho de andar, que eu não via desde o Carnaval, passou por mim e disse que, pelo menos, estávamos livres das reuniões de condomínio. O casal da banca de jornais lamentou que, agora, eles só soubessem de mim pela Folha. Todos, como eu, de máscara.

Cruzei com várias outras pessoas que me lançaram olhares de simpatia, como se me vissem através do pano, e que eu também podia facilmente reconhecer das andanças pelo bairro. Ou seja, a máscara protege, mas não disfarça.

Perguntei-me como o Zorro fazia para que, na acanhada Reina de Los Angeles, em 1810, ninguém soubesse que, sob o pano preto, ele era Diego de La Vega. Afinal, não seria aquela meia máscara que o impediria de ser identificado pelos olhos, voz ou jeito de andar. A do Lone Ranger, o Zorro americano, menos ainda e, se ele não a tirava nem para o Tonto, de que servia? O mesmo quanto ao Fantasma --ou ele temia ser traído pelos pigmeus do golfo de Bengala? Sem falar do Spirit. E quem o Batman, com ou sem o Robin, pensava enganar com aquele capuz que deixava de fora o nariz, boca e indisfarçável queixo do milionário Bruce Wayne?

Mas o que me intriga mesmo é como, com aqueles socos e trambolhões, suas máscaras não caíam e os denunciavam. A minha vive saindo do lugar.

Várias capas de revistas em quadrinho com heróis mascarados
Heróis mascarados da literatura e de clássicos dos quadrinhos - Heloisa Seixas
Ruy Castro

Jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.

 

Hélio Schwartsman A multiplicação das cotas, FSP

 Cotas provavelmente vieram para ficar, mas continuo não gostando delas. Reconheço que é tentador resolver problemas atuando diretamente sobre os resultados a que queremos chegar. Se é a discriminação que impede minorias de obter vagas nas universidades e concursos, bons postos de trabalho e cargos de direção, então basta reservar esses lugares para elas. Fazê-lo, entretanto, é abrir uma caixa de Pandora.

Não é difícil enxergar o viés contra mulheres e negros nas estatísticas. Mulheres e negros ganham em média menos do que homens brancos mesmo quando os cálculos são ajustados para comparar adequadamente qualificação, horas trabalhadas, tempo de casa etc. Pior, experimentos mostram que currículos idênticos obtêm respostas diferentes dos empregadores dependendo do sexo e da etnia do candidato.

O problema é que não são só mulheres e negros. O primeiro emprego de Lúcifer deve ter sido de estatístico. Quem se debruçar com cuidado sobre os dados encontrará discriminação contra jovens, velhos, gays, gordos, feios e até contra baixinhos.

Desenho mostra filas de baixinhos, gordinhos e carecas se candidatando a vaga por sistema de cotas
Ilustração de Annette Schwartsman para a coluna de Hélio Schwartsman de 29.nov.2020 - Annette Schwartsman

Embora não exista uma história conhecida de perseguição e opressão contra pessoas de baixa estatura, esse grupo, a crer em estudos norte-americanos, sofre tanto quanto mulheres e negros no mercado de trabalho. Entre os CEOs das maiores companhias americanas, 58% tinham mais de seis pés (1,83 m) de estatura, contra apenas 14,5% na população geral. Cada polegada (2,54 cm) a mais de altura representa um incremento de US$ 789 na renda anual do funcionário. Curiosamente, só o estado de Michigan tem uma lei para coibir o preconceito contra baixinhos.

Uma aplicação consistente do princípio de que grupos discriminados devem ter direito à reserva de vagas nos levaria a uma irrefreável multiplicação das cotas. No limite, chegaríamos a uma situação borgiana na qual cada indivíduo, dadas suas peculiaridades, faria jus à cota de si mesmo.

Hélio Schwartsman

Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…".