quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Ação afirmativa e direitos à reparação na agenda brasileira, Fernando Schüler, FSP

 Quando li o livro de Arlie Hochschild Strangers in Their Own Land (estranhos em sua própria terra, sem edição em português), fiquei fascinado pela imagem que ela criou para compreender o conservadorismo americano.

Hochschild é uma socióloga progressista de Berkeley e fez um mergulho de alguns anos na América profunda, em uma região ultraconservadora e relativamente pobre da Louisiana.

Imagine, diz ela, que você esperou a vida inteira pela sua grande chance. Você fez tudo certo e esperou na fila, pacientemente, mas quando está muito perto da chegada, já observando as luzes do “American Dream”, você vê que há um monte de gente furando a fila.

Aí você reclama e vem alguém “bem formado, quem sabe de Harvard, e diz que você é um caipira racista, homofóbico, sexista, ignorante e fanático pela Bíblia”. A imagem tenta descrever os sentimentos do “redneck” americano, interiorano, ridicularizado pela gente cabeça das universidades, dona da retórica e da virtude moral. Os fura-filas são aqueles que recebem agora os benefícios da ação afirmativa.

O interessante é que a imagem de uma outra fila serviria para descrever o mundo americano de não muito tempo atrás. Com um detalhe: os barrados, e por vezes logo no início, eram exatamente os que hoje ganham sua chance com as políticas de ação afirmativa.

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Nada muito diferente do Brasil. Ainda me lembro, na infância, de uma época em que meus amigos negros, e eram muitos, por alguma razão que não entendia bem, não podiam frequentar a piscina do clube. Não havia nenhuma placa dizendo que não podia. Apenas não acontecia.

Os dados da exclusão brasileira são bem conhecidos. Dados do mercado de trabalho, dos indicadores de escolaridade, da pirâmide de renda. Dá pra escolher. Mas o fato é que eles não dizem tudo. Há uma história silenciosa de vetos e humilhações na memória ainda muito fresca de quem pertence à minha geração.

Quando vejo a polêmica em torno do programa de trainee feito pela Magalu, não resisto à tentação de ver o episódio sob o prisma dessa memória. Alguns dirão que tudo não passou de uma jogada de marketing da empresa e de “sinalização de virtude”. Pode ser.

O fato é que há um elemento de reparação aí. Robert Nozick, o antagonista libertariano de Rawls, na Harvard dos anos 1970, definiu isso de uma forma incômoda. Você respeita os direitos individuais? Só agora ou vale um pouco para trás? Até quando você está disposto a recuar no tempo e reparar direitos que foram surrupiados? Direitos são “históricos”, não é mesmo? Ou só apareceram no ano passado?

Reparação sempre foi um tema difícil, pois ninguém sabe, no fundo, como aplicar o conceito. Muita gente dirá que criar novas exclusões não é uma boa forma de fazer isso. Elas irão produzir reações e ressentimentos. Por vezes silenciosos, por vezes nem tanto. É disso que trata o livro de Hochschild.

Alguns dirão, em favor da atitude da Magalu, que isso tudo é conversa e que qualquer coisa que possa ser feita para pagar a conta da grande exclusão brasileira será pouco. Outros ainda dirão que uma boa sociedade liberal dá a qualquer um o direito de contratar ou excluir quem quiser, no mundo privado, e que apenas a regra pública não poderia impor essas coisas.

O fato é que não há a mínima possibilidade de consenso aí. Isso toca no nervo do que Isaiah Berlin chamou de pluralismo objetivo, marca por excelência de nossas sociedades abertas. Sociedades marcadas por um conflito permanente entre ordens de valores simultaneamente verdadeiras, ainda que incompatíveis entre si.

É disso que trata este episódio: o conflito entre tratar a todos como iguais, diante da lei, ou perseguir algum tipo de igualdade substantiva, via reparações, ao preço da igualdade formal. Parece claro que o país vem caminhando nesta segunda direção. A atitude da Magalu é apenas um sinal. Não tenho dúvidas de que outros virão.

No mais, estamos muito longe de vislumbrar no horizonte uma sociedade capaz de assegurar uma base de oportunidades iguais para todos. Como fazer isso, no fundo, é o grande debate brasileiro.​

Fernando Schüler

Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.

Em seis meses de quarentena, SP vive o luto da perda de até 75 mil bares e restaurantes, FSP

 Marcos Nogueira

SÃO PAULO

Em frente ao muro do cemitério da Consolação ficava o restaurante La Frontera.

A fronteira era um recurso poético. Representava, na identidade cultural, o limite difuso entre a Argentina natal de Ana Massochi, a dona, e o Brasil que a acolheu há mais de quatro décadas.

A fachada fechada do PASV, no centro de São Paulo
A fachada fechada do PASV, no centro de São Paulo - Reinaldo Canato / UOL

A cozinha navegava ao longo de outra fronteira: a da alta gastronomia com a culinária rústica, do fogo. É a escola de dois célebres patrícios de Ana, os chefs Francis Mallmann e Paola Carosella.

A imagem fronteiriça se evidencia na situação física do restaurante. A rua Coronel José Eusébio divide os mortos do cemitério e os vivos que celebravam a própria finitude com berinjela defumada, lulinhas ao alho, nhoques macios, bifes, galetos, doce de leite e muito vinho. É a graça doce-amarga do humor argentino, sempre brincando com aquilo que apavora.

Num ano em que a morte passou dos limites, o cantinho de Ana Massochi cruzou a fronteira para o lado de lá. Ele é um entre dezenas de milhares de restaurantes fechados definitivamente em exatos seis meses de quarentena oficial no estado de São Paulo.

As baixas se acumulam desde 24 de março, quando um decreto do governador João Doria (PSDB) restringiu o funcionamento do comércio, devido à pandemia da Covid-19.

Os dados, ainda que imprecisos, impressionam: nestes seis meses de quarentena, entre 20% e 25% dos estabelecimentos de alimentação encerraram as atividades no país. Quando transposto para o contexto estadual, o levantamento aponta de 50 mil a 75 mil restaurantes, bares e lanchonetes paulistas mortos por falta de faturamento.

O luto não é metáfora para os empresários do setor. Emparedados por dívidas, consternados com a demissão de funcionários e abatidos pela derrota, eles tentam superar as perdas.

“Prefiro deixar quieto agora”, responde o chef Raphael Despirite à solicitação de entrevista sobre o fechamento do Marcel. O restaurante francês, aberto há 65 anos pelo avô de Rapha, servia o suflê mais famoso da cidade.

Outros pontos tradicionais também pereceram na pandemia. O espanhol PASV, desde 1970 na avenida São João. O árabe Abu-Zuz, há 31 anos no Brás. O próprio La Frontera já contava 14 anos de estrada. O velho Itamarati, no largo de São Francisco, balançou, mas não caiu: após a casa anunciar o fechamento, advogados frequentadores se engajaram numa campanha para resgatá-la.

A peste baixou inclemente também sobre os restaurantes jovens com nomes inspirados na fauna brasileira. São Paulo perdeu o Capivara, excelência em peixes num salão de boteco da Barra Funda. Foi-se o Cateto, que transferiu da Mooca para Pinheiros o combo queijos artesanais + charcutaria + cervejas especiais + coquetéis.

Restaurante Abu-Zuz, no Brás, zona central da cidade
Restaurante Abu-Zuz, no Brás, zona central da cidade - Reinaldo Canato / UOL

Havia apenas seis meses que Leo Botto tocava o Boto —com um tê só— quando a pandemia virou o mundo de ponta-cabeça.

“A gente ainda estava engatinhando”, conta o cozinheiro e empresário. Acabrunhado, ele admite que o amadorismo contribuiu para o fechamento da casa. “Fico até com vergonha de dizer que contratamos 25 funcionários para a abertura.” O Boto tinha 50 cadeiras no salão, 25 lugares no bar e nenhum sócio com currículo em gestão de restaurantes.

No afã de salvar o negócio, Botto trabalhou até como entregador. Pegou Covid-19. “A exposição era extrema”, lembra. Ele teve todos os sintomas clássicos do coronavírus, mas conseguiu se recuperar sem internação. Assim que o governo permitiu a reabertura, ele reabriu. “Estávamos completamente descapitalizados. Não funcionou.”

Já Ana Massochi —que revelou Botto no La Frontera— não pode colocar o revés na conta da inexperiência. Desde 1980 ela está à frente do Martin Fierro, o argentino que assistiu impávido à playboytização da Vila Madalena. Na pandemia, ela percebeu ser inviável manter os dois restaurantes.
“Precisei escolher um deles”, conta. Optou por fechar o filho mais novo porque a operação era cara, apenas se pagava.

A gota d’água foi a postura draconiana dos donos do imóvel, que se recusaram a negociar o valor do aluguel. Ainda em março, Ana decidiu abreviar o capítulo La Frontera e doar os equipamentos para um café comunitário na Vila Brasilândia. “Baixei a cortina e comecei a olhar para o outro lado.”

A asfixia financeira é a principal queixa das duas entidades que representam o setor: a Abrasel (Associação Brasileira de Bares e Restaurantes) e a ANR (Associação Nacional de Restaurantes).

A primeira tem associados em cada boteco de cada cafundó do país; a segunda reúne a elite da categoria, empresários com dinheiro e influência. São elas as fontes dos números apresentados no começo do texto.

Ambas as associações reclamam do governo e dos bancos, que prometeram crédito e não entregaram. Ambas lamentam também a manutenção, ao cabo de seis meses, da ocupação e do horário restritos —em São Paulo, os restaurantes podem funcionar até as 22h, com 40% da capacidade.

“Vai quebrar muita gente ainda”, estima Percival Maricato, presidente da seção paulista da Abrasel. “Mais de 40% dos empresários não resistem a outro ano de recessão. E tudo aponta para isso.”

A aflição é compartilhada pelos grandes do setor. “Das redes de restaurantes, 40% precisaram fechar pelo menos uma unidade”, afirma Cristiano Melles, presidente da ANR. Estão na lista a IMC (das marcas Frango
Assado, Pizza Hut, KFC e Viena) e a CTC (das pizzarias Bráz, Lanchonete da Cidade e bares Pirajá e Astor).

A rede Galeto’s, cujos restaurantes pontuavam a paisagem urbana em São Paulo, encerrou o atendimento presencial em todas as lojas. Os franguinhos agora só viajam de moto para a casa do freguês.

“O delivery veio para ficar”, diz Percival Maricato. A verdade, porém, é que ninguém tem a mais remota ideia do futuro próximo. Planos abundam.

O restaurante La Frontera, em Higienópolis, que encerrou suas atividades
O restaurante La Frontera, em Higienópolis, que encerrou suas atividades - Reinaldo Canato / UOL

Raphael Despirite, taciturno em relação ao Marcel, se empolga ao falar da mistura de experiências digitais e físicas no projeto Fechado para Jantar. “Nos últimos que fizemos, tivemos lives com as pessoas recebendo a comida em casa.”

Leo Botto pretende recomeçar pequeno, numa casa para uma dúzia de clientes, e servir cogumelos selvagens colhidos nas ruas de São Paulo. Sim, é isso que você leu —e eu mal posso esperar para provar.

Ana Massochi vai seguir concentrada no Martin Fierro, sólido, constante e de empanadas imortais. Levou para lá os nhoques de batata assada, receita surrealmente gostosa que Leo Botto criou para o restaurante em frente ao muro do cemitério.

O La Frontera vive.

quarta-feira, 23 de setembro de 2020

São muitos dilemas, não só sociais, Silvio Meira, Link OESP

 É impressionante como tantos já viram O Dilema das Redes, o filme da Netflix sobre redes sociais e seus impactos nas pessoas e na sociedade em geral. Mas é bom levar em conta que o problema das redes sociais não cabe num filme. As redes sociais e seus algoritmos de recomendação não estão isentas da responsabilidade por alguns dos ambientes mais ácidos que há na internet. Mas não podem ser confundidas com a rede. Em parte, é o que o filme faz, de certa forma desinformando e, aí, sofrendo do mesmo problema das redes.

As redes que usamos no Ocidente, como o Facebook e o YouTube, são uma criação de um tipo de investimento de risco, aliado a uma visão de mundo onde poucas empresas vencem a disputa pelo mundo em rede. De muitas formas, o capital criou e encontrou o trabalho para tal: empreendedores, colaboradores e influenciadores criaram um universo ao redor da atenção digital, que tem pouca relação com qualquer coisa que existia antes.

'O Dilema das Redes' é um novo filme da Netflix

'O Dilema das Redes' é um novo filme da Netflix

Apagar a conta das redes sociais não é solução e não ocorrerá em escala. O que precisamos é tratar é o conjunto de problemas associados à isenção, transparência e responsabilização de algoritmos e da regulação de certos mercados em rede – e disso pouca gente fala ou quer falar. Há uma questão essencial sobre algoritmos de recomendação em plataformas digitais: há, neles, papel editorial, escolhendo o que se lê, vê, consome? Se esse é o caso, a plataforma em questão deve ser tratada com as mesmas regras de sistemas editoriais como jornais e TV. 

Para resolver uma parte dos problemas, seria necessário discutir uma ética para mediação. Os algoritmos estão se tornando a base dos processos de tomada de decisão em sociedades da informação. O espectro de preocupações aí envolvido é muito mais amplo do que o visto no filme – que por sinal nos é trazido por uma plataforma que usa e depende de algoritmos de recomendação para ordenar as ofertas de conteúdo aos seus usuários.

Esta mesma classe de algoritmos que sugere filmes toma outras decisões mais graves sobre as pessoas. No Judiciário, decide o risco que um cidadão representa. Será justo? Depende – inclusive do sistema social onde isso acontece. Certo é que sem transparência e mecanismo de responsabilização dos algoritmos, não é justo, nem está certo.

Vivemos o início de uma era onde código executável define contextos, modifica comportamentos e cria problemas que eram ficção até poucos anos. Seria muito bom se aprendêssemos a refletir sobre o futuro da sociedade da informação – e sem a pressa e falta de cuidado que vimos, por exemplo, na discussão sobre a Lei das Fake News. Aliás, está aí uma ocasião que um bom algoritmo de recomendação do futuro não mostrará a ninguém que queira aprender como leis devem ser discutidas.

É PROFESSOR EXTRAORDINÁRIO DA CESAR.SCHOOL, FUNDADOR E PRESIDENTE DO CONSELHO DO PORTO DIGITAL E CHIEF SCIENTIST NA TDS.COMPANY