quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Esper Kallás Anticorpos e doenças infecciosas, FSP

 Parte importante da resposta imune, os anticorpos são moléculas que atuam no combate a agentes infecciosos. Com aspecto parecido a um garfo de duas pontas, podem ser encontrados por todo o corpo —do sangue à superfície dos genitais, do trato respiratório ao gastrointestinal e assim por diante— em diferentes formas. Quando encontram um germe, ligam-se a ele, tentando neutralizá-lo, ajudando as células de defesa nesse combate.

Métodos cada vez mais sofisticados tornam possível a identificação das características de cada anticorpo específico para, então, reproduzi-lo e multiplicá-lo individualmente. O produto dessa técnica é denominado de anticorpo monoclonal. Também há como selecionar os mais potentes, aqueles com maior capacidade neutralizante, utilizados no tratamento e prevenção de doenças infecciosas.

A ideia não é nova. O primeiro prêmio Nobel na área de Medicina ou Fisiologia foi concedido em 1901 ao polonês Emil Adolf von Behring, pelo pioneirismo no uso de soro sanguíneo —rico em anticorpos— para o tratamento da difteria, doença que hoje controlamos com sucesso pelo uso de vacinas. Outros laureados pelo prêmio Nobel também fizeram descobertas importantes. Entre eles, em 1984, Niels K. Jerne, Georges J.F. Köhler e César Milstein descreveram os mecanismos da produção dos anticorpos no organismo.

Os anticorpos monoclonais, resultado desse desenvolvimento secular em medicina, já são usados em doenças infecciosas. Um dos exemplos é o vírus sincicial respiratório, que pode causar pneumonia grave em recém-nascidos prematuros. Sem tratamento, pode levar à morte. A solução veio com um anticorpo monoclonal: chamado de palivizumab, é capaz de prevenir a ocorrência da pneumonia e salvar a vida de milhares de crianças.

Outros anticorpos vêm sendo estudados contra diversas doenças infecciosas, dentre elas a infecção pelo HIV, vírus que causa a Aids. Estamos testemunhando, aqui, um grande avanço. Vários já foram descritos e alguns se destacam pela sua capacidade de neutralização do vírus. Muitos estudos estão avaliando o uso destes anticorpos no tratamento e na prevenção da infecção pelo HIV. Se bem-sucedidos, causarão grande mudança de paradigmas, tanto no cuidado às pessoas que vivem com o vírus quanto na proteção a vulneráveis expostos por via sanguínea ou sexual.

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Com a Covid-19 não poderia ser diferente. Alguns anticorpos monoclonais capazes de neutralizar o novo coronavírus já estão em testes clínicos para prevenir e tratar a doença, inclusive no Brasil.

Na semana passada, o anúncio de um estudo preliminar nutriu com esperanças a possibilidade de tratamento da Covid-19: o uso de anticorpos monoclonais contra o novo coronavírus reduziu em 72% a chance de pessoas infectadas desenvolverem doença grave. Se os dados definitivos confirmarem esse feito, este será um resultado extraordinário, pois seria o tratamento mais eficaz divulgado até o momento.

Dada a velocidade com que podem ser descobertos e avaliados em estudos clínicos, devem ser considerados como importantes armas no enfrentamento de futuras ameaças, inclusive pandemias, por agentes infecciosos.

O potencial do benefício de anticorpos monoclonais na medicina é imenso. Poderão ocupar o lugar de antimicrobianos para tratar doenças infecciosas e complementar a prevenção de vacinas.

Creio que testemunharemos, em tempo breve, um grande salto do emprego de anticorpos monoclonais na infectologia e, consequentemente, no alívio do sofrimento que as doenças infecciosas nos trazem.

Esper Kallás

Médico infectologista, é professor titular do departamento de moléstias infecciosas e parasitárias da Faculdade de Medicina da USP e pesquisador na mesma universidade.

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O Febejapá não entra em quarentena, Conrado Hübner Mendes, FSP

  EDIÇÃO IMPRESSA

O ridículo autoritário precisa de cronistas. Afinal, além do gosto pela tortura, figuras brutas esbanjam estupidez e mau gosto. Stanislaw Ponte Preta narrava o grotesco da ditadura na série Febeapá - Festival de Besteiras que Assola o País. O Febeapá deu novas cores ao bestiário brasileiro.

A “redentora”, como chamava o golpe, fez os “cocorocas”, moralistas nascidos para policiar a minissaia, saírem do armário. Cocorocas gostam de “fazer democracia com as próprias mãos”.

General Heleno, típico cocoroca, tem se revoltado com Leonardo DiCaprio. Do alto de sua carranca, desqualifica a ciência climática e toda objeção ao descalabro ambiental do governo. Exige “autoridade moral para criticar”, como se sua missão no Haiti tivesse lhe dado credencial para qualquer coisa. O governo destrói a riqueza natural do país, seu maior trunfo na economia pós-carbono, para criar pasto. E “lesa-pátria” são os críticos.

Mas não é dos cocorocas clássicos que vim falar. Stanislaw deu pouca atenção à magistocracia. Subestimou matéria-prima preciosa para a galhofa. Juízes protagonizam o Febejapá - Festival de Barbaridades Judiciais que Assolam o País.

A história se repete, a primeira vez como besteira, a segunda vez como barbaridade. Barbaridades judiciais explodiram e a dignidade do ridículo magistocrático merece reconhecimento.

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Olhe para o Tribunal de Justiça de São Paulo. Sua honorabilidade é proporcional ao exemplo de seus presidentes recentes. Para Ivan Sartori, dois meses de férias serviam para “preservar a sanidade mental de juízes”; auxílio-moradia, para Nalini, ajudava a comprar “ternos em Miami”; Pereira Calças esbravejou: “Tenho vários imóveis, mas acho muito pouco”.

Pinheiro Franco, atual presidente do TJ, premiou essa coluna com duas notas públicas. Na primeira, disse que “juiz paulista vive a virtude como dever legal” e dissertou sobre a tese. Na segunda, disse que tenho “entendimento vesgo” e quero “denegrir a imagem da corte”. Quanto ao verbo “denegrir”, sugiro evitar. Quanto ao estrabismo, tribunal que chama o massacre do Carandiru de “motim”, e em 20 anos não puniu ninguém, dele também sofre.

O Febejapá vem aqui oferecer a medalha de mérito magistocrático da semana.

Poderia ir para João Otávio Noronha, ex-presidente do STJ, que concedeu prisão domiciliar a Queiroz enquanto negou a centenas. Nesses dias, Noronha solicitou a funcionários de gabinete ajuda na logística do casamento da filha (reportado pela Crusoé). Ao casamento compareceram filho de Bolsonaro e ex-esposa investigada.

Por falar em amor paterno, a medalha poderia ir para Luiz Fux, que já deixou legado de respeito para a tradição patrimonialista brasileira. Sua posse na presidência do STF, e os rapapés de bastidores, infectaram com coronavírus 8 autoridades até aqui. A grandeza da ocasião não admitia a prudência de uma posse online, como foi a do TSE.

A medalha, contudo, vai para a juíza do trabalho Ana Fischer, “aquela que gosta do artigo 5º”, como se apresenta no Twitter. Diante da política de contratação do Magazine Luiza, que adotou critério racial em programa de trainee, mostrou indignação e compartilhou pergunta de deputado: “E esse racismo, é do bem?”. Aproveitou e emendou: “Discriminação na contratação em razão da cor da pele: inadmissível”.

O problema não é sua predileção pelo artigo 5º, que contém a declaração de direitos individuais da Constituição de 1988; nem o silêncio sobre os artigos 6º (direitos sociais) e 7º (direitos dos trabalhadores), que informam ainda mais sua judicatura.

Poderia ser sua má compreensão do próprio art. 5º, cuja ideia de igualdade impõe diferenciar tratamento para reparar desvantagens decorrentes de raça, gênero etc. Ou sua desconsideração da legislação e da jurisprudência que consolidaram esse entendimento da igualdade.

Mas a medalha lhe é agraciada por violação de princípio elementar e universal da ética judicial. Diferentemente do cidadão comum, o juiz, em nome da instituição, deve ter recato na exibição gratuita de opiniões com a profundidade de um tuíte. Se não suporta o peso desse dever ético especial, é livre para sair. Inadmissível é a vaidade boquirrota.

Conrado Hübner Mendes

Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.