quarta-feira, 23 de setembro de 2020

O Febejapá não entra em quarentena, Conrado Hübner Mendes, FSP

  EDIÇÃO IMPRESSA

O ridículo autoritário precisa de cronistas. Afinal, além do gosto pela tortura, figuras brutas esbanjam estupidez e mau gosto. Stanislaw Ponte Preta narrava o grotesco da ditadura na série Febeapá - Festival de Besteiras que Assola o País. O Febeapá deu novas cores ao bestiário brasileiro.

A “redentora”, como chamava o golpe, fez os “cocorocas”, moralistas nascidos para policiar a minissaia, saírem do armário. Cocorocas gostam de “fazer democracia com as próprias mãos”.

General Heleno, típico cocoroca, tem se revoltado com Leonardo DiCaprio. Do alto de sua carranca, desqualifica a ciência climática e toda objeção ao descalabro ambiental do governo. Exige “autoridade moral para criticar”, como se sua missão no Haiti tivesse lhe dado credencial para qualquer coisa. O governo destrói a riqueza natural do país, seu maior trunfo na economia pós-carbono, para criar pasto. E “lesa-pátria” são os críticos.

Mas não é dos cocorocas clássicos que vim falar. Stanislaw deu pouca atenção à magistocracia. Subestimou matéria-prima preciosa para a galhofa. Juízes protagonizam o Febejapá - Festival de Barbaridades Judiciais que Assolam o País.

A história se repete, a primeira vez como besteira, a segunda vez como barbaridade. Barbaridades judiciais explodiram e a dignidade do ridículo magistocrático merece reconhecimento.

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Olhe para o Tribunal de Justiça de São Paulo. Sua honorabilidade é proporcional ao exemplo de seus presidentes recentes. Para Ivan Sartori, dois meses de férias serviam para “preservar a sanidade mental de juízes”; auxílio-moradia, para Nalini, ajudava a comprar “ternos em Miami”; Pereira Calças esbravejou: “Tenho vários imóveis, mas acho muito pouco”.

Pinheiro Franco, atual presidente do TJ, premiou essa coluna com duas notas públicas. Na primeira, disse que “juiz paulista vive a virtude como dever legal” e dissertou sobre a tese. Na segunda, disse que tenho “entendimento vesgo” e quero “denegrir a imagem da corte”. Quanto ao verbo “denegrir”, sugiro evitar. Quanto ao estrabismo, tribunal que chama o massacre do Carandiru de “motim”, e em 20 anos não puniu ninguém, dele também sofre.

O Febejapá vem aqui oferecer a medalha de mérito magistocrático da semana.

Poderia ir para João Otávio Noronha, ex-presidente do STJ, que concedeu prisão domiciliar a Queiroz enquanto negou a centenas. Nesses dias, Noronha solicitou a funcionários de gabinete ajuda na logística do casamento da filha (reportado pela Crusoé). Ao casamento compareceram filho de Bolsonaro e ex-esposa investigada.

Por falar em amor paterno, a medalha poderia ir para Luiz Fux, que já deixou legado de respeito para a tradição patrimonialista brasileira. Sua posse na presidência do STF, e os rapapés de bastidores, infectaram com coronavírus 8 autoridades até aqui. A grandeza da ocasião não admitia a prudência de uma posse online, como foi a do TSE.

A medalha, contudo, vai para a juíza do trabalho Ana Fischer, “aquela que gosta do artigo 5º”, como se apresenta no Twitter. Diante da política de contratação do Magazine Luiza, que adotou critério racial em programa de trainee, mostrou indignação e compartilhou pergunta de deputado: “E esse racismo, é do bem?”. Aproveitou e emendou: “Discriminação na contratação em razão da cor da pele: inadmissível”.

O problema não é sua predileção pelo artigo 5º, que contém a declaração de direitos individuais da Constituição de 1988; nem o silêncio sobre os artigos 6º (direitos sociais) e 7º (direitos dos trabalhadores), que informam ainda mais sua judicatura.

Poderia ser sua má compreensão do próprio art. 5º, cuja ideia de igualdade impõe diferenciar tratamento para reparar desvantagens decorrentes de raça, gênero etc. Ou sua desconsideração da legislação e da jurisprudência que consolidaram esse entendimento da igualdade.

Mas a medalha lhe é agraciada por violação de princípio elementar e universal da ética judicial. Diferentemente do cidadão comum, o juiz, em nome da instituição, deve ter recato na exibição gratuita de opiniões com a profundidade de um tuíte. Se não suporta o peso desse dever ético especial, é livre para sair. Inadmissível é a vaidade boquirrota.

Conrado Hübner Mendes

Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.

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