quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Na ONU, Bolsonaro fez discurso de vereador em caçamba de caminhão, FSP


Jair Bolsonaro abriu os debates da Assembleia Geral da ONU com um discurso de vereador em caçamba de caminhão. Defensivo, com momentos de delírio, viu-se "vítima de uma das mais brutais campanhas de desinformação sobre a Amazônia e o Pantanal".

Faz tempo, quando um oficial brasileiro perguntou ao general americano Vernon Walters quais eram os interesses do Estados Unidos na Amazônia, ele respondeu: "A Amazônia, é de vocês, cuidem dela". Walters conhecia o Brasil como poucos, chegou a percorrer de carro a rodovia Belém-Brasília.

O presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, grava discurso para a Assembleia Geral da ONU
O presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, grava discurso para a Assembleia Geral da ONU - Presidência do Brasil via AFP

As imagens de satélites e as fotografias da floresta mostram que não se está cuidando direito da Amazônia. Bolsonaro, contudo, estava na sua realidade paralela. Falou mal dos outros, bem de si, de seu governo e reclamou do preço da cloroquina.

A retórica dos agrotrogloditas encurralou Bolsonaro e hoje o setor moderno do agronegócio faz o possível para se afastar dele. Afinal, já houve épocas em que o governo brasileiro viu-se em posições canhestras no cenário internacional, mas d. Pedro 2º nunca saiu pela Europa defendendo a escravidão. Astuto, enquanto pode, fechou o acesso dos estrangeiros à navegação na Amazônia. Fez muito bem, pois alguns burocratas americanos pensaram na possibilidade de mandar para lá seus negros. Esse foi um tempo em que o andar de cima nacional mamava no atraso mas fingia que era inglês. Pela primeira vez, desde a chegada das caravelas portuguesas, o governo brasileiro está orgulhosamente apenso à agenda do atraso.

A fala de Bolsonaro foi antecedida por um pronunciamento do ministro-general Augusto Heleno que denunciou "nações, entidades e personalidades estrangeiras" com um "interesse oculto mas evidente" de "derrubar o governo Bolsonaro".

A retórica defensiva de Bolsonaro para a ONU e a denúncia de Heleno indicam que houve uma mudança de ares no Planalto. Em maio o capitão via-se desafiado pelo Judiciário e dizia que "vou intervir". Como e onde, nunca se soube, mas, na mesma linha, o general havia condenado uma iniciativa que "poderá ter consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional". No "vou intervir" estava implícita a ideia de que Bolsonaro dispunha de uma retaguarda, mas ela lhe faltou e as "consequências imprevisíveis" ficaram momentaneamente no campo da fantasia. Naqueles dias os mortos pela Covid eram 18 mil. Hoje são mais de 130 mil.

Ao contrário do que pensam o general Heleno e almas inquietas do Planalto, não há ninguém querendo "derrubar o governo Bolsonaro". O presidente tem contas a ajustar com o Judiciário por coisas que aconteceram antes de sua investidura e, ainda assim, seria exagero acreditar que desemboquem num impedimento. O verdadeiro jogo está na busca obsessiva pela reeleição e nisso pouco influirão "nações, entidades e personalidades estrangeiras". Tudo dependerá do desempenho do governo. Bolsonaro viu esse risco nos primeiros momentos da pandemia. Em março ele dizia: "Se a economia afundar, afunda o Brasil. E qual o interesse dessas lideranças políticas? Se acabar economia, acaba qualquer governo. Acaba o meu governo. É uma luta de poder".

Luta-se pelo poder. Em maio, no ataque. Em setembro, na defesa.

Elio Gaspari

Jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada".

 

THOMAS YAKSIC BECKDORF Como uma instituição cultural pode ser indispensável?, FSP

 Como para todos, obviamente é difícil para um artista ou um gestor cultural encontrar o lado positivo de uma crise sanitária que tem mantido centros culturais fechados. Apesar desse impacto esmagadoramente negativo, vislumbra-se uma oportunidade excepcional e proveitosa para focarmos de maneira quase exclusiva no planejamento e na gestão das organizações.

Forçados pela crise atual, tanto gestores quanto artistas voltaram-se para a internet para oferecer uma programação cultural, como acertadamente está fazendo a Osesp (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo). Antes da chegada da Covid-19, o streaming e as gravações eram, em geral, um suporte complementar às apresentações ao vivo. Hoje, é o único meio. As instituições que continuaram funcionando com programação pela internet entenderam que devem manter o vínculo com seu público e que têm uma função social a cumprir.

Neste novo contexto de consumo cultural, cabe indagar se uma instituição é imprescindível para sua comunidade e qual é sua real contribuição. Assim, distinguimos entre uma instituição cultural que oferece espetáculos variados sem uma “linha editorial” comum, de um lado, e uma que tenha uma missão clara e que busque um objetivo particular com sua programação, de outro.

A primeira limita-se ao mero entretenimento; a segunda busca ser relevante, mediante a educação e a discussão de temas que reflitam sobre o papel do ser humano em relação com seu ambiente —em suma, que abordam como a arte pode contribuir para o desenvolvimento da sociedade. A segunda é indispensável e pode se apresentar para buscar associados de longo prazo. As organizações culturais precisam ter uma identidade artística que as distinga, para fidelizar o público e ter um impacto positivo em suas comunidades.

Assim, o festival de ópera de Bayreuth, na Alemanha, foi concebido para apresentar o repertório wagneriano nas condições que o compositor imaginou originalmente. Bayreuth também é reconhecido por suas produções vanguardistas e provocadoras. De maneira similar, o Globe de Londres mantém a disposição do teatro elisabetano utilizado por Shakespeare e busca resgatar as práticas teatrais do início da Idade Moderna.

Se quando um centro cultural fecha suas portas e a produção que estava agendada pode apresentar-se da mesma maneira no teatro ao lado sem que altere em nada sua audiência, deduz-se que o público não estava identificado com a sala, mas sim com o espetáculo. Assim, é difícil observar a contribuição que esse centro cultural faz efetivamente para sua comunidade.

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Esta crise sanitária oferece um momento privilegiado para que uma organização cultural elabore um plano de ações próprio, que desenvolva ou potencialize o compromisso com sua comunidade, para assim tornar-se indispensável. Não é apenas uma questão de financiamento, mas sim de criatividade.