terça-feira, 22 de setembro de 2020

No reino encantado das pérolas e de ‘culpados’ irreais, OESP

 Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

22 de setembro de 2020 | 13h47

Em seu discurso de abertura da Assembleia-Geral da ONU, o presidente Jair Bolsonaro tentou evitar confrontos diretos, mas citou os grandes culpados pelas gigantescas mazelas nacionais: instituições internacionais, associações brasileiras impatrióticas, caboclos e índios que queimam seus roçados e, claro, a imprensa, sempre a imprensa. No mais, demonstrou plena convicção na “confiança do mundo em nosso governo”. Há controvérsias...

Depois do aperitivo do general Augusto Heleno na véspera, ao falar sobre meio ambiente, Bolsonaro ofereceu ao mundo a sua versão sobre a avalanche de críticas internas e externas, das mais variadas origens, à condução da pandemia e ao descaso com a preservação do meio ambiente no Brasil. Para ele, somos apenas “vítimas”.

Do quê? “De uma das mais brutais campanhas de desinformação sobre a Amazônia e o Pantanal”. E por quê? Porque “a Amazônia é sabidamente riquíssima”. Resultado? “O apoio de instituições internacionais a essa campanha escorada em interesses escusos”. Com quem? “Associações brasileiras aproveitadoras e impatrióticas”. Objetivo: “Prejudicar o governo e o próprio Brasil”.

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Bolsonaro ONU
Jair Bolsonaro e ministros assistem ao discurso do presidente na ONU Foto: Reprodução/@MinLuizRamos

Vamos dar nome aos bois. E, desta vez, eles não são de esquerda! Essa gente tão empenhada em “prejudicar o governo”, como disse Bolsonaro na ONU, ou em “derrubar o presidente”, como garantiu Heleno ao Supremo, são governos, parlamentos e sociedades de grandes democracias aliadas, como Alemanha e França, fundos investidores internacionais, banqueiros nacionais, setores de ponta do agronegócio, ex-ministros da Fazenda, ex-presidentes do Banco Central, ambientalistas de todo o planeta, economistas e a mídia doméstica e internacional.

Para quem compra absolutamente tudo o que o presidente diz, aqui vai uma dúvida: se todo esse universo tão poderoso e influente se uniu para derrubá-lo, como Bolsonaro ainda não caiu? “That’s the question.”

Num tom de confrontação mais ameno do que na estreia na ONU, em 2019, Bolsonaro acabou evitando ataques a organismos internacionais, fazendo apenas rápida referência à reforma da OMC, aliás, liderada pelos Estados Unidos. No mais, fez um relatório – com a sua própria versão, claro –  sobre pandemia e queimadas, acusou o “óleo venezuelano” pelo desastre nas nossas praias e apoiou os processos de paz no Oriente Médio. Aproveitou o ensejo, nesta parte, para elogiar Donald Trump. Isso não poderia faltar!

Um ponto importante do discurso foi quando Bolsonaro destacou que o Acordo Mercosul-União Europeia “possui importantes cláusulas que reforçam nossos compromissos com a proteção ambiental”. Assumiu assim, explicitamente, seu compromisso, e o do Brasil, com as cláusulas ambientais. Anotem, para cobrar.

Algumas pérolas de negacionismo:

1) “Desde o início, alertei, em meu País, que tínhamos dois problemas para resolver: o vírus e o desemprego, e que ambos deveriam ser tratados simultaneamente”.

Não é verdade. Desde o início, o presidente não tratou a pandemia com seriedade, como um problema gravíssimo, que mata milhares. Negou o vírus, combateu o isolamento social, desdenhou de todas as orientações médicas e científicas.

2) “Parcela da imprensa brasileira politizou o vírus, disseminando o pânico entre a população. Sob o lema ‘fique em casa’ e ‘a economia a gente vê depois’, quase trouxeram o caos social ao País”.

Nada mais falso. Graças à mídia, a população teve informações fundamentais sobre a gravidade do vírus e sobre quais as medidas possíveis para evitar o pior. Informações que o governo se recusou deliberadamente a dar, tanto que dois ministros da Saúde se rebelaram.

3) “Nosso governo (...) estimulou, ouvindo profissionais de saúde, o tratamento precoce da doença”.

Em vez de ouvir a OMS, o Ministério da Saúde, epidemiologistas e especialistas na área, o presidente ouviu apenas amigos, aliados e interesseiros para propagandear a cloroquina – que não tem comprovação científica em nenhum lugar do mundo, nem nos EUA.

4) “Temos a matriz energética mais limpa e diversificada do mundo”, “preservamos 66% de nossa vegetação nativa e usando apenas 27% do nosso território para a pecuária e agricultura”, “(temos) a melhor legislação ambiental do planeta”.

É verdade. Graças ao que? Aos governos anteriores, à evolução do setor agropecuário e ao Congresso Nacional, que agora acusam o governo justamente de retrocessos e grave ameaça a essas conquistas.

5) “Os incêndios acontecem (...) onde o caboclo e o índio queimam seu roçado”

Ninguém melhor do que o caboclo e o índio para conhecer e proteger o ambiente, enquanto a Polícia Federal investiga em direção oposta: fazendeiros inescrupulosos.

6) “Os focos criminosos são combatidos com rigor e determinação”.

Será?

7) “Não é só na preservação ambiental que o Brasil se destaca. No campo humanitário e dos direitos humanos, o Brasil vem sendo referência internacional.”

Não é o que os especialistas e as estatísticas dizem...

8) “No primeiro semestre de 2020, apesar da pandemia, verificamos um aumento do ingresso de investimentos (...). Isso comprova a confiança do mundo no nosso governo.”

As manifestações, críticas, cobranças e perplexidade em vários continentes vão no sentido contrário.

9) “Apresentamos ao Congresso duas novas reformas: a do sistema tributário e a administrativa.”

A verdade: não tem reforma tributária, só uma proposta pontual, e a administrativa ficou trancada quase um ano na gaveta, só saiu sob pressão.

10) “O Brasil saúda o Plano de Paz e Prosperidade lançado pelo presidente Donald Trump.”

Usar o fim do discurso na ONU para badalar Trump, que disputa a reeleição daqui a alguns dias, é totalmente fora de propósito. Os democratas nos EUA que o digam.


TSE vai testar em novembro sistema que permite votar pela internet, sem sair de casa, OESP

 Vinícius Valfré, O Estado de S. Paulo

22 de setembro de 2020 | 13h45

BRASÍLIA - O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) vai usar as eleições municipais de novembro para testar mecanismos que, no futuro, poderão permitir votações pela internet, a partir do telefone celular, sem sair de casa. O novo sistema não vai valer para a disputa deste ano, mas é mais uma tentativa da Corte eleitoral para ampliar a participação de eleitores no processo de escolha de seus representantes. O objetivo é também encontrar formas de reduzir custos do processo eleitoral, a exemplo de experiências de outros países.

Um chamamento a empresas interessadas em apresentar modelos virtuais que poderiam vir a ser utilizados foi publicado nesta segunda-feira, 21. A ideia do TSE é distribuir estandes com sistemas experimentais, na votação de 15 de novembro, nas cidades de Curitiba (PR), Valparaíso de Goiás (GO) e São Paulo (SP).

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TSE
Prédio sede do Tribunal Superior Eleitoral.  Foto: Dida Sampaio / Estadão

As companhias que se habilitarem poderão montar uma estrutura dentro de locais de votação, em espaços abertos e com ampla circulação. Os eleitores dessas cidades estariam livres para experimentar os sistemas a partir dos próprios smartphones. Os testes não guardarão qualquer relação com as escolhas oficiais de prefeitos e vereadores que acontecerão neste ano.

As demonstrações terão candidatos e partidos fictícios e não haverá compartilhamento de dados eleitorais com as empresas que se oferecerem para apresentar suas tecnologias. As firmas interessadas deverão manifestar o interesse ao TSE entre 28 de setembro e 1º de outubro. Em seguida, haverá uma série de reuniões com a equipe técnica da Corte. 

A partir da experiência nas eleições de novembro, o TSE pretende debater estratégias para eventuais mudanças no sistema brasileiro de votações. Na Corte eleitoral há um grupo de trabalho que se dedica a estudar novas tecnologias para modernizar o processo. Conforme o tribunal informou nesta segunda, 21, porém, não é possível dizer se ou quando um novo tipo de procedimento será implementado.

No TSE, as estratégias para inovar com sistemas de participação passam obrigatoriamente pela preservação de três critérios: segurança, sigilo e eficiência. As urnas eletrônicas historicamente cumprem esses requisitos de forma satisfatória. No entanto, as máquinas demandam custos elevados de manutenção, substituição e de logística, por conta dos envios aos rincões do Brasil.

"Mesmo que, em um primeiro momento, os eleitores continuem a ter que comparecer às seções eleitorais, para a proteção do sigilo, só a economia de centenas de milhões de reais com a substituição de urnas já representa um grande ganho. Nós estamos em busca de inovações, mas sem abrir mão do controle do sistema e do processo eleitoral, que continuará sob o comando do TSE", informou, em nota, o tribunal presidido pelo ministro Luís Roberto Barroso.

México e Estônia já adotam o sistema de votação online

Caso o Brasil venha a permitir o voto online, não será pioneiro. O coordenador-geral da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep), Marcelo Weick Pogliese, afirma haver experiências bem-sucedidas em alguns municípios do México e na Estônia, por exemplo. O país europeu é considerado um paradigma de democracia e governo digital. Em 2007, os estonianos foram os primeiros a fazer uma eleição geral pela internet.

“O Brasil, por exemplo, não faz tantos plebiscitos e referendos, sob o pretexto de que é caro demais. Pela internet, nos municípios, poderíamos melhorar formas de consulta popular. É óbvio que nada será transformado da noite para o dia, mas o legal é que o TSE está tendo essa preocupação com o futuro. Em tese, você permite outras formas de acesso”, disse Pogliese.

Com uma tese de doutorado que se debruçou sobre votações digitais, o coordenador da Abradep afirma que é possível manter a segurança das eleições. Há uma série de alternativas tecnológicas que podem equiparar o nível do sigilo do voto pela internet, a partir de casa, com o da urna eletrônica. Como exemplo, ele cita o mecanismo que sempre vai considerar o último voto do eleitor. Dessa forma, uma escolha feita eventualmente sob coação poderia ser facilmente revista mais tarde, em segredo. Outra saída seria limitar um voto por dispositivo. 

“Teríamos que ter um conjunto de cuidados. Não defendemos que se acabe com o voto presencial, com a urna eletrônica. Mas defendemos que o voto eletrônico seja uma alternativa”, afirmou o especialista.

A Abradep formalizou ao TSE, em maio, pedido para que a Corte considerasse a opção. Em relatório, destacou que o Comitê de Ministros do Conselho Europeu aprovou recomendação, em 2017, com princípios e padrões de respeito ao sufrágio universal, igualdade, liberdade do sufrágio, o sigilo do voto, transparência, auditabilidade, integridade e segurança do sistema. É um tema que já está colocado no mundo em virtude da maneira como os cidadãos interagem com dispositivos eletrônicos para as mais complexas tarefas diárias. 

“Como se ainda não bastasse, a consolidação das tecnologias de comunicação e informação no cotidiano das pessoas tende a aumentar o estranhamento de eleitores mais jovens com o modelo atual. Por que não votar pela internet se posso fazer tudo pela internet Talvez essa pergunta não ocorra às gerações mais antigas, mas certamente faz sentido a uma fatia crescente do eleitorado”, destaca o “Caminhos para as eleições brasileiras em meio à pandemia”, lançado este ano pela entidade.


segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Luiz Felipe Pondé - O politicamente correto é hoje métrica do marketing digital, a nova sociologia, FSP

 As universidades mergulham na irrelevância, transformando-se em ninhos de debates ridículos e mediocridade conglomerada. As grandes marcas acadêmicas buscam formas de enfrentar esse processo.

Talvez encontrem essas formas nas plataformas digitais e em criações mais autônomas dentro das próprias universidades, que privilegiem mais as inciativas ágeis em detrimento da política do quadro docente, sempre pobre de espírito, visando a criação de uma “nomenclatura” que sirva a si mesma dentro da instituição acadêmica.

A irrelevância da universidade tem várias causas. Uma delas é a gigantesca burocracia que serve a quadros humanos menos criativos e mais inerciais. Criada para aferir a produtividade, essa burocracia transforma a coordenação num grande conto do Kafka, agora, mergulhando a barata no fetiche do online.

Ilustração mostra baratas em escritório
Ilustração de Ricardo Cammarota - Ricardo Cammarota/Folhapress

Uma ferramenta destrutiva da universidade privada é a submissão necessária ao marketing: em breve, ele ditará toda forma de conteúdo. Acompanhar o modo como todos se submetem as opiniões da sua majestade, o seguidor, é humilhante. Na busca por fidelizar os pais, as universidades privadas prometem a estes que seus “filhes” serão “alunes” que criarão algoritmos que salvarão o mundo, abraçarão árvores e terão corações puros.

Já que citei a nova gramática fascista de gênero (um dos traços de todo processo totalitário é a “reforma” da língua), vamos a ela.

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Recentemente, universidades tem renomeado espaços internos para servir à nova inquisição, que vai além do fascismo de gênero. Até o grande filósofo cético escocês David Hume, do século 18, um dos maiores filósofos ocidentais, foi cancelado em seu país natal. As universidades têm se tornado espaços de taras ideológicas, e isso as aproxima de igrejas fundamentalistas, formando jovens alienados nessas mesmas taras.

A praga do politicamente correto atravessou as fronteiras ideológicas. Só gente mal-informada acha que ele seja um traço apenas da esquerda. O politicamente correto é hoje uma métrica do marketing digital, a nova sociologia. O novo centro da política ideológica descolada.

Utilizemos a fórmula didática de esquerda x direita para deixar isso mais claro. Da centro-direita (amantes do mercado e da liberalização dos costumes dentro dos limites impostos pelas métricas do marketing digital) à centro-esquerda (a esquerda americana que está fazendo das universidades igrejas identitárias), todos rezam no altar do fascismo correto de gênero. A extrema direita se oferece, falsamente , como antídoto às igrejas identitárias, em troca de fazer de você um boçal reacionário terraplanista idiota.

A centro-esquerda, tendo perdido a verdadeira vocação da esquerda (destruir o capitalismo), passou a ser uma crítica de brinquedo ao mundo. Um teste definitivo pra você ver se uma crítica social é de brinquedo é ver se ela cabe na publicidade. Se couber, esqueça. Paulatinamente, os professores, pesquisadores e afins se transformam em repetidores de códigos ridículos tipo “querides alunes”.

A esquerda deve buscar a Rússia do século 19 e início do 20 como referência para refletir sobre sua história, e não os modismos das universidades americanas. A partir do aparente impasse diante do modo de produção capitalista, a esquerda procurou novos mercados ideológicos. A esquerda de hoje é um fetiche do capitalismo cujo “cérebro” é Hollywood.

E a própria pandemia é hoje uma commodity e só vai acabar quando o capital deixar de vê-la como um ativo. Só bobos acham que o que está em jogo são vidas humanas. O susto passou.

A “reforma” da gramática introduzindo recursos como “e”, “x” ou “@” como opção ao “o” e “a” é um sintoma claro do surto identitário histérico. Este é um dos riscos de irrelevância da universidade porque a transforma em geradora e reprodutora de um pseudodebate que serve pouco a um dos problemas centrais da modernidade: como responder à riqueza material indiscutível do capitalismo sem capitular diante da destruição do mundo cognitivo e afetivo levado a cabo pela submissão do pensamento ao marketing, agora, digital?

Luiz Felipe Pondé

Escritor e ensaísta, autor de “Dez Mandamentos” e “Marketing Existencial”. É doutor em filosofia pela USP.