sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Após 50 anos, documentos apontam ordem de Nixon para derrubar Allende no Chile, FSP

 Em 15 de setembro de 1970, durante uma reunião de 20 minutos, o presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, deu ordem para impedir que o líder socialista eleito no Chile, Salvador Allende, assumisse o poder, de acordo com documentos publicados na última terça-feira (15) pela National Security Archive, uma organização não governamental com sede em Washington.

O conjunto de relatórios denominado "A Opção Extrema: Derrubar Allende" é o anexo de um estudo de segurança nacional que analisou vantagens e desvantagens de um golpe militar apoiado pelo governo americano no Chile.

Esse "roteiro", que terminou com o golpe de 11 de setembro de 1973, foi concluído em meados de agosto de 1970, ou seja, antes do triunfo eleitoral de Allende. O arquivo inclui memorandos dos funcionários envolvidos, incluindo Richard Helms, o então diretor da CIA, agência de inteligência dos EUA.

Ativista em defesa dos direitos humanos protesta em local próximo a memorial em homenagem ao presidente chileno Salvador Allende, em Santiago
Ativista em defesa dos direitos humanos protesta em local próximo a memorial em homenagem ao presidente chileno Salvador Allende, em Santiago - Claudio Reyes - 11.set.20/AFP

"O memorando enigmático de Helms sobre a conversa com Nixon continua sendo o único registro de um presidente americano ordenando um golpe secreto para derrotar um líder eleito", ressaltou o grupo de estudos, segundo o qual, os documentos traçam a "gênese da diretriz presidencial".

"Esses documentos traçam um roteiro para o golpe planejado pelos EUA”, explicou Peter Kornbluh, que dirige o projeto de documentação no Chile e é autor do livro “Pinochet: Os Arquivos Secretos".

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Segundo o pesquisador, a reunião de 15 de setembro no Salão Oval, há 50 anos, marca "o primeiro grande passo para minar a democracia no Chile e apoiar o advento de uma ditadura militar".

Após a eleição de Allende, em 4 de setembro de 1970, o governo americano debateu dois possíveis cenários. Um deles foi chamado de "fórmula Frei" e contava com o ex-presidente do Chile Eduardo Frei "para dar conta do golpe". Essa opção foi descartada depois de a embaixada e a CIA concluírem que não poderiam contar com Frei.

De acordo com a National Security Archive, a alternativa foi a "fórmula do caos", com o objetivo de criar um "clima de golpe" para dar aos militares o pretexto de tomar o poder. "Um número significativo de agentes da CIA, embaixadas e funcionários do Departamento de Estado" se opôs aos planos, afirma a ONG no relatório.

O plano chegou a ser considerado "pouco realista, sujeito ao fracasso e diplomaticamente perigoso, observando que os riscos de exposição superariam os ganhos potenciais para os interesses dos EUA".

A divisão latino-americana do Departamento de Estado se opôs formalmente à derrubada de Allende, declarando que "a exposição a um golpe malsucedido implicaria um custo proibitivamente alto para as relações com o Chile, com o hemisfério e com o resto do mundo". Até mesmo os assessores do conselheiro de Segurança Nacional da Casa Branca, Henry Kissinger, expressaram relutância.

Na época, o embaixador americano em Santiago, Edward Korry, advertiu que estava convencido de que os EUA poderiam provocar um golpe, mas que não se deveria correr o risco de ter "outra Baía dos Porcos", em referência à fracassada tentativa de invasão de Cuba. "O que estamos propondo é uma violação flagrante de nossos próprios princípios", disse o vice de Kissinger, Viron Vaky.

Kornbluh disse à agência de notícias AFP que "esses documentos fornecem um rastro de papel cumulativo que expõe uma das operações mais vergonhosas e desacreditadas nos anais da política externa dos EUA, a promoção de um golpe de Estado preventivo no Chile".

"Esses documentos são um lembrete nítido e doloroso de que tentar mudar o regime é um objetivo ilegítimo, custoso e contraproducente”, afirma o autor. A derrubada de Allende, que morreu sitiado no palácio La Moneda em chamas após os bombardeios da Força Aérea no dia do golpe, deu lugar a 17 anos de ditadura de Augusto Pinochet, que deixou mais de 3.200 mortos e desaparecidos.

As chamas da negação, Fernando Gabeira, O Estado de S.Paulo


18 de setembro de 2020 | 03h00

As chamas ardem na Costa Oeste dos Estados Unidos e em dois importantes biomas nacionais, Amazônia e Pantanal. Debates essenciais nascem desses incêndios. O primeiro deles subiu para o topo da agenda na campanha para a presidência dos EUA: o aquecimento global. Lá, como aqui, há os que aceitam as evidências científicas e os que as negam.

Um segundo debate decorre do próprio princípio de precaução. Se há realmente mudanças climáticas, os incêndios serão mais intensos a cada ano. Logo, é razoável nos preparamos melhor, em vez de sermos anualmente derrotados por eles.

No Pantanal já foram destruídos mais de 22 mil km2 de vegetação, uma área do tamanho de Israel. Serpentes e jacarés carbonizados estão por toda parte, o refúgio das araras azuis está ameaçado, chamas em Porto Jofre, onde se concentra uma centena de onças-pintadas.

O desastre neste ano é muitas vezes maior que o do ano passado, que tive a oportunidade de documentar. Muito possivelmente, a julgar pelas notícias, a maioria dos focos de incêndio foi provocada. Talvez por pessoas que sonham com um Pantanal transformado apenas em pastagens e campos plantados. Ignoram a riqueza que estão destruindo. São os mesmos que sonhavam em transformar a região em grandes canaviais. Não percebem que ao destruir a vegetação arruínam todo o ecossistema, os próprios peixes que se alimentam de pequenos frutos tendem a desaparecer.

Essa incompreensão básica está também no Palácio do Planalto. Bolsonaro sonha com campos de soja, muito gado, o que na cabeça dele significa aumento da produção. Deve ser por isso que todos riram no palácio quando uma jovem blogueira perguntou pelo incêndio no Pantanal.

Bolsonaro nega o aquecimento global. E pratica sua negação. As verbas para a prevenção de incêndios caíram sistematicamente de 2018 para cá. As destinadas a brigadas, que eram de R$ 23 milhões, foram reduzidas a R$ 9, 9 milhões.

Ele caminha decisivamente na contramão das tendências climáticas. Acha que seu voluntarismo pode afrontá-las com a mesma naturalidade com que muda as regras de trânsito. Em ambos os casos colheremos mortes e destruição.

Cessado o fogo, será difícil articular um projeto de replantio. Os bichos e a mata atrapalham a produção. A ajuda internacional será vista como ameaça à soberania nacional.

Apesar do negacionismo de Trump, o horizonte no Brasil é mais sombrio. Bolsonaro representa um tipo de pensamento que existe também em parte dos fazendeiros e amplamente nas Forças Armadas. Esse tipo de pensamento relaciona destruição ambiental com progresso. O próprio ministro Paulo Guedes disse que os americanos tinham destruído suas florestas e acabado com índios.

É o tipo de argumento clássico do pensamento dominante no governo brasileiro, hoje uma estranha amálgama de generais do Exército e pastores evangélicos. Não há outro caminho senão tentar convencê-los, antes que consigam destruir o País na suposição de que fortalecem a soberania terrena e nos aproximam do reino dos céus.

A produtividade de agrofloresta é um exemplo na Amazônia. Os lucros da exploração sustentável de açaí e castanha são outro. O potencial turístico do Pantanal, a própria capacidade do bioma de atrair investimentos, tudo isso tem de ser repetido à exaustão.

As gargalhadas diante das chamas que devoram um bioma como o Pantanal revelam apenas a distância entre a pobreza da mentalidade dominante e a riqueza de nossos recursos naturais. A utopia de um mundo plantado de soja, subsolo revolvido em busca de minérios, gado pastando na relva – tudo guardado por um exército vigilante, que pinta de branco as poucas árvores que restam, é, na verdade, um pesadelo. Seríamos uma nação que construiu com tenacidade um imenso deserto, teríamos transformado o mundo no espelho do nosso universo mental.

Quem acompanha o desastre do Pantanal desejaria que Bolsonaro tivesse uma ideia mínima do que está acontecendo. Com um pouco de humildade, ele se arrependeria de chamar as ONGs de um câncer que gostaria de extirpar. São as ONGs que se põem em campo, salvando grande parte dos animais feridos, sem nenhuma estrutura ou base financeira além da cooperação voluntária.

Quando cobri um desastre na Galícia constatei que o próprio governo pôs à disposição um pequeno hospital para as aves marinhas atingidas. Comparadas com a fauna do Pantanal, as aves marinhas da Galícia são só um pequeno grupo.

Aqui, no Brasil, o trabalho é feito pela sociedade. Não importam os insultos vindos do mundo oficial, a esperança de reduzir o impacto destrutivo dessa passagem do fundamentalismo pelo poder ainda se baseia em solidariedade e trabalho voluntário. E tudo isso nos alcança num momento de pandemia, em que a capacidade de reação é limitada.

Ao intenso ataque do vírus soma-se a fumaça que atinge as grandes cidades da região. Restou-nos apenas a negação da dupla negação do governo: coronavírus e aquecimento global. Em ambos os casos, resistimos. Mas é impossível deixar de sonhar com um país em que governo e sociedade enfrentem juntos os desastres naturais e sanitários. A vida seria menos difícil.

JORNALISTA

Hipermercado chamado Amazon representa bem o ar pútrido do tempo, João Pereira Coutinho, FSP (definitivo)

 João Pereira Coutinho

CONTRA AMAZON E OUTROS ENSAIOS SOBRE A HUMANIDADE DOS LIVROS

  • Preço R$ 49,90 (304 págs.)
  • Autor Jorge Carrión
  • Editora Elefante
  • Tradução Reginaldo Pujol Filho e Tadeu Breda

A vida é mais fácil quando lemos. É o único conselho que dou a quem me pergunta por que motivo ler é importante.

Sei que existem teorias para todos os gostos —ler para saber mais, ler para sermos melhores etc. A minha é simples, quase estoica: a vida pode ser confusa, injusta e brutal. Mas saber que existem livros funciona em mim como a cápsula de cianeto para os soldados apanhados pelo inimigo.

Mas existe outra pergunta comum em matéria de leitura: alguém entra lá em casa, olha para as estantes e questiona se eu já li tudo aquilo. Se a resposta fosse afirmativa, só me restava mesmo a cápsula de cianeto. A verdadeira. As nossas bibliotecas não são apenas o depósito do passado ou do presente. São também uma promessa de futuro: enquanto existirem livros para ler, talvez a eternidade seja possível.


O escritor espanhol Jorge Carrión é uma alma gêmea nestas matérias. Conheci o autor com o seu “Librerías”, de 2012, uma espécie de guia físico e espiritual sobre as livrarias ao redor do mundo que espero um dia visitar. Neste “Contra Amazon e Outros Ensaios sobre a Humanidade dos Livros”, Carrión regressa ao lugar do crime para partilhar algumas meditações, confissões e idiossincrasias.

Entre as últimas, está o método que Carrión usa para organizar a sua biblioteca. Pessoalmente, divido os livros em três categorias: ideias, histórias e ficções. Depois, no interior de cada uma delas, limito-me à cronologia (nas ideias e nas histórias) ou às pátrias linguísticas (nas ficções).

Mas admito que Carrión faz melhor: amigos, conhecidos e futuros. Os amigos ficam no escritório porque são íntimos. Os conhecidos ficam na sala de jantar, porque se recebem com simpatia. Os futuros vão para o corredor e –quem sabe?– talvez um dia possam ser íntimos ou estimáveis visitas.

E que dizer do desaparecimento dos livreiros cultos, que conheciam bem o seu jardim e as plantas que cresciam nas estantes? Hoje, como escreve Carrión, vamos a uma Fnac, pedimos o “Quixote” e o funcionário pergunta pelo nome do autor. Depois vai ao computador para ver se tem o livro e, pior, muito pior, em que tipo de estante ele pode ser encontrado.

É esse tipo de barbárie, aparentemente inofensiva e silenciosa, que Carrión lamenta com a alma abatida de um “flâneur”. Mas nada representa tão bem o ar pútrido do tempo como esse hipermercado que também tem livros e que dá pelo nome de Amazon.

Aqui, o meu coração balança. Concordo com Carrión sobre a destruição das livrarias de bairro pela gigante de Jeff Bezos; sobre a pilhagem de dados pessoais que os livros eletrônicos cometem; e até sobre um pensamento luminoso e sutil (“o desejo não pode ser imediatamente saciado”) que a Amazon, obviamente, não conhece.

A esse respeito, lembro-me bem da adolescência, quando a procura de um livro fortemente desejado durava semanas ou meses, como se eu fosse um caçador de borboletas em busca de um exemplar raro. A alegria de encontrar, folhear, comprar e ler nunca mais se repetiu. Cada livro era uma conquista penosa, orgulhosa. Redentora.

Hoje, quando tudo está à distância de um clique, algo se perdeu, admito. Mas também admito que algo se ganhou: o acesso a autores preciosos que, de outra forma, dificilmente seriam meus amigos. Como esquecer esses milagres virtuais que viajaram até a minha porta?

Não consigo. Mas proponho um compromisso a mim próprio: por cada livro que encomendo na Amazon, comprarei outro na livraria da minha rua.