sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Hipermercado chamado Amazon representa bem o ar pútrido do tempo, João Pereira Coutinho, FSP (definitivo)

 João Pereira Coutinho

CONTRA AMAZON E OUTROS ENSAIOS SOBRE A HUMANIDADE DOS LIVROS

  • Preço R$ 49,90 (304 págs.)
  • Autor Jorge Carrión
  • Editora Elefante
  • Tradução Reginaldo Pujol Filho e Tadeu Breda

A vida é mais fácil quando lemos. É o único conselho que dou a quem me pergunta por que motivo ler é importante.

Sei que existem teorias para todos os gostos —ler para saber mais, ler para sermos melhores etc. A minha é simples, quase estoica: a vida pode ser confusa, injusta e brutal. Mas saber que existem livros funciona em mim como a cápsula de cianeto para os soldados apanhados pelo inimigo.

Mas existe outra pergunta comum em matéria de leitura: alguém entra lá em casa, olha para as estantes e questiona se eu já li tudo aquilo. Se a resposta fosse afirmativa, só me restava mesmo a cápsula de cianeto. A verdadeira. As nossas bibliotecas não são apenas o depósito do passado ou do presente. São também uma promessa de futuro: enquanto existirem livros para ler, talvez a eternidade seja possível.


O escritor espanhol Jorge Carrión é uma alma gêmea nestas matérias. Conheci o autor com o seu “Librerías”, de 2012, uma espécie de guia físico e espiritual sobre as livrarias ao redor do mundo que espero um dia visitar. Neste “Contra Amazon e Outros Ensaios sobre a Humanidade dos Livros”, Carrión regressa ao lugar do crime para partilhar algumas meditações, confissões e idiossincrasias.

Entre as últimas, está o método que Carrión usa para organizar a sua biblioteca. Pessoalmente, divido os livros em três categorias: ideias, histórias e ficções. Depois, no interior de cada uma delas, limito-me à cronologia (nas ideias e nas histórias) ou às pátrias linguísticas (nas ficções).

Mas admito que Carrión faz melhor: amigos, conhecidos e futuros. Os amigos ficam no escritório porque são íntimos. Os conhecidos ficam na sala de jantar, porque se recebem com simpatia. Os futuros vão para o corredor e –quem sabe?– talvez um dia possam ser íntimos ou estimáveis visitas.

E que dizer do desaparecimento dos livreiros cultos, que conheciam bem o seu jardim e as plantas que cresciam nas estantes? Hoje, como escreve Carrión, vamos a uma Fnac, pedimos o “Quixote” e o funcionário pergunta pelo nome do autor. Depois vai ao computador para ver se tem o livro e, pior, muito pior, em que tipo de estante ele pode ser encontrado.

É esse tipo de barbárie, aparentemente inofensiva e silenciosa, que Carrión lamenta com a alma abatida de um “flâneur”. Mas nada representa tão bem o ar pútrido do tempo como esse hipermercado que também tem livros e que dá pelo nome de Amazon.

Aqui, o meu coração balança. Concordo com Carrión sobre a destruição das livrarias de bairro pela gigante de Jeff Bezos; sobre a pilhagem de dados pessoais que os livros eletrônicos cometem; e até sobre um pensamento luminoso e sutil (“o desejo não pode ser imediatamente saciado”) que a Amazon, obviamente, não conhece.

A esse respeito, lembro-me bem da adolescência, quando a procura de um livro fortemente desejado durava semanas ou meses, como se eu fosse um caçador de borboletas em busca de um exemplar raro. A alegria de encontrar, folhear, comprar e ler nunca mais se repetiu. Cada livro era uma conquista penosa, orgulhosa. Redentora.

Hoje, quando tudo está à distância de um clique, algo se perdeu, admito. Mas também admito que algo se ganhou: o acesso a autores preciosos que, de outra forma, dificilmente seriam meus amigos. Como esquecer esses milagres virtuais que viajaram até a minha porta?

Não consigo. Mas proponho um compromisso a mim próprio: por cada livro que encomendo na Amazon, comprarei outro na livraria da minha rua.

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