domingo, 13 de setembro de 2020

Luis Fernando Verissimo- Supertio, OESP

 As crianças não tinham a menor dúvida de que o tio Aníbal era um super-herói com superpoderes. Tudo começara com um almoço em família em que todo mundo tentara abrir um pote, sem sucesso, e o tio Aníbal conseguira sem dificuldade, com um rápido deslocamento da tampa. Nascia um mito.

O próprio tio Aníbal passara a alimentar o mito, inventando façanhas para agradar às crianças – que pareciam não se importar com o fato de que, de todos os feitos do tio, só a abertura do pote tivera testemunhas. Os mitos não requerem comprovante.

Outro dia, em outro almoço em família, alguém comentou que não se ouvia mais falar em gente atravessando o Canal da Mancha a nado. Ninguém mais atravessava o canal a nado, ou atravessavam, mas não era mais notícia?

– Eu atravessei – disse o tio Aníbal.

– Quando, titio?

– Esta manhã, antes de vir para cá.

Grande manifestação de alegria das crianças com a façanha do tio Aníbal. Que tinha mais detalhes sobre a sua conquista. Só não quebrara o recorde da travessia porque fora obrigado a nadar apenas com uma mão. 

– O que havia na outra mão, titio?

– Uma garrafa de champanhe, que eu bebia a cada dez braçadas.

Grande comemoração das crianças com mais aquela do supertio.

É preciso dizer que o Aníbal quase não falava nos almoços em família. Era o que sua própria irmã, mãe das crianças, chamava de “apagado”, resignado à sua insignificância. E que de repente, graças às histórias que inventava para as criança, se transformara no centro de atenção dos almoços. Um herói que ninguém imaginava. 

– Titio, você voa?

– Voo. 

– Voa pra nós. Pela janela.

– Não estou com vontade.

– Pô, titio! Pra gente ver.

Aníbal ficou sério, olhando para a janela. Levantou-se do seu lugar na mesa de almoço, decidido a não decepcionar as crianças. Decidido a não decepcionar a si mesmo. Correu, e atirou-se pela janela, em meio a uma gritaria geral.  

A história termina aqui, mas, se você insiste em saber o que veio depois, informo que, felizmente, o apartamento é no térreo e Aníbal só teve um corte na cabeça que talvez, segundo ele, afete a visão de raio X, o superpoder que lhe permite enxergar a calcinha das moças.

Se o Brasil achar solução para si, vai salvar o resto do mundo, diz Bruno Latour, FSP

 12.set.2020 às 16h00

SÃO PAULO

“A ausência de um mundo comum está nos enlouquecendo”, afirma o francês Bruno Latour, um dos mais destacados pensadores da filosofia da natureza e da ecologia política.

Ele conecta as múltiplas crises que vivemos com o dilema ambiental —que para ele não é mais uma crise, mas uma mutação— e defende que o negacionismo climático iniciado nos anos 1990 está na raiz do escapismo da realidade, fenômeno que teria levado às eleições de Donald Trump e de Jair Bolsonaro e que agora se reflete na negação da pandemia.

Suas duas obras mais recentes apresentam essas ideias de forma complementar. “Diante de Gaia: Oito Conferências Sobre a Natureza no Antropoceno” (ed. Ubu, 480 págs.) mune o leitor de ferramentas filosóficas, enquanto “Onde Aterrar? - Como se Orientar Politicamente no Antropoceno” (ed. Bazar do Tempo, 160 págs.) funciona como guia de intervenção sobre a conjunção das crises política e ecológica. Os dois livros foram lançados em julho no Brasil.

Na entrevista por chamada de vídeo de sua casa em Paris, Latour afirma que nenhum outro país enfrenta sobreposição de crises tão extremas quanto o Brasil, “onde está visível tudo aquilo que vai ser importante nas próximas décadas”.

Bruno Latour olhando para frente com vegetação ao fundo
Bruno Latour - Fabio Seixo/Divulgação

Em “Diante de Gaia”, o sr. aponta o negacionismo climático iniciado nos anos 1990 como raiz para a ascensão da extrema direita, assim como para a negação da ciência e até mesmo da pandemia. Como o sr. chegou a essa relação? 
É bem óbvio que o negacionismo não pode ser justificado por nenhum efeito cognitivo. Há algo por trás da negação da realidade, porque se sua casa está pegando fogo e você diz “não, nada está acontecendo”, sua mente não consegue processar isso. Isso significa, para sua mente, que você terá outra casa para onde você pode se mudar, então você pode deixar essa aqui queimar. Esse negacionismo é como se eu não vivesse no mesmo planeta que você.

Então o desafio climático é chave para entender as múltiplas crises que vivemos hoje? 
Desde os anos 1980 há algo estranho que excede o neoliberalismo. Minha interpretação é bem simples e infelizmente está sendo confirmada pelos acontecimentos no Brasil, na Rússia, nos EUA, na Inglaterra. Trata-se basicamente do escapismo. Uma parte da sociedade decidiu escapar da Terra e isso explica termos essa incrível divisão no mundo. E não tem nada a ver com a clássica divisão entre vermelho e azul, esquerda e direita. A única forma de explicá-la é trazendo para o quadro o que eu chamo de novo regime climático –que não trata só do clima, mas da Terra.

Há uma tendência de se reduzir a pauta do clima à retirada de carbono da atmosfera. Existe o risco de resolvermos a conta climática sem encarar o desafio ecológico?  
Toda vez que alguém tenta limitar a questão do clima à emissão de CO2, acaba falando sobre todo o restante. Pegue só o CO2 e veja onde ele lhe leva. Ele leva a todo lugar.

Quem atua com outras agendas, como a do antirracismo ou do feminismo, também pode entender que essas são as pautas centrais. Como o sr. dialoga com pautas que ganham força? 
É por isso que chamo o que vivemos de novo regime climático: não trata apenas de retirar carbono da atmosfera mas de todas as outras condições da existência. Agora a crise é tamanha que já se entende que o mundo todo vai ser impactado, mas que os mais impactados são aqueles que sofrem com as desigualdades. Fiquei espantado quando soube que seu presidente respondeu que não se importava ou que não podia fazer nada sobre as mortes por coronavírus. Sempre foi básico, até para neandertais, que, se você é um líder, terá que cuidar do seu povo, não pode apenas dizer “que pena, pessoal”. O escapismo é a principal ameaça no mundo. E, comparada a essa ameaça, todas as outras lutas convergem.

Há menos de cinco anos o inimigo para os ecologistas era ainda o modelo de desenvolvimento que ignora os limites planetários. Agora nós percebemos que o modernismo implicava na existência de outro planeta para além deste em que vivemos. Mas o modernismo tratava de desenvolvimento, e ainda tentava liderar o mundo. Suas atitudes hipócritas nunca disseram explicitamente “eu não me importo, dê o fora”.

O que significou a assinatura do Acordo de Paris da ONU [de combate às mudanças climáticas] em 2015? 
Isso impactou uma hierarquia de poderes. Agora, todos que estão no poder têm o limite de 2°C [de aumento da temperatura média global] como um horizonte para a política. Isso é típico do que eu chamo de novo regime climático: você deve se desenvolver submetido a um poder que é também científico e que tem a aceitação da ideia de Gaia. O limite de 2°C vem do reconhecimento de que a Terra é um sistema do qual somos parte. Senão, não haveria razão para haver esse limite, por que não dizer 8°C ou 15°C? Isso não importaria.

Na edição brasileira de “Diante de Gaia”, o sr. diz que se preparava em 2013 para essa tempestade perfeita que hoje é vivida no Brasil. Quais perspectivas o sr. vê hoje para o Brasil? 
É claro que essa é a tempestade perfeita: quando há a mais forte virada na política, que é o novo regime climático, é também quando há a maior catástrofe na política. Ambos estão relacionados: se a política se tornou tão maluca é porque a crise é muito profunda e ela é sobre o clima. Sobre o horizonte para o Brasil, é muito importante para o resto do mundo que vocês encontrem respostas para essa crise.

É que —como posso dizer isso sem parecer desesperado?— se vocês administrarem uma solução, vocês salvam o resto do mundo. Porque em nenhum lugar há a mesma intensidade das duas tempestades se juntando, a ecológica e a política, como há no Brasil.

O Brasil é hoje como a Espanha era em 1936, durante a Guerra Civil: é onde tudo que vai ser importante nas próximas décadas está visível.

A preocupação internacional também é usada para alimentar uma narrativa nacionalista por aqui.  
A guerra cultural é parte disso, não é dissonância cognitiva. Não é coincidência que o governo brasileiro é tão inspirado por atitudes religiosas: se essa casa queimar, não importa, eles levam seus recursos para seu outro planeta, no céu, no paraíso.

A pandemia tem algum potencial de nos provocar essa reflexão sobre não termos outro planeta? 
É um ensaio, mas ele não nos prepara muito bem para as outras crises que estão vindo. Por outro lado, as pessoas ficaram com um pequeno pensamento de que as coisas podem ser diferentes. Então podemos dar a elas algumas ideias de como mudar as coisas.

O sr. propõe um terceiro pólo, o terrestre, como solução para as polarizações entre esquerda e direita, entre global e local. Como sua proposta difere da corrente política da terceira via?
Aqui, Marina Silva foi candidata defendendo que não estava “nem à esquerda e nem à direita de Lula, mas à frente”. Ela foi uma grande ministra e está certa, é mesmo “à frente”, mas não só. É muito diferente da terceira via, ideia britânica que tenta escapar das consequências de ser de esquerda. O que eu chamo de pólo terrestre é uma mudança de horizonte. Minha obsessão é definir o que é essa direção do terrestre.

Esse pólo pode ser representado por aquele mantra que sugere pensar globalmente e agir localmente?  Na intenção, sim; embora a noção do local competindo com o global seja uma tradição colonialista. O que a concepção das palavras diz é: não há forma de desenvolver o mundo com a ideia modernista dos anos 1970. Não há Terra para isso.

Uma última mensagem para os brasileiros? 
Tenho uma relação muito forte com o Brasil. Meu coração está com vocês nesta tempestade perfeita e espero que vocês saiam dela. Todos nós precisamos que vocês saiam dela.


Bruno Latour, 73
Filósofo, antropólogo e sociólogo, é doutor em filosofia pela Université de Tours e em antropologia pela École des Hautes Etudes en Sciences Sociales, em Paris, onde é professor emérito. Autor de mais de 20 livros, também é tema de dezenas de obras. Recebeu em 2013 o prêmio Holberg. Casado, tem dois filhos e dois netos

Polícia e milícias são a nova forma de desestabilização das instituições na América Latina, FSP

 Policiais argentinos cercaram a casa do presidente Alberto Fernández numa manifestação por aumentos de salários.

Polícia e milícias são a nova forma de desestabilização das instituições na América Latina. A deposição de Evo Morales na Bolívia começou com a ação de milicianos, progrediu com uma revolta da polícia de Santa Cruz de la Sierra e desembocou no fim do mandarinato do presidente.

O TRIBUNAL DA CIDADANIA

Quando o Superior Tribunal de Justiça se intitula "Tribunal da Cidadania", parece marquetagem, mas sua Sexta Turma tomou uma decisão que confirma o título. Acompanhando o voto do relator Rogerio Schietti, ela concedeu um habeas corpus coletivo que beneficiou cerca de 1.100 presos primários com bons antecedentes, sem ligações com grupos criminosos, condenados por tráfico de drogas à pena mínima de um ano e oito meses de prisão.

Quem vê essa decisão pode pensar que o STJ mandou soltar traficantes de drogas. Eram pessoas pobres, quase sempre negras, metidas com pequenas quantidades de drogas. O que o STJ fez foi travar o punitivismo do Tribunal de Justiça de São Paulo, que colocava esses condenados à pena mínima em regime fechado, nas universidades do crime que são os cárceres do Estado. Agora, como acontece aos larápios brancos e abonados, eles poderão ir para o regime aberto.

O tribunal paulista considerava "crime hediondo" esse tráfico. Vale repetir as palavras do subprocurador da República Domingos Sávio da Silveira: "Hedionda é essa jurisprudência, essa insistência em manter o corpo do pobre, do preto, do periférico nas masmorras do estado de São Paulo".

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FUX SABIA

O ministro Luiz Fux deixou para o final de seu discurso a referência ao pai, Mendel, um judeu romeno fugitivo do nazismo, porque sabia que choraria.

E assim foi.