domingo, 13 de setembro de 2020

Graças à Lava Jato e a uma delação, destampou-se um dos panelões do Sistema S no Rio, FSP

 Em dezembro de 2018, durante aquele doce período que antecede a posse de um governo, o doutor Paulo Guedes disse que era preciso "meter a faca no Sistema S". Falava daquele conglomerado de instituições que tiram da veia do sistema produtivo até 2,5% do valor das folhas de pagamento das empresas, um ervanário que vai a cerca de R$ 18 bilhões anuais.

Esse era o tempo em que Guedes acreditava ser um superministro. Em agosto de 2019, o presidente Jair Bolsonaro foi ao Piauí e inaugurou a Escola Jair Messias Bolsonaro. De quem era a escola? Do Sesc, uma das joias do Sistema S. Valdeci Cavalcante, presidente do Sesc-PI esclareceu: "Não estamos homenageando o Bolsonaro. Ele é que irá nos homenagear se aceitar colocar seu nome em nossos anais".

Assim é o Sistema S. Faz homenagens e tem uma bela caixa, pela qual ao longo dos tempos já passou muita gente boa. Em dois anos de ministério, Paulo Guedes não meteu sequer um canivete por esse lado sombrio do andar de cima nacional.

Felizmente, graças à Lava Jato do Rio e à colaboração do mandarim Orlando Diniz, que começou a mandar na Fecomércio do Rio em 2004, destampou-se um dos panelões do Sistema S no Rio. Ali fraudavam-se contratos com escritórios de advocacia para corromper magistrados, fiscais e quem estivesse a fim de receber um dinheirinho fácil.

Quando a Polícia Federal cumpriu 50 mandados de busca e apreensão em cinco estados e em Brasília, numa operação denominada E$quema S, a Ordem dos Advogados do Brasil viu na diligência uma "clara iniciativa de criminalização da advocacia". A menos que um anjo da guarda do Supremo Tribunal diga o contrário, houve uma confusão na redação da nota, pois o que houve foi uma clara investigação das atividades criminais de 22 advogados, um auditor do Tribunal de Contas e um jornalista (Sérgio Cabral).

A Operação E$quema S foi socorrida pela colaboração de Orlando Diniz. No século passado, ele começou com um pequeno açougue em Copacabana, presidiu o Sindicato do Comércio Varejista de Carnes do Rio, foi vizinho de Sérgio "O Gestor" Cabral e tornou-se um dos mandarins do Sistema S do Rio, em cujos domínios há até um chateau francês, com direito a chef. Meteu-se numa encrenca com os marqueses da Confederação Nacional do Comércio, em 2018 passou um tempo na cadeia e deixou o cargo.

Suas malfeitorias, bem como a conexão com Cabral e a advogada Adriana Ancelmo, são conhecidas desde 2013. Graças às informações que reuniu e aos atos que praticou, Diniz deu à Lava Jato o mapa da mina das roubalheiras embutidas em falsos contratos de advocacia.

denúncia de 510 páginas do Ministério Público tem de tudo, parentes de magistrados, advogados de personalidades e até mesmo a cozinheira de Cabral contratada por um braço do Sistema S. Quem já bebeu as águas barrentas saídas da Lava Jato deve se acautelar à espera de sentenças judiciais. Até lá, a Operação E$quema S poderá ajudar Paulo Guedes a "meter a faca" nessa forma de oneração da mão de obra nacional.

Todas as fraudes denunciadas, envolvendo pelo menos R$ 151 milhões, destinavam-se a proteger o Sistema e seu maganos. Num raciocínio cínico, admita-se que uma empreiteira distribuiu R$ 10 milhões na obra de uma ponte. Tudo bem, mas a ponte foi entregue. A Fecomércio do Rio, socorrida por suas irmãs do Sistema, torrou R$ 151 milhões para nada. Se um "mano" fizer isso no morro do Borel, amanhece com a boca cheia de formigas.

Os marqueses do Sistema S dizem que cuidam de centros culturais e escolas de aprendizado técnico. Vá lá, mas isso custa em torno de 20% do que gastam. Os 80% pagam pirâmides como o prédio da Fiesp y otras cositas más.

Uma coisa é certa: se algum dia o doutor Paulo Guedes meter a faca no Sistema S, o Sesc do Piauí não botará seu nome numa escola.

JOSÉ LIRA Arquitetura, acervos e barbárie, FSP

O Brasil arquitetônico está perplexo. Os meios acadêmicos e patrimoniais foram pegos de surpresa. Inclusive no exterior: o arquiteto brasileiro Paulo Mendes da Rocha, Prêmio Pritzker em 2006, Leão de Ouro em 2016, doa todo o acervo de seu escritório à Casa da Arquitectura em Portugal (CA). Uma instituição nascida em 2007 com grandes ambições —e um programa de visitas às obras de Álvaro Siza em Matosinhos— e refundada em 2017 com nova sede e polpudo orçamento.

São inúmeros os questionamentos que o fato suscita. Por que um arquiteto consagrado escolhe depositá-lo em jovem instituição sem acervo de importância nem política de ensino e pesquisa? Por que a obra de um arquiteto brasileiro torna-se alvo de cobiça de um centro especializado em acervos portugueses? Porque levá-lo para o exterior quando praticamente toda a sua obra construída está no Brasil? A decisão terá algum impacto nas relações entre projeto, ensino e pesquisa de arquitetura no país?

José Lira, professor da FAU-USP
José Lira, professor da FAU-USP - Marcus Leoni - 9.jan.18/Folhapress

De fato, apesar da pretensão do diretor-executivo e os capitais a ele confiados, as credenciais da CA são modestas. Suas únicas coleções de peso são a de Eduardo Souto de Moura, em consignação desde maio, e agora a de Paulo Mendes da Rocha. No fim, nem o acervo de Siza foi para lá, dividindo-se por três instituições melhor estabelecidas em Portugal e, sobretudo, no Canadá.

O arquiteto brasileiro afirmou à Folha que a CA digitalizaria o conteúdo, e que a USP, naturalmente cogitada, não teria condições de acolhê-lo. No senso comum, a decisão se justifica pela fragilidade e incertezas atuais das instituições culturais brasileiras.

É verdade que universidades, museus e bibliotecas do país ressentem-se de investimentos públicos e de um mecenato cultural forte, sofrendo perdas e ataques sistemáticos nos últimos anos. Mas não se pode ignorar a excelência de muitos deles. Nem subestimá-los. Entre os quais o IEB-USP (Instituto de Estudos Brasileiros) e especialmente a FAU-USP (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo), que desde os anos 1970 vem constituindo um dos maiores acervos de projetos do país, objeto de escrutínio por muitas gerações de pesquisadores, alicerce de teses, livros, exposições e novos horizontes de interpretação, apreciação e transmissão da cultura arquitetônica no Brasil.

Entre os acervos originais ali guardados estão os de toda a geração de Paulo Mendes da Rocha em São Paulo, e de dezenas de colegas notáveis. Foi na escola, nesta geração, nesta cidade, que o arquiteto se tornou uma liderança para centenas de profissionais, estudantes e professores, parceiro de projetos de muitos deles e esteio de pranchetas, salas de aula, pesquisas e debates Brasil afora.

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É certo que o imaginário dos arquitetos ainda opera com ideias de gênio, mestre, obra autônoma, autoria individual e outros vícios. Mas se há algo de elementar na historiografia e na crítica contemporâneas é a necessidade de entender a arquitetura como elaboração de problemáticas, encargos e outras circunstâncias através de ferramentas operativas e intelectuais, padrões de intenção e campos de escolhas linguísticas partilhados. E mais: que sua elucidação atravessa de ponta a ponta o processo do desenho e o transborda, absorvendo-o no antes e no depois, em sua demanda, concretização, fruição e perecimento na cultura e na sociedade.

A obra de Rocha não foge à regra. Será que restará compreensível aos que tiverem a ventura —além do interesse e do dinheiro— de examinar seus traços e margens em Matosinhos? Será que o fabuloso desfalque documental não abalará também o julgamento e a preservação de sua obra? Não prejudicará pesquisas, publicações e exposições aqui, seja pela distância dos originais, seja pela impossibilidade de cruzá-los com outros acervos e temas afins?

O tempo dirá. Até porque razões científicas, éticas, políticas, simbólicas e afetivas não convenceram o mestre. Tampouco a estatura de seu trabalho o demoveu. Paulo Mendes da Rocha decidiu. Resta-nos esperar que a comunidade acadêmica e profissional portuguesa tire da coleção tanto valor quanto seus comissários e investidores; tanto significado e inspiração quanto temos sabido nela encontrar desde 1958. Nesse país onde foi sempre difícil vencer a barbárie. De dentro e de fora.

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