domingo, 13 de setembro de 2020

Zumbis existenciais, Hélio Schwartsman - FSP

 Para o ministro da Educação, pastor Milton Ribeiro, a descrença em Deus transforma parte dos jovens brasileiros em zumbis existenciais. Segundo o religioso, a ausência de absolutos e de certezas faz com que vivam uma vida sem propósito nem motivações.

Será? Em “This Life” (esta vida), um dos melhores livros que li na pandemia, o filósofo Martin Hägglund (Yale) defende o avesso da posição do ministro. Para Hägglund, são as incertezas e a precariedade da vida que lhe dão valor. Se pessoas e coisas fossem eternas, aí sim é que não encontraríamos a motivação para nos ocupar delas ou nos importar com seu futuro. A própria ideia de futuro depende da possibilidade de corrupção. A eternidade seria um presente sem fim.

O ministro da Educação, Milton Ribeiro - Isac Nóbrega - 16.jul.2020/PR

Há, sim, um elemento de fé, já que nos importamos com as coisas que nos são caras mesmo sabendo que elas desaparecerão, mas é o que Hägglund chama de fé secular, que não é compatível com a fé religiosa. Para o filósofo, a fé religiosa tenta nos fazer abandonar a fé secular, convencendo-nos de que nosso objetivo deve ser o de transcender à finitude. Como consequência, esta vida perde seu valor, convertendo-se em estado transicional do qual precisamos ser salvos.

Seria fácil desconstruir a tese de Hägglund como reflexões de um ateu. Mas o fascinante no livro é que ele chega a essas conclusões a partir de textos de autores insuspeitos para os religiosos, como santo Agostinho e C.S. Lewis, com pitadas de Charles Taylor e Paul Tillich.

O livro, aliás, é um banquete intelectual, que nos faz provar porções, às vezes generosas, às vezes só uma entradinha, de autores tão variados como Kierkegaard, Aristóteles, Dante, Proust, Marx e Knausgaard, além dos já citados.

Depois de ter fustigado os religiosos, Hägglund, na parte final da obra, bate forte no capitalismo. Ler “This Life” nos deixa com uma irresistível vontade de nos tornar zumbis existenciais.

[ x ]
Hélio Schwartsman

Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…".

Ruy Castro Drama por trás da cortina, FSP

 

Há quem prefira rodeios, shows de cantores sertanejos ou carreatas políticas. Para mim, poucas coisas engrandecem tanto a experiência humana quanto o teatro. É exercido por pessoas que, ao se despirem de si mesmas para encarnar outras, falam de cada um de nós na plateia. É assim desde os gregos, há mais de 2.000 anos, e continuará a ser pelos próximos 2.000. Só precisa ser ao vivo, sujeito tanto a um ator hesitar numa fala como a dizê-la de modo fabuloso, inigualável —e, nos dois casos, essa fala se dissipará assim que o ator acabar de dizê-la.

A maioria de nós, espectadores, só tem olhos para os atores. Por serem os únicos à vista, e como queremos acreditar no que estamos vendo, tendemos a achar que só eles importam. São raros os que, às vezes, despertamos dessa ilusão e nos lembramos de que, por trás do palco, há o diretor, os figurinistas, cenógrafos, iluminadores, diretores musicais, diretores de palco, produtores, visagistas, coreógrafos. Sem falar numa figura essencial, cuja inspiração permitiu começar tudo —o autor.

E daqueles outros sem os quais a cortina sequer abriria, e em quem nunca pensamos porque damos seu trabalho de barato —como se suas funções se realizassem sozinhas, sem a mão humana. São os técnicos de som, de luz e de vídeo, os contrarregras, costureiras, aderecistas, camareiras, assistentes de produção, cenotécnicos, bilheteiros, programadores visuais, assessores de imprensa.

Todos os profissionais do palco, inclusive as estrelas, se sentem operários do teatro. Mas, assim como aqui fora, os encarregados das funções invisíveis são os que mais sofrem e os que sofrem primeiro. Nos seis duros meses de teatros fechados pela pandemia, a maioria desses heróis anônimos está vivendo da caridade pública ou de amigos.

Que a Lei Aldir Blanc entre logo em vigência. Não é só o teatro —é a vida que já não pode esperar.

[ x ]
Amanda Acosta, como Carmen Miranda, e companhia no musical infantil “Carmen, a Grande Pequena Notável”
Amanda Acosta, como Carmen Miranda, e companhia no musical infantil 'Carmen, a Grande Pequena Notável' - Divulgação
Ruy Castro

Jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.

Rever a estabilidade, Editorial FSP

  EDIÇÃO IMPRESSA

O projeto de reforma administrativa que o governo Jair Bolsonaro finalmente enviou ao Congresso há poucos dias é peça fundamental no sentido de aperfeiçoar o atendimento público aos brasileiros, hoje onerados por uma das maiores cargas tributárias do mundo, e para conter o aumento da segunda principal despesa da União, só menor que os gastos previdenciários.

A proposta alcança Executivo, Legislativo e Judiciário nas esferas federal, estadual e municipal. O Brasil gasta o equivalente a 13,1% do Produto Interno Bruto com pessoal, mais que Chile e México (abaixo de 9%) e acima da média dos países ricos (10,5%), segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico.

Uma das principais críticas dos que esperavam impactos no curto prazo é que grande parte dos efeitos da reforma recairá apenas sobre os servidores que vierem a ser contratados após sua aprovação.

Não mexer com os atuais, encastelados em corporações com influência no Congresso, foi uma promessa de Bolsonaro. Mas procurou-se também evitar disputas futuras e intermináveis, na Justiça, a respeito de direitos adquiridos.

Se aprovada nos próximos meses, contudo, a reforma administrativa pode trazer ganhos importantes e duradouros. Pois, mesmo que não produzam economia imediata, as novas regras já estariam em vigor durante período em que uma massa inédita do funcionalismo deixará o serviço público.

[ x ]

No governo federal, estima-se que 35% dos funcionários se aposentarão até 2030. Nos estados, onde aposentadorias especiais (com menos tempo de serviço) predominam, quase a metade dos atuais servidores poderá fazer o mesmo.

Para que o país aproveite essa janela de oportunidade, contudo, é imprescindível que a reforma delimite rigorosamente quais funções devem seguir protegidas pela chamada estabilidade. Abrangente demais e anacrônico, o dispositivo raramente permite afastar servidores por mau desempenho; e absolutamente por motivos de restrição orçamentária.

Na Constituição brasileira desde 1934, a estabilidade é fruto de ideias do século 19 e inexiste em países como os EUA, onde a flexibilidade para ajustes de pessoal vem, inclusive, sendo aumentada.

A reforma sinaliza a manutenção da estabilidade apenas para as chamadas carreiras típicas de Estado, consideradas estratégicas, cuja escolha foi deixada para um segundo momento da tramitação.

Governo e Congresso devem, pois, escrutinar e restringir ao mínimo esse leque, revendo dogmas e concepções ultrapassadas sobre o que é considerado estratégico.

O país não pode perder a grande oportunidade que ora se apresenta.

editoriais@grupofolha.com.br