quinta-feira, 2 de julho de 2020

Entregadores são proletários de si mesmos, OESP

Hoje as ruas estão mais vazias, com a greve dos entregadores de aplicativo.
A paralisação traz à tona uma questão profunda sobre informalidade e precariedade do universo do trabalho, em um processo que ficou conhecido como “uberização” da mão de obra.
Quando o trabalhador não conta com direitos como décimo terceiro, férias, previdência ou alguma assistência de saúde.
Mas não são só os entregadores. Se calcula que hoje 41% da população ocupada brasileira seja composta por profissionais com este perfil de informal, trabalhando por conta própria como se diz.
E essa estatística só tende a piorar, com a crise do covid- 19.
Não é só isso. Dados divulgados pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) revelam que a América do Sul teve a maior perda de horas de trabalho no mundo no segundo trimestre do ano. No Brasil, a taxa é o equivalente a 11 milhões de postos de trabalho em tempo integral…

“A pequena empresa é muitas vezes a ilusão de que o empreendedor é um burguês quando na verdade ele é um proletário de si mesmo”.

“Tudo é produzido hoje com qualidade total porém seu tempo de vida média tem pouca duração. É preciso tratar a questão do trabalho em outra dimensão – trabalhar só no estritamente necessário para a produção de bens socialmente úteis, com menos horas de trabalho diário. Assim, é preciso reinventar o trabalho concebendo-o como atividade vital, livre, autodeterminada, fundada no tempo disponível”.

“A confluência entre uma economia destruída, um universo societal destroçado e uma crise política
inqualificável, converte o Brasil em um forte candidato ao abismo humano, em um verdadeiro cemitério coletivo”.

“Nos últimos cinco anos, o setor de serviços de aplicativos foi praticamente o que mais cresceu. Em muitas situações o entregador tem que pagar tudo; o seguro, a moto, os equipamentos.

A situação vivenciada expressa um protótipo de trabalho que vem se desenhando já há alguns anos, que é uma combinação complexa entre maquinário de informação digital bastante desenvolvido que caminha em paralelo com uma tendência das corporações e das empresas: a chamada impulsão pela flexibilização das condições de trabalho, que significa de fato, avançar em direção à informalidade e a maior precarização. É a combinação entre informalidade e mundo digital”.

“Essa massa sobrante de trabalhadores das mais distintas profissões – nesse caso entregadores -, cria a figura do prestador de serviços, desvanecendo-se da condição de assalariamento. Isto cria uma situação em que há uma burla da legislação social protetora do trabalho”.

“A reforma trabalhista do governo Temer, onde ela colocou o direito dos trabalhadores? No inferno. Ela tornou o trabalho intermitente legal”.

“Aqui no Brasil o empresário investe hoje para ganhar ontem”.

“Esse vírus não é um fenômeno biológico que não tem nada a ver com o sistema de metabolismo social que nós vivemos”.

“A China é uma ditadura pesada. Total exploração do trabalho. Em 2010 houve 17 tentativas de suicídio na Foxconn, que produz para a Apple. É uma grande empresa terceirizada mundial. O “sistema 996” fala por si. Das 9 às 9, 6 dias por semana. O capital sabe que ele não se reproduz sem o trabalho vivo”.

“O papel do mercado financeiro é conformar o mundo no qual vivemos. O trabalho é custo e se o trabalho é custo eu posso cortar o máximo que puder. Só não posso eliminar”.

“Qual a vantagem que o home office traz para as empresas? Reduz custos. A sociabilidade no trabalho é insubstituível. ”.

A paralisação dos motoboys, Celso Ming, O Estado de S.Paulo


01 de julho de 2020 | 19h31

Os motoboys de São Paulo encarregados de entregar pedidos de delivery fizeram nesta quarta-feira, 1, pelo Brasil a primeira tentativa de paralisação destinada a garantir melhor remuneração e melhores condições de trabalho. A foto abaixo mostra um dos pontos de concentração no País.

Motoboys
Tido como improvável por especialistas, aconteceu em 1º de julho a primeira paralisação em São Paulo de entregadores de aplicativos como iFood, Uber Eats e Rappi Foto: Werther Santana/Estadão

Esses trabalhadores são os que operam em entregas, principalmente por meio dos aplicativos iFoodUber Eats e Rappi. Como a pandemia obrigou o consumidor a se confinar em casa, o volume de encomendas de alimentos e de pequenos artigos aumentou substancialmente. Com isso, a carga de trabalho dos boys ficou muito maior, sem que a remuneração acompanhasse a multiplicação do esforço.

Esse é o primeiro movimento reivindicatório desse segmento no Brasil, mas não o primeiro no mundo. Em 2019, houve uma paralisação, também por 24 horas, nos Estados Unidos, realizada por motoristas (e não motoboys) da Uber e da Lyft. E, depois disso, foram vistas outras manifestações parecidas na Europa.

O mais importante a considerar aqui não é a eficácia dessa paralisação do ponto de vista dos trabalhadores, mas o fato de se ter iniciado um movimento que muitos especialistas em Economia do Trabalho julgavam improvável, diante da falta de um sindicato que os unisse e da enorme dispersão a que está sujeita essa subcategoria de trabalhadores informais. São raros os casos em que desfrutam de horários fixos de trabalho. Na maioria dos casos, são obrigados a usar seus próprios equipamentos (motos ou bicicletas).

Para o especialista Hélio Zylberstajn, da Universidade de São Paulo (USP), essa mobilização lembra o início do movimento sindical no mundo, quando os operários organizavam seus movimentos a partir do chão da fábrica. “Assim como promoveu a dispersão desses trabalhadores, a tecnologia também os vem reunindo, o que sugere o aparecimento de nova forma de organização. Como o patrão é virtual, o sindicato também é virtual”, diz. O que não muda, acrescenta Zylberstajn, é o velho conflito entre empregador, que quer o maior lucro pagando a mais baixa remuneração, e o empregado, que luta por melhores condições. 

Esse tipo de atividade começou com a Uber em 2009, que chegou ao Brasil em 2014. Nem empresas nem autônomos se entendem e o que acaba prevalecendo é a aplicação crua da lei da oferta e da procura por esse tipo de atividade, num ambiente geral de alastramento do desemprego. A Justiça do Trabalho e a legislação tentam enquadrar o novo modelo nas regras antigas, criadas para atender às atividades em que o empregado atua no mesmo local onde está o empregador, sujeito a horários predeterminados de entrada e de saída e certa garantia de estabilidade, a vigorar em casos de demissões, acidentes no trabalho e aposentadoria. Os debates entre os responsáveis pela formulação de políticas públicas para os autônomos quase sempre giram em torno desses pontos.

Questão de saúde

Outro renomado especialista em Economia do Trabalho José Pastore, também professor da USP, adverte que uma nova legislação que contemple os direitos desses trabalhadores deve evitar o excesso de detalhamento em que hoje incorre a Consolidação das Leis do Trabalho (a CLT) e se propor a definir pontos essenciais, como limites de jornada de trabalho e direitos básicos. Ele sugere a adoção de exames de admissão e de demissão, que atestem o estado de saúde do trabalhador no período em que operou para o empregador. O objetivo seria evitar problemas de saúde como a Síndrome de Burnout, associada à exaustão por excesso de trabalho, típica das jornadas de entregadores de aplicativos. “No Brasil, temos certa vantagem porque, na Europa e nos Estados Unidos, os planos de saúde são negociados só após as sentenças judiciais. Aqui temos o SUS, que atende a esses casos”.

Interferência e regulação excessivas podem prejudicar a inovação. “Em consequência da própria pandemia, as empresas convencionais demorarão anos para voltar a contratar pessoal. Por isso, essas novas formas de trabalho devem crescer muito. Precisamos encontrar um meio-termo que proteja tanto os trabalhadores como o negócio das empresas”, defende Pastore.

O problema é que os motoboys de aplicativos são apenas uma categoria entre as muitas que estão surgindo, não só com a maior utilização de mecanismos de tecnologia da informação, mas também pela nova organização do trabalho em todo o mundo. E já não é possível atender a cada segmento novo que apareça. / COM GUILHERME GUERRA


Sanfoneiro de Bolsonaro vandalizou 'Ave Maria' com talento de um iconoclasta, João Pereira Coutinho, FSP

Penso muitas vezes na eternidade. Sei que o paraíso é uma hipótese distante. O purgatório já estava bem. Mas e se for o inferno?

Sonho com essa possibilidade recorrentemente. Acordo sempre lavado em suor.

Anos atrás, minha ideia de inferno era chegar a uma sala de espera, tipo consultório médico, e encontrar todos os leitores que não entenderam a ironia dos meus textos. “A sério que você defendeu isso?”

Ilustração em preto e branco que reproduz cena de vídeo do Planalto reunindo Guedes, a tradutora de libras e um sanfoneiro
Angelo Abu/Folhapress

E eu passo o resto da eternidade a explicar o real sentido das minhas palavras.

Nos últimos tempos, o inferno que me visita é sempre musical. Pode ser uma sessão interminável de ranchos folclóricos portugueses. Ou uma encenação sem fim de ópera tradicional chinesa.

Em qualquer dos casos, eu estou sentado na plateia, impedido de fugir, e com a mesma cara do ministro Paulo Guedes quando o sanfoneiro de Bolsonaro, por sinal presidente da Embratur, começou a sua “Ave Maria”.

Aliás, por falar no Diabo, não é de excluir que o sanfoneiro assalte os meus sonhos intranquilos de agora em diante, destronando os belos guinchos do rancho ou do Xiqu.

O vídeo circulou por Portugal e alguns patrícios disseram, exaustos de tanto rir: é a vingança por todas as piadas de portugueses.

Difícil discordar: estamos na presença de uma obra-prima do humor involuntário.

Isso se deve, como normalmente acontece no grande humor, à distância abissal entre intenção e resultado.

Intenção: “homenagear os que se foram” com o coronavírus, afirma o presidente. E um observador atento, espreitando o sanfoneiro lá atrás que ensaia as primeiras notas, teme o pior.

Resultado: as expectativas são superadas quando o sanfoneiro decide juntar a sua voz à “melodia” (digamos assim). Não é que ele cante mal. Em rigor, ele não canta; apenas soluça as palavras, como se houvesse uma intermitência persistente entre o cérebro e as cordas vocais. De tal forma que não sabemos bem se aquilo é uma performance ou um derrame.

Numa altura em que se discute a depredação de várias estátuas pelo mundo, o sanfoneiro de Bolsonaro vandalizou o “Ave Maria” de Gounod com um talento de fazer inveja aos iconoclastas.

É então que acontece o segundo grande contraste: nós podemos rir, pasmados com o número; mas é o rosto de Paulo Guedes que confere uma grandeza épica ao momento.

Guedes não ri. Também não chora. Ele morre perante os nossos olhos sem soltar o mais leve gemido.

Dizem que, no momento derradeiro, vemos passar toda nossa vida num flash. Foi o que aconteceu com o ministro: olhando em frente, ele viajou do Rio de Janeiro até Chicago, do estudo acadêmico ao sucesso financeiro, para se ver ali, junto a um presidente de roupa de treino, estilo Nicolás Maduro, e com um sanfoneiro a cantar uma “Ave Maria” em código Morse.

O rosto de Guedes falava. Mas só repetia a mesma coisa, em loop obsessivo: “Quero morrer. Quero morrer. Quero morrer”.

Verdade. Política e humor são velhos parceiros. E, quando existem líderes autoritários, o humor cresce em quantidade e qualidade. Basta ver os livros que se escreveram sobre as piadas comunistas (ou, melhor dizendo, anticomunistas) que as populações do Leste da Europa contavam durante a Guerra Fria para aliviar o prejuízo da existência.

Foi lendo um desses livros — o espantoso “Hammer & Tickle” de Ben Lewis— que fiquei a saber que o regime de Nicolae Ceaușescu tinha uma revisora oficial só para confirmar que o nome do ditador era impresso nos jornais sem gralhas. “Nicolae”, quando vira “Nicolai” (com i), significa “pênis pequeno” em romeno.

Essa pequena diferença alimentou uma das maiores indústrias de humor clandestino na história do comunismo.

Fato: o Brasil não é a Romênia; Bolsonaro não é Ceaușescu; e não há a mais remota possibilidade de, mudando o nome do presidente, mudarmos também a dimensão dos seus atributos.

Até porque a singularidade da presidência de Bolsonaro está no fato de ser o próprio presidente, e não a população, a produzir humor. Com um pormenor: quando Bolsonaro quer ter piada, não tem. Quando tenta falar sério, ele se revela um monstro da comédia. É uma maldição de pernas para o ar.

Um dia, quando chegar ao inferno, sei que vou escutar novamente aquela sanfona. Paciência: antes perder o paraíso que perder esta piada.

João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.