quarta-feira, 3 de junho de 2020

Cozinheiro é essencial, chef de cozinha não é, Marcos Nogueira, FSP (definitivo)

Marcos Nogueira

A seguir, lições que eu aprendi ou revisei na pandemia.

Cozinheiros são essenciais, chefs não são.

Cozinhar é essencial. Cozinhar bem é privilégio.

Comer é essencial, degustar é futilidade. Combinar é recomendável, harmonizar é para quem tem dinheiro de sobra no banco.

Ter companhia nas refeições é bacana na maioria das vezes. Mas dá para viver sem.

Restaurantes não são essenciais. Eu gostaria que fossem, mas não são. Bares são mais necessários. Não pela bebida, que vende em qualquer quitanda. Pelo social. E pelas frituras, que só funcionam fora de casa.

Bufê, rodízio, self-service, mesão comunitário, cozinha aberta e bisnaga de ketchup são coisas destinadas ao esquecimento.

Padaria não serve para grande coisa sem o pingado no balcão. O brasileiro já descobriu isso e passou a fazer o próprio pão.

Aliás, pão é essencial. Pão de farinha artesanal de moinho de pedra e levain, com fermentação lenta e sal fúcsia das Ilhas Roberto, não é.

Arroz é essencial. Arroz integral é melhor para quem está com prisão de ventre. Arroz carnaroli envelhecido por 7 anos é para quem quer jantar em 2013, quando não tinha Covid-19.

Farinha é essencial. Farinha dos ribeirinhos orgânicos do Médio Juruá é essencial para os amazônidas do Médio Juruá. Na alameda Lorena, a 20 contos o quilo, é um insulto.

Açúcar é essencial. Doces também. Brigadeiria, sonheria, churreria, boleria, macarroneria, cupcakeria, brownieria, pudinharia e quindinzaria podem seguir o exemplo das paleterias mexicanas.

Carne, vá lá, é importante. Filé é luxo. Bife ancho é ostentação. Tomahawk de wagyu dry-aged resvala na babaquice. Eu disse resvala?

Tilápia, acém, carolina >>> saint peter, denver steak, choux cream.

Sal e óleo não são eternos. Alho e cebola nunca são o bastante. Abacate apodrece antes de amadurecer. Apalpar o melão na feira é crime hediondo.

Álcool é supérfluo. Depois de quatro semanas sem beber, estou quase convencido disso. Ter uma cachaça favorita –literal ou metafórica– é absolutamente vital.

Lavar louça é essencial. A natureza pode dar conta de secá-la no escorredor. Máquina de lavar louça, nada essencial, quebra um galho sobrenatural. Tenha uma, se puder pagar. Pague água e luz, também.

O micro-ondas é nosso amigo. A panela de pressão também.

Mesa, talheres, pratos, guardanapos: essenciais ou não? Há controvérsia.

Brigar pelo próprio feijão é justo. Arriscar a vida alheia para vender “experiência”, “conceito” e “proposta” mora no DNA do pulha homicida. Está no mindset do sociopata proto-capitalista.

Pedir comida virou questão de segurança. Miguelar a gorjeta do entregador sempre foi questão de mesquinhez.

Foodie, influencer, curador, tendências, nada disso vale uma pamonha.

Guloso, sempre. Glutão, OK. Gourmet é a senhora sua mãe, com todo respeito.

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Primeiro a gente tira o Boçal, depois faz churrasco, Marcos Nogueira, FSP

O caldo entornou.

Não tem mais volta, não tem mais paciência, não tem mais tolerância possível com o circo macabro que se instalou no poder. Silêncio é omissão, e omissão é endosso à barbárie. Não podemos assistir ao genocídio acomodados em nossa melhor poltrona, com pipoca e cerveja gelada.

Recebo, quase todo dia, mensagens desaforadas dos bedéis de texto. Eles vêm me dizer para limitar minha escrita à gastronomia, às receitas de forno e fogão. Deixar a política para os cronistas políticos.

Por extensão, um comediante não deveria fazer papéis dramáticos. Uma bailarina não deveria cantar. Um confeiteiro não deveria fazer frango assado. Um militar não deveria se candidatar a cargos públicos.

Os aspirantes a ombudsman podem ficar sossegados. Vou falar de comida hoje. Em todos os parágrafos desta coluna.

Só não esperem que eu comente a batatinha murcha que a hamburgueria entrega na quarentena. Está pesada demais a concorrência dos influenciadores parasitas.

Eu sou jornalista. Nossa categoria não tem um juramento de Hipócrates, mas há um senso de missão compartilhado fortemente nas redações. O jornalista sério –há picaretas também– trabalha pelo interesse público, pelo bem da comunidade. Talvez por isso nos tachem de comunistas, de mortadelas.

Num momento desgraçado como este, não falar de política é omissão criminosa. Fale de ciência ou de futebol, como falam os mestres Marcelo Leite e Juca Kfouri. Mas não faça ouvidos moucos para a realidade que berra. Todos são livres para misturar DNA com STF, impedimento com impeachment, filhós com Queiroz.

Obviamente, ninguém precisa ser jornalista para falar o que bem entender. É de uma cretinice tirânica tentar calar a boca do Raí, irmão do Sócrates, que esteve ao lado de Osmar Santos na Sé, em 16 de abril de 1984. Naquela época, não existia internet, entrega de pizza nem voto direto para presidente. O irmão do Raí ajudou a mudar isso, no que diz respeito ao voto.

Cozinheiros também têm o evidente direito de se posicionar na política. Poucos o fazem, com medo de perder clientes deste ou daquele segmento. São bundões, cegos e meio burros. Quase tudo já foi perdido.

Está difícil juntar cacos de ânimo para acordar a cada manhã, que dirá bancar o lutador valentão. É necessário, porém. Não é questão de esquerda ou direita –é a luz contra as trevas. Esse discurso, sei, tem sido repetido à exaustão. Mas não podemos desistir até que ele rompa a barreira da estupidez, como a faca cega que corta o bife empedernido.

Ele não é o tiozão do churrasco.

Ele não é o palhaço que come pão com leite condensado no café da manhã.

Ele é um boçal mal-intencionado, obscurantista, misógino, racista, homofóbico, lambe-botas de torturador, incapaz, intempestivo, desonesto, mentiroso. Precisamos pará-lo. E fazer um churrasco para comemorar. Depois da pandemia, é claro.

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As 7 maiores bizarrices do delivery de comida na pandemia do Coronavírus COZINHA BRUTA , Marcos Nogueira , FSP

Marcos Nogueira

A pandemia da Covid-19 deu uma chinela traiçoeira no setor de bares e restaurantes –lugares de altíssimo trânsito se saliva, pois mui perigosos.

Todo mundo apelou para a entrega de comida (o dito delivery) na tentativa de sobreviver. Funciona legal em alguns casos, pessimamente em outros. A seguir, alguns casos em que a transição para o delivery ficou esquisita.

 

Chinês de caixinha no Dia dos Namorados

A comida chinesa em caixinhas de papelão tem um nome a zelar –na real, mais por aquilo que a gente vê em filmes americanos do que no cotidiano das cidades brasileiras. De qualquer forma, o delivery chinês é uma instituição sólida da comida tosca nacional desde, pelo menos, os anos 1990. Merece algum respeito.

A despeito disso, há anos-luz a separar um jantar romântico ideal de uma porção de yakissoba com brócolis, frango e glutamato monossódico –ao contrário do que tenta nos convencer a rede China in Box.

Até um misto frio é mais sexy. Ou pipoca de micro-ondas.

 

Churrascaria rodízio

Se existisse um antônimo para “delivery”, bem poderia ser “rodízio”. Enquanto a entrega larga a comida e um bilhete de “se vira”, o espeto corrido só falta escovar os dentes do freguês depois do serviço.

A pandemia da Covid-19, entretanto, obrigou churrascarias que operavam com rodízio a se aventurar na comida para viagem. O resultado, previsível, ainda se mostra desastrado.

Além da rendição às carnes com acompanhamentos e tal, como no esquema normal de um restaurante, há a venda de churrasco por peso e o infame “kit churrasco”, composto por carnes cruas e firulas que encarecem o combo.

Mal sabem os rodízios que essa demanda é suprida há milênios por outro tipo de estabelecimento: o açougue.

 

Luxo total

Outro nicho da gastronomia que precisou sambar foi a alta restauração. Marmitas e quentinhas para viagem sempre foram uma questão tabu nas casas luxuosas.

(Lembro-me da primeira vez em que, jovem e um pouco menos miserável do que hoje, fui jantar no finado Antiquarius, restaurante português fino no trato e pesado na conta, na alameda Lorena. Sobrou um tantão da comida caríssima, e eu pedi para levar. Não me trouxeram à mesa o marmitex, mas a nota veio. Achei que meu pedido havia sido ignorado, até descobrir um aromático bacalhau no banco traseiro do meu Golzinho verde-musgo. Eu fora poupado da terrível exposição de pobreza de um homem que carrega restos de comida pelo salão.)

Ironicamente, a marca Antiquarius hoje tenta se reerguer no Rio como serviço de entrega. Vai precisar baixar a bola e os preços.

Outros restaurantes carões também investem no delivery, com uma irresponsabilidade ambiental que dá vontade de gritar: cada elemento do prato numa embalagem própria, uma montanha de lixo.

 

Chef entregador

Para promover o próprio negócio, alguns chefs famosinhos têm entregado eles mesmos a comida, como forma de atrair a simpatia de um “serto” público. Já avisei ao meu porteiro que não é para deixar subir o sushiman reaça.

 

Comida faça-você-mesmo

Tem na churrascaria, tem no restaurante carãozão, tem em outros lugares com comidas que viajam mal à beça, como frituras: você recebe a comida semicozida (semicrua) para finalizar em casa.

Tem japonês que entrega macarrão cru de lámen. Tem hamburgueria que envia a carne crua e o pão. Outra vez, algo de que o açougue já dá conta há milênios.

Gentesszss, cozinhar de verdade é bem mais barato e muito mais divertido.

 

Lanche de posto de estrada

Parada rodoviária serve para esticar as pernas e tirar água dos joelhos. A comida se encaixa no combo das necessidades fisiológicas, vista a absurda relação custo benefício da comida nesses postos.

Pedir espeto de frango seco-oleoso no aconchego do lar simplesmente não tem sentido.

 

Boteco em casa

Dói muito constatar isso, mas boteco e entrega não têm nada a ver. Você pode até matar a saudade de uma comida especialmente boa –como eu matei da feijoada do tradicionalíssimo Filial. Mas o boteco em si, o espírito do boteco, é algo que não viaja. É o garçom, é o papo, são as risadas. Bar é muito mais do que bebida e comida.

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