sexta-feira, 8 de maio de 2020

OPINIÃO Expressa a opinião do autor do texto JAIR DE JESUS MARI O pior da pandemia se dará na saúde mental, FSP


Jair de Jesus Mari
Estamos vivendo um período histórico e marcante da humanidade, em que as aceleradas cenas de horrores, por todos os cantos do planeta, ficarão na memória de várias gerações. Essas lembranças trarão sequelas mentais imensuráveis. A Covid-19 é uma condição particular de estresse que veio para impactar nossas mentes, desorganizar as economias das populações e aumentar o risco para o desenvolvimento de transtornos mentais em nível global.
O vírus causa tanto um estresse ambiental direto, pelo risco de contaminação e morte, quanto uma série de intercorrências relacionadas com a economia e o distanciamento social. Se o vírus não existisse, estaríamos tocando nossas vidas normalmente e nada disso aconteceria.
Jair de Jesus Mari Médico psiquiatra, é professor titular e chefe do Departamento de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (EPM-Unifesp)
O professor e psiquiatra Jair de Jesus Mari, chefe do Departamento de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (EPM-Unifesp) - Divulgação
Mas vamos com calma: nem todo sobrevivente da pandemia vai apresentar um transtorno mental, porque estamos frente a estressores imprescindíveis, mas não necessariamente suficientes para o seu desencadeamento.
Os efeitos da Covid-19 na saúde mental vão depender das diferentes fases da pandemia. A primeira fase é marcada pelo foco de apreensão, que é o medo de ser contaminado ou de contaminar outras pessoas, o que não difere de situações traumáticas como as que se observam em um terremoto.
A segunda fase da epidemia está relacionada com o confinamento compulsório, que exige uma mudança coerciva de rotina. É uma reação de ajustamento situacional caracterizada por ansiedade, angústia, irritabilidade e desconforto em relação à nova realidade. Ficar depressivo e ansioso durante a pandemia é uma reação normal diante das circunstâncias de insegurança e do medo que nos prepara o futuro.
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O estado de ansiedade preocupa quando o foco de apreensão expande os limites relacionados com a pandemia e invade outras faces da vida, como a familiar, conjugal e profissional. O estado de alerta na depressão se dá quando o indivíduo deixa de ter interesse pelas atividades de que gostava, é invadido por intensa tristeza, sente uma irritabilidade incontrolável, sensação de fadiga, desgaste emocional, insônia, pensamentos negativos e até ideias de que não vale a pena viver.
Uma população que está mais exposta a fatores de estresse são os profissionais de saúde que da linha de frente. Eles estão sendo submetidos a um alto nível de exigência física e emocional, dentro de uma estrutura assistencial insuficiente para garantir segurança profissional. São vários os relatos da carência de Equipamentos de Proteção Individual, levando, além do medo de ser contaminado, a uma sensação de descaso, desamparo e frustração com as condições adversas de trabalho, sem contar a convivência com cenas terrificantes no dia a dia. Nesta situação espera-se um nível elevado da síndrome de burnout (causada pelo esgotamento profissional).
A terceira fase da pandemia é a que vai estar relacionada com as mortes abruptas decorrentes da Covid-19. Sem os rituais habituais de despedida, poderão aumentar os casos de luto complicado com depressão e risco de suicídio. As pessoas que permanecerem nas unidades de terapia intensiva terão experienciado cenas inesquecíveis e traumáticas, com algumas desenvolvendo episódios futuros de estresse pós-traumático. As perdas econômicas, o desemprego e a acentuação da desigualdade social vão ocasionar aumento da depressão e de suicídios.
Nunca a humanidade precisou tanto dos profissionais de saúde mental como agora. O SUS não está preparado para dar conta desses problemas. Para superar essa situação é fundamental que os psicólogos da rede adotem técnicas psicoterápicas de intervenção breve e, assim, possam atingir um maior número de pessoas. Os casos mais graves deverão ser cuidados por psiquiatras com um bom treinamento no diagnóstico e tratamento dos transtornos mentais relacionados ao estresse.
O que se espera dos profissionais de saúde mental, além de um engajamento solidário no cuidado das pessoas em sofrimento, é que adotem práticas baseadas em sólidos conhecimentos científicos.
Jair de Jesus Mari
Médico psiquiatra, é professor titular e chefe do Departamento de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (EPM-Unifesp)
TENDÊNCIAS / DEBATES

Enquanto CPFs morrem, Bolsonaro serve cafezinho para os CNPJs, FSP

Presidente mantém campanha pela economia, mas governo não tem plano para retomada segura

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Pelo segundo dia seguido, o ministro da Saúde disse que o governo deve recomendar medidas mais rigorosas de isolamento contra o coronavírus em algumas cidades. Nelson Teich afirmou na Câmara que o chamado “lockdown” pode ser implantado para “segurar o número de casos novos” de contaminação.
O doutor está na contramão do chefe. Após receber empresários e fazer um comício no STF contra o distanciamento, Jair Bolsonaro alegou que as restrições são inúteis. “Essa questão de ‘fique em casa’ não está funcionando. Está servindo para matar o comércio”, diagnosticou.
O presidente trocou o ministro responsável pelo combate à pandemia porque Henrique Mandetta não dizia o que ele queria ouvir. Teich assumiu com um discurso errático e completou 20 dias no cargo sem nenhuma ideia de como enfrentar a crise, mas nem ele conseguiu maquiar a realidade para agradar ao patrão.
Bolsonaro insiste numa retomada imediata e milagrosa da economia, embora ninguém no governo seja capaz de apresentar um plano para que isso seja feito de forma segura. Seu propósito é puramente político: uma tentativa de manter a tensão com governadores e se proteger dos danos provocados pela recessão.
Enquanto sistemas hospitalares entram em colapso e corpos se amontoam em câmaras frigoríficas, o presidente só se lembra deles para fazer campanha pela reabertura de lojas e fábricas. “A indústria comercial está na UTI”, declarou. “Depois da UTI, é o cemitério.”
Ele reproduzia a metáfora de lobistas que foram a Brasília para defender o relaxamento das medidas de restrição. Um deles, representante de fábricas de brinquedos, mostrou qual era a preocupação da turma. Reclamou da China e completou: “Eu tenho um inimigo lá fora prontinho para suprir o mercado inteiro, e então haverá morte de CNPJ”.
Até esta quinta (7), morreram 9.146 CPFs, na linguagem do empresário. Já os CNPJs do grupo que visitou Bolsonaro receberam ajuda do governo e cafezinho no Palácio do Planalto.​
Bruno Boghossian
Jornalista, foi repórter da Sucursal de Brasília. É mestre em ciência política pela Universidade Columbia (EUA).

A seguir, os omissos e hidrófobos, FSP Ruy Castro

Nós, os amigos de Aldir Blanc, não pudemos nos despedir dele. Quando soubemos que fora para o Miguel Couto, Aldir já estava fora do nosso alcance, como acontece com as vítimas da Covid-19. E, quando o transferiram para a UTI e depois para o Pedro Ernesto, nem mais sua família pôde vê-lo. Ninguém, exceto a equipe médica, foi testemunha da luta que, inconsciente, seu corpo travou contra a morte durante 20 dias. Ninguém, exceto os íntimos, pôde levá-lo ao reduto final, e nem mesmo a eles foi concedido um beijo ou olhar de despedida.
Esse quadro de internações repentinas e despedidas prematuras está se repetindo em todo o país, milhares de vezes por dia. Os números já são massacrantes por si, mas insuficientes para descrever o sofrimento de cada cônjuge, pai, filho ou família. Um dia, muitas dessas histórias individuais serão contadas e só então saberemos o alcance de cada uma. Isto se antes não formos, nós mesmos, testemunhas de casos próximos ou seus protagonistas.
Tem-se a impressão de que, até agora, só os nossos estão morrendo. E não me refiro aos artistas, aos famosos, mas também àqueles, anônimos para a maioria e tão importantes para suas ruas ou comunidades. Os jornais publicam diariamente os perfis dessas pessoas, e só então ficamos sabendo quem perdemos e o quanto farão falta.
Não vi até agora a notícia da morte de ninguém que, próximo ou distante de Jair Bolsonaro, mas estimulado por ele, continua negando a pandemia, fazendo carreatas, trocando perdigotos, esbravejando insultos e agredindo enfermeiros e jornalistas. Mas não é possível que a irresponsabilidade, a inconsciência e a crueldade sejam imunizantes.
Teme-se que, em breve, o número de mortes diárias chegue aos quatro dígitos. Só que, quando acontecer, atingirá também os omissos e os hidrófobos, dentro e fora do governo. O vírus, ao contrário deles, não conhece ideologia.