quarta-feira, 6 de maio de 2020

Ruy Castro Confiante no dispositivo, FSP

Antes de Bolsonaro, outro presidente acreditou às cegas nas Forças Armadas

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Do alto de seu palanque presidencial, Jair Bolsonaro espuma, impreca, manda calar a boca e, em seguida, faz-se de indignado e urra que "chega", "sua paciência se esgotou" e que as Forças Armadas estão "com o povo" —leia-se, com ele, Bolsonaro. Dá a entender que, a um comando seu, tanques, aviões e navios se porão em marcha e arriarão o peso de suas armas sobre o STF, o Congresso, a imprensa e quem mais discorde dele. Cita a Constituição, as instituições, a liberdade e a democracia, mas deixa implícito que, para garanti-las, será preciso primeiro destruí-las. E, para isso, está escorado pelos militares.
Muita gente já acreditou nisso no passado. Em 1964, outro presidente, João Goulart, foi levado por uma claque palaciana e sindical a tomar atitudes contra sua natureza de homem tíbio e inseguro, como a de propor reformas "na lei ou na marra", permitir a instabilidade política e insuflar a intranqüilidade nos quartéis. E tudo porque o convenceram de que estava protegido por um "dispositivo militar" organizado pelo general Assis Brasil, chefe da sua Casa Militar.
Segundo o dispositivo, todos os comandos de tropas estavam alinhados com Jango. Os generais A, B e C eram "nossos"; X, Y e Z também; o general K, de São Paulo, era "compadre do presidente"; e Fulano, Beltrano e Sicrano estavam "enquadrados". Tudo nos conformes. Não só as esquerdas acreditaram nisso. A direita também --daí o golpe.
No dia 1º de abril, o golpe marchou, e o fabuloso dispositivo era uma miragem. Seus tanques não saíram, aviões não voaram, navios continuaram boiando. Os generais com que ele contava ficaram em casa, de pijama, ou traíram. O próprio K —Amaury Kruel—, compadre ou não, foi um. O dispositivo existia, mas era o do inimigo.
Bolsonaro já deixou Jango no chinelo em matéria de barbaridades contra a ordem legal. Está confiante em seu dispositivo militar.
Bolsonaro ao sair do Alvorada nesta terça (5/5) - Ueslei Marcelino/Reuters
Ruy Castro
Jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.

terça-feira, 5 de maio de 2020

Não tementes ao vírus, Gilles Lapouge, O Estado de S.Paulo


05 de maio de 2020 | 03h00

Há pessoas mais intolerantes do que Trump ou Bolsonaro. São aquelas que, em Israel, encontramos em alguns bairros de Tel-Aviv ou Jerusalém, e em algumas cidades pequenas. Em Paris, elas se concentram nos distritos 19 e 20 e pertencem à comunidade ultraortodoxa dos haredim, o que significa “aqueles que temem a Deus”. Mas não o coronavírus.
E eles são numerosos e poderosos, pois Yaakov Litzman, presidente da sua agremiação política, Agudat Yisrael, comanda o Ministério da Saúde israelense. Litzman, de 72 anos, com seu chapéu e vestimenta negros e barba branca, parece ter saído de uma sinagoga do século 15. Ele não só não possui nenhum estudo de medicina, como também não toma nenhuma decisão sobre a saúde antes de consultar o mais venerável dos rabinos, que parece receber as ordens do Alto.
Volta
Judeu ultraortodoxo caminha por uma estação de trem vazia, em Jerusalém  Foto: Abir Sultan / EFE
Litzman é minucioso em matéria de religião. Como ministro da Saúde, já pediu demissão várias vezes. Em 2017, ele se demitiu porque os operários que trabalhavam na manutenção ferroviária não respeitavam o dia do shabat. Este ano, com o surgimento do coronavírus, sua recusa em atender às regras ditadas pelo governo para reduzir a epidemia provocou revolta, até entre os haredim, aterrorizados com o perigo. 
Além disso, o que se fala, sem provas concretas, é que o ministro foi visto na sinagoga onde estaria confinado. Aos ataques, ele respondeu: “Esperamos que o Messias chegue antes da Páscoa, que neste ano será em 8 de abril. Ele virá nos salvar, como Deus nos salvou no êxodo do Egito”.
A população de Israel, uma das mais evoluídas e modernas do mundo, está cada vez mais furiosa com a obstinação do ministro da Saúde: os professores mais reconhecidos do campo da medicina, aterrorizados com as posições adotadas pelo ministro, exigem que suas ordens não sejam acatadas. 
É verdade que, mesmo se desejassem, os “tementes” não podem se inclinar às ordens do poder. É certo que, a separação de homens e mulheres não seria um problema, uma vez que a crença já estabelece essa separação – as mulheres ocupando espaços subalternos, geralmente exíguos, no fundo das sinagogas. Não existe ar-condicionado, proibido como todas as invenções modernas. Nada de internet e nenhum outro jornal além do seu.
 

PARA ENTENDER

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Eles conseguiram impedir que seus jovens fossem obrigados a prestar o serviço militar, não só por causa dos seus deveres religiosos, na sinagoga, mas também porque o Exército seria uns instituição do poder e eles o ignoram. Durante a crise atual foram distribuídas refeições quentes pelos soldados. As crianças haredim, que jamais ouviram falar do Exército, ficaram atônitas ao verem os soldados.
O incompreensível é que essa comunidade tem um poder político e um ministro pelo menos. O fato é que eles são numerosos (cerca de 20% da população), mas imagino que seja impossível fazer um recenseamento, pois sem dúvida isso é proibido pelos rabinos. O ministro da Saúde conseguiu resistir às críticas e conservar seu feudo, embora nem o Messias, nem mesmo Deus, tenham se manifestado na Páscoa, apesar do discurso tranquilizador de Litzman.
Israel adotou as recomendações sanitárias de modo exemplar, registrando um pequeno número de mortes pelo coronavírus. Em compensação, nos bairros de grande densidade populacional dos ultraortodoxos, a taxa de mortalidade é enorme. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO
É CORRESPONDENTE EM PARIS

Qual deve ser o objetivo do Estado? Acumular resultados ou construir bem estar social?, OESP

Gonzalo Vecina *, O Estado de S.Paulo
05 de maio de 2020 | 05h00


Esta é uma das indagações mais contemporâneas. Até onde o Estado deve ir. Além de decidir o que deve ser feito e entregue à população, também deve fazer? 
É o caso em que a definição equivocada do problema submete o objetivo principal ao objetivo secundário. Qual deve ser o objetivo da ação do Estado – acumular resultados ou construir bem-estar social (BES)? E não se deve achar que existe excludência na proposição. Desde que não exista subordinação, os dois objetivos podem conviver. Mas construir BES será o objetivo principal.
Gonzalo Vecina Neto
Gonzalo Vecina Neto, médico sanitarista e novo colunista do 'Estado' Foto: Felipe Rau/ Estadão
Assim, por exemplo, garantir o direito de ir e vir é o caminho para construir BES. Se será o Estado ou o privado que prestará o serviço dependerá da capacidade do Estado de ser eficiente na realização desse serviço. Se for o privado, a relação será intermediada pela presença do lucro. Mas o serviço – direito de ir e vir – estará entregue.
Aí a discussão do que é gerenciar – fazer. Toda organização existe para cumprir com seus objetivos, sua razão de existir é entregar à sociedade o que a sociedade demanda. Porém, para realizar as entregas, ela deve mobilizar recursos – pessoas, equipamentos, materiais e conhecimentos. A partir dessa mobilização é que os objetivos serão atingidos e as entregas se realizarão. Gerenciar, administrar é, portanto, de forma simples, a capacidade de mobilizar recursos para atingir objetivos.
Como o Estado mobiliza recursos? Por causa da necessidade de transparência e do princípio da isonomia para contratar pessoas, o Estado realiza concursos públicos e para comprar realiza licitações. Os dois procedimentos estão voltados para realizar a melhor escolha de pessoas, materiais, conhecimentos, garantindo ao mesmo tempo iguais oportunidades a todos que queiram ser servidores públicos ou queiram vender coisas para o Estado e as melhores escolhas e oportunidades para a administração do Estado.
A capacidade de mobilizar recursos, porém, foi revolucionada pelas transformações no mundo da gestão levadas a efeito pela ideia da ação estratégica, que muda o plano na medida em que o mundo ou as organizações mudam. 
Mas, mais do que a ideia da estratégia, a gestão foi revolucionada pela incorporação da tecnologia da informação. Esses dois vetores transformaram de maneira radical a capacidade de mobilização de recursos nas organizações.
Assim para contratar uma pessoa o Estado leva um ano e uma organização privada, um mês. Os estoques médios de um hospital estatal não são inferiores a 90 dias, mesmo com o advento dos pregões eletrônicos e em um bom hospital privado estes estoques não devem passar de 20 dias. Tempo é um recurso valioso e estoque é dinheiro parado.
Milhares de máscaras distribuídas para hospitais na Alemanha
Milhares de máscaras distribuídas para hospitais Foto: REUTERS/Leon Kuegeler
Até aqui tomei o cuidado de não usar a palavra público e, sim, Estado. O público pode ser privado e o Estado será sempre público. O Estado hoje não está capacitado para fazer. Precisa ser reformado. E parte de suas funções públicas deve ser realizada pelo setor privado – seja através de parcerias público-privadas intermediadas pelo lucro ou de ações de cooperação com entidades sem finalidades lucrativas como as realizadas por OS ou Oscips na área da saúde. A experiência da gestão de hospitais estatais por OS em São Paulo é um exemplo do sucesso da realização das entregas que constroem BES, que deve ser o objetivo principal do Estado. Óbvio que essa relação deve ser transparente e acompanhada pelos órgãos de controle e pela sociedade. 
Transparência e eficiência são os desafios destes tempos.
* É médico sanitarista