quarta-feira, 6 de novembro de 2019

Confiança nas instituições, Antonio Delfim Netto, FSP

Nos últimos 31 anos, ninguém teve disposição de lançar as reformas que agora são propostas

Parte importante da inteligência nacional, defensora incondicional do Estado democrático de Direito, estimula desconfiança e ceticismo em relação ao programa do ministro Guedes, com o qual, provavelmente, está de acordo. Afinal, quem é contra aumentar a produtividade do trabalho através da competição e menos intervenção estatal; promover uma abertura cuidadosa da economia; pôr ordem nas finanças da União e ajudar os entes federados a fazerem o mesmo; estimular um salto qualitativo na prestação dos serviços públicos e no controle do funcionalismo; propor uma reforma que organize a fúria tributária e corte os subsídios fiscais de eficiência duvidosa e que produzem efeitos locacionais distorcivos?
Apenas para lembrar. Mesmo com o teto de gastos, a situação fiscal da União ainda é muito delicada, mas há claros sinais de que a relação dívida bruta/PIB caminha para estabilizar-se, e o custo da dívida caiu com a queda significativa da taxa de juros. Pelo menos seis Estados estão em situação falimentar, e mais de 70% dos municípios não estão longe disso, com despesas que, recorrentemente, excedem a sua receita. 
Depois da aprovação da reforma da Previdência, o Ministério da Economia pretende propor ao longo desta semana um amplo programa de redistribuição de recursos entre os entes federados através de emendas constitucionais (PECs) apresentadas no Senado. Na Câmara, PECs e projetos de lei para a reforma da administração pública, estímulos ao emprego e combate à pobreza. Tudo em entendimento com Davi Alcolumbre e Rodrigo Maia, presidentes do Senado e da Câmara, respectivamente. Propostas abertas ao mais amplo debate nos estritos limites impostos pela Constituição, que a todos obriga e está acima de tudo.
O resultado é imprevisível. Será aquilo que aprovar a maioria (especial ou ordinária) do Congresso, como determina a lei. É verdade que as reformas estão atrasadas 25 anos e talvez sejam ambiciosas, como dizem os críticos. Mas é ainda mais verdade que nos últimos 31 anos ninguém teve a disposição de propô-las!
Não há risco institucional. O Brasil funciona (com algum barulho) sob o império da lei e o controle do STF. Vamos dar-lhe uma oportunidade (se o Congresso aprovar) de retornar a um crescimento social e econômico robusto, equânime e sustentável. Para isso, é preciso respeitar o equilíbrio entre o consumo “presente”, que depende da vontade política eventual, e a perspectiva de consumo “futuro”, que depende do investimento de hoje. É este que determina o aumento do emprego de amanhã. Essa é a equação que o exercício político republicano tem que resolver. O resto é chantilly!
 
Antonio Delfim Netto
Economista, ex-ministro da Fazenda (1967-1974). É autor de “O Problema do Café no Brasil”.

Os limites do corporativismo, FSP

Proposta para que enfermeiros do SUS realizem consultas e prescrevam drogas tem resistência de conselhos médicos

Gostei da proposta do Ministério da Saúde de ampliar as situações nas quais enfermeiros do SUS possam realizar consultas, solicitar exames e prescrever drogas. Embora a iniciativa esteja em tese amparada por leis federais, ela encontra forte resistência dos conselhos médicos, que entendem esses atos como exclusivos da classe.
Passo ao largo da discussão jurídica e me atenho ao aspecto logístico do sistema público de saúde. Diante das dificuldades orçamentárias do Estado brasileiro e das pressões demográficas, o SUS terá de tornar-se mais produtivo. Isso significa confiar cada vez mais no poder dos algoritmos para atender a parcelas crescentes da população.
É preciso desenvolver bons protocolos, que possam ser aplicados por profissionais da saúde que não o médico, mas que identifiquem rapidamente os casos que fujam ao padrão e os encaminhem ao clínico geral ou ao especialista. Vale observar que mesmo países mais ricos que o Brasil e nos quais a transição demográfica foi mais suave, como o Canadá e o Reino Unido, já utilizam há tempos essa estratégia.
O problema de fundo é que a formação do médico é proibitivamente cara. No Brasil, são seis anos de graduação em regime integral em cursos que exigem, além de aulas expositivas, laboratórios, cadáveres, simuladores etc. O custo de uma graduação em medicina excede facilmente os R$ 500 mil. Depois, são mais dois anos de residência. Uma especialização pode requerer dois ou três anos adicionais. Não faz muito sentido pôr um profissional desse gabarito para desempenhar tarefas repetitivas, que em breve talvez sejam delegadas a computadores, sem nenhum tipo de intervenção humana.
Entendo a ansiedade dos médicos em ver outros profissionais se apropriando de tarefas que antes eram atribuição exclusiva da categoria, mas o corporativismo tem limites. A alternativa é encarecer ainda mais o sistema e/ou excluir mais pacientes em filas impossíveis.

O pior por vir, Opinião FSP

Despreparo do governo limita chances de identificar responsáveis por óleo vazado

Mancha de óleo na praia do Janga, em Paulista, no litoral norte de Pernambuco - Marlon Costa/Futura Press/Folhapress
Na véspera de um megaleilão para exploração de petróleo no mar, marcado para esta quarta-feira (6), o governo brasileiro prosseguia dando demonstrações de despreparo para suas responsabilidades na área. Dois meses após iniciar-se o maior desastre ambiental do setor, imperava a perene confusão.
“O que chegou até agora e o que foi recolhido é uma pequena quantidade do que foi derramado. Então, o pior ainda está por vir”, disse no domingo (3) o presidente Jair Bolsonaro (PSL).
Em um país normal, declaração de igual teor do presidente da República estaria devidamente calçada em informação confiável fornecida por auxiliares lotados na coordenação da resposta ao derramamento. Faz algum tempo, contudo, que os limites da normalidade estão sob estresse no Brasil.
“Nós não sabemos a quantidade derramada, o que está por vir ainda”, contradisse o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva. O militar maximizou a incerteza durante uma entrevista coletiva dos vários órgãos federais envolvidos no esforço de remediação, com a Marinha à frente.
Desinformação cabal: eis a melhor descrição do que se observou até aqui. Depois de apontar o dedo para a Venezuela e uma ONG, insustentavelmente, o governo federal enfim se valeu de alguns dados técnicos para centrar a suspeita sobre o navio grego Boubolina, da empresa Delta Tankers Ltd.
Mesmo esse movimento comporta alguma precipitação. Baseia-se na presença da embarcação em área compatível com o setor oceânico indicado por modelos de dispersão como origem provável das mais de 4.000 toneladas de óleo retiradas de três centenas de localidades nordestinas. Mas ainda não há provas concretas para corroborar um indiciamento.
A Delta Tankers nega o acidente e diz que cabe ao Brasil comprovar que o derrame partiu do Boubolina. A quantidade recolhida até aqui corresponde a 27 mil barris de petróleo cru, que teria no mercado o valor de US$ 1,5 milhão (R$ 6 milhões) e representa 1/40 da capacidade de carga do navio grego.
Tal prejuízo empalidece diante do custo da operação de limpeza dos contaminantes, sobretudo agora que a Marinha, só dez semanas depois, mobilizou suas maiores embarcações —sem contar as perdas para a saúde pública, a pesca e o turismo, que o Ibama agora projeta na casa de bilhões. 
Em retrospecto, a descoordenação exibida pelo governo Bolsonaro sugere que o país será incapaz de montar um caso jurídico robusto contra os causadores do derramamento e que o custo social e econômico da descontaminação recairá sobre os brasileiros. O pior, com efeito, ainda está por vir.