sexta-feira, 12 de abril de 2019

Por que agentes da lei atiram tanto?, FSP


O escandaloso fuzilamento do músico Evaldo dos Santos por tropas do Exército no Rio de Janeiro é a prova material de que há algo de errado nas práticas das forças de segurança brasileiras.
Ao menos na teoria, a principal diferença entre a polícia e o bandido é que a primeira atua tendo em vista o interesse público, enquanto o último age de acordo apenas com suas próprias conveniências. Sim, é mais difícil ser polícia do que bandido.
E, no que diz respeito à abordagem de suspeitos, o interesse da sociedade é duplo. De um lado, é preciso identificar e prender quem tenha infringido a lei, com o objetivo de promover a segurança pública. De outro, há o imperativo de preservar a vida e a integridade física da população.
O arcabouço jurídico brasileiro deixa muito claro que evitar mortes é mais importante que a captura. Para prová-lo, basta lembrar que eu não tenho o direito de atirar no ladrão que entra em minha casa de madrugada. Só poderei fazê-lo legalmente, se a minha vida ou a de meus familiares tiver sido ameaçada pelo criminoso.
Atender aos dois objetivos não chega a ser contraditório, mas exige certa ginástica. É preciso evitar ao máximo que balas sejam disparadas, especialmente em lugares densamente povoados e quando não se tem certeza sobre quem está sendo abordado. Mas não dá para simplesmente proibir o policial de usar a arma. Fazê-lo minaria por completo sua autoridade e o privaria dos meios para defender-se quando sua vida estiver em perigo.
A solução, admito, é esquisita. Precisamos de protocolos de engajamento que não cheguem a vetar a utilização da arma, mas que, na prática, a tornem um evento excepcional. A analogia é a polêmica Lei do Abate, que regula a derrubada de aviões em atitude hostil. Como até uma criança saberia elaborar —mas não certas autoridades—, é preferível que vários suspeitos fujam a provocar a morte de um único inocente.
 
Militares acertam mais de 80 tiros em carro em que estava o músico Evaldo Rosa dos Santos
Militares acertam mais de 80 tiros em carro em que estava o músico Evaldo Rosa dos Santos - Fabio Texeira/Reuters


Hélio Schwartsman
Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…".

quarta-feira, 10 de abril de 2019

Assembleia de SP tenta criar ‘auxílio-veículo’, OESP


Proposta que ainda será debatida em plenário prevê acréscimo de R$ 4,2 mil aos R$ 33 mil da verba de gabinete

Pedro Venceslau, O Estado de S.Paulo
10 de abril de 2019 | 05h00
Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo vai criar um “auxílio-veículo” de R$ 4.244 mensais para os deputados que decidirem abrir mão do veículo da frota da Casa e optar pelo aluguel. A resolução apresentada pela Mesa Diretora, que ainda será votada no plenário, prevê que o valor será acrescido aos R$ 33,1 mil a que cada parlamentar já tem direito por mês como verba de gabinete. Isso vai gerar um custo anual de R$ 5 milhões aos cofres públicos.
ALESP
Plenário. Cauê Macris preside sessão ordinária na Assembleia Legislativa de São Paulo Foto: CAROL JACOB/ALESP
No ano passado a Assembleia de São Paulo gastou R$ 1,8 milhão com a manutenção dos automóveis da marca Chevrolet Cruze. Segundo a assessoria da Casa, o objetivo é extinguir a frota parlamentar em um ano. Os veículos serão doados ao Fundo Social de Solidariedade do Estado de São Paulo.
Atualmente, dez deputados da atual legislatura abriram mão de utilizar os veículos oficiais, que estão parados na garagem da Assembleia. A resolução, porém, enfrenta resistência de parte dos parlamentares.
Para o deputado Daniel José, do Novo, seria mais adequado que o custo com o aluguel de carros fosse descontado da verba de gabinete já existente, sem que houvesse um acréscimo de gastos. “Não é papel do Estado gerir frota de carro. Esse é o ponto central. Essa quantia será acrescida à verba, sendo que os deputados já têm uma cota de R$ 33 mil por mês”, afirmou o parlamentar. Os quatro deputados da bancada do Novo abriram mão do carro oficial.
Daniel José disse considerar o valor de R$ 4.244 elevado. “Com R$ 2 mil por mês é possível alugar um carro básico com ar-condicionado. Não precisa ser carro de luxo”, afirmou. Ele ressaltou ainda que, além do custo do veículo, são gastos R$ 6.500 mensais com cada motorista, já que os deputados são proibidos pelo regimento de conduzir o carro. “A maioria (dos motoristas) fica parada o dia todo no estacionamento”, afirmou.
Deputados do Novo também questionam o fato de cada parlamentar ter a prerrogativa de decidir onde alugar o veículo, em vez de a Casa fechar um contrato em escala.
Líder do PSDB na Assembleia, a deputada Carla Morando também abriu mão do veículo da Casa. A tucana organizou um abaixo-assinado, que já recebeu cinco mil assinaturas, para que os parlamentares que residam a menos de 100 km de distância da Assembleia abram mão do veículo. A base dela é em São Bernardo do Campo. “Austeridade financeira tem sido item fundamental em administrações públicas. Trata-se de um dever com a sociedade”, afirmou Carla.
Dos 94 deputados eleitos, 59 têm base a menos de 100 km da Assembleia – 62% do total. A economia, segundo Carla, seria de R$ 5 milhões com a medida, uma vez que proporcionaria fim dos gastos com combustível e manutenção. No mandato total, a contenção financeira seria em torno de R$ 20 milhões.
‘Demagogia’. O deputado Emidio de Souza (PT) classificou a proposta de extinguir a frota como “demagógica”. “Para deputados de família rica ou classe média, o carro não faz falta. Mas para quem não é, faz. Não concordo com a extinção da frota. Acho uma medida demagógica”, afirmou. Emidio também ponderou que os carros não duram para sempre e, cedo ou tarde, têm de ser substituídos.
A deputada Janaina Paschoal (PSL) também é contra a extinção da frota. “Uso meu carro próprio, mas o veículo da Assembleia é usado para trabalho de gabinete”, disse ela.
Aplicativo. Outra possibilidade ventilada por deputados é o uso de transporte por aplicativo. Essa ideia, porém, é rejeitada por parlamentares que moram longe da capital. Os deputados ainda têm direito a auxílio-moradia no valor de R$ 2.850O orçamento de 2019 da Assembleia paulista é de R$ 1,3 bilhão.
Procurada pela reportagem, a assessoria da Assembleia paulista informou que a atual frota da Casa foi adquirida há oito anos e possui, em média, 350 mil quilômetros rodados. / COLABOROU FABIO LEITE

terça-feira, 9 de abril de 2019

Risco mimimi em números : Discursos de políticos não são inócuos , FSP

Discursos de políticos não são inócuos

A peça “Henrique V” (1599), atribuída a William Shakespeare, narra uma façanha inglesa na batalha de Azincourt, de 1415. A disparidade numérica de 4 para 1 dava larga vantagem aos franceses que, ainda assim, perderam para os britânicos. O bardo inglês coloca todas suas fichas no poder de liderança do rei ao fazer seu discurso, às vésperas da batalha. Ficção ou história à parte, sabemos como somos capazes de proezas diante de lideranças fortes com as quais nos identifiquemos, seja para lutar pelo bem comum, seja para a destruição em massa.
Discursos não são inócuos. A mais ingênua fofoca gera ruído e desconfiança, e não olhamos a pessoa sobre quem se ouviu um comentário negativo da mesma forma que a olhávamos antes. 
 
No dia 8 de março de 2017, o então deputado Jair Bolsonaro (PSL) gravou o seguinte comentário para o Dia da Mulher: “Parabéns a todas as mulheres do Brasil, porque eu defendo a posse de armas de fogo para todos. Inclusive vocês, obviamente, as mulheres. Nós temos de acabar com o ‘mimimi’. Acabar com essa história de feminicídio, que, daí, com arma na cintura, vai ter é homicídio”.
Desde o início de 2019, um fenômeno tem desnorteado pesquisadores e cidadãos: o aumento estarrecedor dos casos de feminicídio em São Paulo, justamente no momento em que a sociedade parece mais sensível ao tema. Qual a aposta dos pesquisadores? 
Tem sido pauta da campanha do atual presidente do Brasil o discurso de desqualificação, que chama de “mimimi” o sofrimento de mulheres, negros, indígenas, transexuais e pobres. Pauta que foi corroborada, assumida ou simplesmente ignorada pelas pessoas que votaram nele em troca de uma quimera econômica. 
O risco de considerar graves denúncias um simples “mimimi” estava precificado, como dizem os analistas econômicos, quando os brasileiros decidiram fechar os olhos para a violência dessa negação. 
Algo como vender a alma ao diabo, sem pretender entregá-la no final. A pesquisa científica foi dando lugar à política do achismo econômico oportunista (liberação das armas, por exemplo) com efeitos nefastos mensuráveis.
Vimos na última semana um deputado hostilizar uma colega em plenário, afirmando que tiraria uma transexual a tapas do banheiro feminino se preciso fosse, alertando que apenas a biologia pode definir o gênero. Esse senhor esquece que a biologia é um discurso sobre os corpos e não sobre os sujeitos. Mas é claro que a notícia mais picante veio a seguir, quando ele teve que pular do armário às pressas antes que viesse a público sua verdadeira orientação sexual. Não obstante, retomou seu discurso de ódio. Ódio a si mesmo por ser gay ou necessidade de manter o eleitorado, a essa hora já bastante abalado? 
Fica em aberto. Discursos de políticos não são inócuos, porque deles partem políticas públicas e identificações morais, que inibem ou incentivam comportamentos sociais.
Quando nos debruçarmos sobre os números do “risco mimimi” —o dobro de casos de feminicídio no primeiro bimestre de 2019 em relação ao mesmo período de 2018, uma morte a cada quatro horas— lembremos da crítica às feministas que saem nuas pelas ruas, defecam em fotos, fazem gestos obscenos, gritam palavrões nos raps e nos funks. São essas as chocantes e imperdoáveis armas das mulheres?
Esses são gestos pueris quando comparados com os homens que, armados de discursos misóginos, músculos e, em breve, de mais revólveres, não cessam de abusá-las, estuprá-las e matá-las. E, pelo amor de Deus, esqueçam o mimimi. 
Vera Iaconelli
Diretora do Instituto Gerar, autora de “O Mal-estar na Maternidade”. É doutora em psicologia pela USP.