segunda-feira, 8 de abril de 2019

Mortes demais, Opinião FSP

Poder público estimula, mais do que tolera, uma cultura de violência sanguinária na polícia

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Movimentação de policias em Guararema após tentativa frustrada de assaltos a bancos - Danilo Verpa/Folhapress
Pouco há a comemorar na ação da Polícia Militar em Guararema, a pacata cidade paulista onde a Rota matou 11 de 25 suspeitos de assaltar dois bancos. Quando muito pode-se registrar que foi sorte nenhum civil nem agentes saírem feridos ou mortos da violenta ação.
Matar não é a obrigação primeira da polícia —ao contrário do que parecem sugerir autoridades e políticos que exploram de modo oportunista o sentimento de alarme da população. Seu ofício é capturar criminosos e levá-los à Justiça. Não existe pena de morte no Brasil, sempre é bom lembrar.
Na prática, espraia-se a noção regressiva de que agentes podem decidir por si sós, no calor das patrulhas, quem é merecedor da pena capital inexistente. Por isso morrem tantos, culpados e inocentes.
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Afirmar que os assaltantes armados de fuzis e escopetas não foram a passeio até Guararema não chega a ser um argumento. Trata-se tão somente de rendição a um certo senso comum, em tudo oposta ao Estado de Direito.
Se havia informação sobre a iminência de um ataque a bancos, seria obrigação das forças de segurança planejar a melhor maneira de prender os facínoras com vida. Assim seria possível obter deles mais detalhes sobre mandantes, esconderijos e métodos e, quem sabe, desarticular futuras investidas.
Se planejamento houve, foi para uma emboscada mortífera, infelizmente não a primeira perpetrada pela PM paulista. E mesmo ela não pode ser dada como bem-sucedida, afinal muitos criminosos escaparam e até reféns foram feitos.
Torna-se mais evidente que o poder público estimula, mais do que tolera, uma cultura de violência sanguinária na polícia.
As declarações temerárias do governador João Doria (PSDB), que prometeu condecorar militares da Rota, e do presidente Jair Bolsonaro (PSL), parabenizando-os, pode decerto angariar votos, mas jamais resolverá os problemas da segurança pública do país.
Impelida por esse gênero de incentivo incivilizado, a letalidade policial já parecia vir em crescimento em terras paulistas mesmo antes da matança em Guararema. Ocorreram em março 64 óbitos em intervenções policiais, contra 43 no mesmo período do ano passado.
Doria não chegou, pode-se dizer, ao cúmulo de irresponsabilidade do governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC), que defende "abater" portadores de armas por meio de atiradores de elite no alto de construções —sem investigação, sem julgamento, sem sentença, na base do puro arbítrio.
Entretanto o tucano flerta de modo perigoso com um populismo policial que finge ser política pública.

domingo, 7 de abril de 2019

Os Quatro cantos do mundo , Leandro Karnal, O Estado de S. Paulo

Leandro Karnal, O Estado de S. Paulo
07 de abril de 2019 | 02h00

O desfile da humanidade sempre contou com a presença obrigatória da ala dos otimistas. O Marquês de Condorcet (1743-1794) pertencia ao grupo da metade cheia do copo. A ciência resolveria os males do mundo, a Razão triunfaria e as luzes seguiriam o processo natural e inevitável de elevar os homens a lugares melhores. O bom filósofo aderiu cedo à revolução e logo descobriria que a rota da iluminação tinha pedágios, desvios e escroques a esmo. O movimento de 1789 tragou o iluminista que acabaria morrendo em meio a tantas crises políticas. Um pouco da desconfiança de Edmund Burke (1729-1797), cético conservador lá do outro lado do canal, teria feito bem ao colega francês. 
Condorcet continua sendo pai fértil de róseos filhos. Muita gente imagina que o progresso seja linear e impossível de ser detido. Assim, o exame criterioso dos dados objetivos conduziu à refutação do geocentrismo há quase meio milênio. Muito antes do Renascimento Científico já havia quem conseguisse ter uma ideia até do raio da Terra. Erastótenes, há mais de dois mil anos, calculou a circunferência da nossa rocha voadora chamada Terra. Chegou perto do número real. O pensamento racional moderno confirmou o que tantos intuíram antes. As viagens de circum-navegação de Fernão de Magalhães e de Francis Drake confirmariam o óbvio da trigonometria grega: o mundo é esférico, levemente achatado nos polos. Estava feito o consenso científico. As luzes condorcetianas avançaram. Os astronautas trouxeram fotos que fizeram Erastótenes sorrir no reino de Hades. Era o “progresso”, que, dentre muitas definições, pode ser entendido como o real em diálogo mais harmônico com a teoria científica. 
Há alguns dias, distraído, circum-navegando a programação com o controle remoto, encontrei um documentário sobre o terraplanismo nos EUA (Behind the Curve, Daniel Clark, 2018). Eu já conhecia rumores de internet sobre a volta de teorias geocêntricas e da Terra como espaço plano, adornado ou não por uma cúpula. O documentário trouxe luzes (ou trevas) sobre os rumores. Há grupos organizados, fazem encontros, publicam livros, apresentam programas de rádio e de internet. É confraria sólida e numerosa, e, sendo nos EUA, apresentam o binômio mais fundamental de todo movimento: canecas e camisetas. É verdade autoevidente: quem possui camiseta e caneca veio para ficar. 
Imaginei o terraplanismo crescendo e cerrando pactos com o criacionismo. Em breve, livros didáticos teriam de apresentar as duas teorias (em nome da diversidade democrática). Um trecho mostraria o modelo geocêntrico plano e, ao lado, a outra “teoria”, nossa maltratada bola voadora a que chamamos lar, em uma rota elíptica ao redor do Sol, num sistema de planetas e satélites perdidos nalgum ponto de um universo em expansão. Nada impede, no deslizar da nau dos insensatos, que surjam teorias mais criativas do que a monótona esfera ou superfície plana. Que tal uma Terra como triângulo escaleno ou isósceles, e, saindo da coisa sem volume, um planeta em forma de cone ou de cubo? De longe evoco aulas de geometria do ensino fundamental. O livro didático, claro, para não ser acusado de ideológico, iria mostrando a sucessão de figuras uni, bi ou tridimensionais. O cosmopolitismo do texto facilitaria aos professores trabalhos interdisciplinares, Geografia e Matemática, por exemplo. Calcule o volume da Ásia cúbica... 
Não sou dado a teorias conspiratórias. As personagens do documentário diziam que a Nasa, os governos, os cientistas e quase todo mundo produziram a explicação da Terra esférica como parte de um complô. A pergunta lógica: qual seria a exata distinção entre dominar um mundo plano ou com curvas? O que ganhariam os poderes mundiais, se nosso lar planetário fosse um hexágono? Difícil explicar. Um terraplanista do documentário associa a “conspiração esférica” ao mesmo movimento dos direitos gays. Minha tradicional inabilidade com alucinógenos impede de seguir as conexões do entrevistado. Sempre que escuto tais seres imagino, “ele vota...”.
Além de descobrir a turma “flat”, conheci uma valiosa informação. Existe um “efeito Dunning-Kruger”. O efeito é uma certeza gerada pela ausência de informações, uma superioridade ilusória, uma certeza nascida da ignorância. Em outras palavras, alguém que leu um ou dois livros sobre um tema (atualizando: acessou um link ou viu um vídeo no YouTube) faria afirmações claras e com imensa convicção, pois o vazio faria ecoar mais o badalar oco. O efeito garante autoridade nascida do caráter raso.
Certezas absolutas não costumam passear com a inteligência. O conhecimento costuma facilitar a passagem da crença para o argumento e da opinião para o fato demonstrável. Terraplanistas, talvez, sejam inofensivos, divertidos, quase a dose certa de “loucos mansos” que nossa seriedade necessita. Há versões mais perigosas do terraplanismo como “as vacinas causam autismo”. No caso, o cômico do analfabetismo científico vira trágico e crença subjetiva produz paralisia infantil objetiva. Condorcet estava errado. A Terra não é chata, mas, as pessoas que nela habitam, eventualmente o são. Crenças trazem o pitoresco colorido do mundo esférico. Há quanto tempo você não faz vacinas? Sua crença mata e pode matar seu filho, cujo corpo cairá sobre o solo esférico ou reto, porque acima das bobagens da internet, existe o valor absoluto da vida humana. Bom domingo para todos nós que andamos sobre terra firme e esférica. 

A vida na mesa, Daniel Martins de Barros, OESP

O ser humano é analógico. Por mais que a revolução digital tenha trazido o conforto de nos livrar das filas de banco ou dos caixas de supermercado, a vida parece esvaziada quando tiramos dela todo seu aspecto físico. A experiência humana só é completa quando multissensorial. Acho que a primeira vez que ouvi falar disso foi quando minha avó Adélia explicou por que nós brindávamos batendo as taças.
Acho que ela tinha visto em algum programa vespertino que a degustação do vinho incluía o tato, tanto da mão na taça como da bebida na boca; a visão, na análise da cor e textura do vinho; o olfato, avaliando o buquê; e o paladar, obviamente. O tintim seria a maneira de incluir a audição. Não sei se é verdade, mas adoro a ideia de que, quanto mais sentidos envolvidos, mais rica é a experiência.
Livros e música ilustram bem o fenômeno. Embora a digitalização tenha permitido uma explosão no acesso de conteúdo, hoje, enquanto a venda de e-books desacelera, volta a crescer o mercado de livros físicos no mundo. Dados americanos mostram a mesma tendência na música - a venda de álbuns em streaming cai, enquanto a de LPs sobe. Há alguns anos, quando ganhei uma vitrola, entendi o porquê ao reviver o ritual multissensorial de consumir música em vinil. Esse é um dos motivos pelos quais os jogos de mesa estão voltando com tudo. Seja com tabuleiros, cartas ou dados, esse tipo de entretenimento vem experimentando uma nova onda de crescimento. 
De acordo com um relatório de 2018 publicado pela Reportlinker, o mercado de jogos deve atingir US$ 12 bilhões até 2023, um crescimento anual de 9%. O Brasil não está atrás - quem acompanha o mercado nacional tem visto a proliferação de editoras traduzindo e lançando uma diversidade inédita de títulos, muitas vezes concomitantemente ao mercado internacional. Ano passado mais de 5 mil pessoas compareceram à edição paulista do Diversão Offline, convenção anual de entusiastas que reuniu mais de 30 editoras. 
Nossos monstros
Daniel Martins de Barros.  Foto: Hélvio Romero
No auge dos anos 1970-1980, Grow e Estrela dominavam o cenário com Banco Imobiliário e War. Após um período de estagnação na década seguinte, nos anos 2000 o jogo mudou. Mais ou menos como a indústria cinematográfica de Hollywood foi superada em criatividade pelo renascimento das séries, as gigantes dos jogos vêm sendo deixadas para trás por editoras menores, mas com mais liberdade criativa. Nos chamados eurogames, nos quais o fator sorte é reduzido, os conflitos são frequentemente substituídos por estratégias e os jogadores são levados a mergulhar nos temas, sentindo-se na pele de exploradores, alquimistas, cowboys, e trazem novas mecânicas para a mesa, cada vez mais inventivas. 
Pensando bem, esse crescimento não deveria nos espantar. Jogar é uma das formas de entretenimento mais antigas que existem. Há referências egípcias ao jogo Senet com mais de 3 mil anos de idade. E alguns milênios antes nós já cavávamos buracos no chão e disputávamos com sementes partidas em mancalas diversas. 
Da mesma forma que quando as crianças brincam de casinha, de polícia, de pega-pega estão ensaiando para a vida real, aprendendo a lidar com regras, transgressões, praticando as interações sociais, os jogos de tabuleiro dão essa chance aos adultos. É uma forma de vivenciar situações de vida real em um ambiente lúdico, protegido, e ali praticar habilidades, testar soluções. É como a frase que vi atribuída ao comediante Ray Romano, segundo a qual os jogos de tabuleiro nos obrigam a estar concentrados, contar dinheiro, esperar a nossa vez de jogar, além de sermos sempre julgados por nossas ações; “É como se fosse um emprego”, ironizava. 
Finalmente há o aspecto de interação humana. Nesse tempo em que as pessoas nem levantam os olhos do celular para reclamar que ninguém tira o olho do celular, os jogos de tabuleiro e cartas pedem que olhemos nos olhos uns dos outros, troquemos ideias, negociemos, blefemos, comemoremos. É quase uma academia para a empatia. 
Quem quiser conhecer mais desse mundo, o Diversão Offline paulista será neste ano em 27 e 28 de abril, no Centro de Convenções São Luís. Bom jogo. E bom domingo.
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