O ser humano é analógico. Por mais que a revolução digital tenha trazido o conforto de nos livrar das filas de banco ou dos caixas de supermercado, a vida parece esvaziada quando tiramos dela todo seu aspecto físico. A experiência humana só é completa quando multissensorial. Acho que a primeira vez que ouvi falar disso foi quando minha avó Adélia explicou por que nós brindávamos batendo as taças.
Acho que ela tinha visto em algum programa vespertino que a degustação do vinho incluía o tato, tanto da mão na taça como da bebida na boca; a visão, na análise da cor e textura do vinho; o olfato, avaliando o buquê; e o paladar, obviamente. O tintim seria a maneira de incluir a audição. Não sei se é verdade, mas adoro a ideia de que, quanto mais sentidos envolvidos, mais rica é a experiência.
Livros e música ilustram bem o fenômeno. Embora a digitalização tenha permitido uma explosão no acesso de conteúdo, hoje, enquanto a venda de e-books desacelera, volta a crescer o mercado de livros físicos no mundo. Dados americanos mostram a mesma tendência na música - a venda de álbuns em streaming cai, enquanto a de LPs sobe. Há alguns anos, quando ganhei uma vitrola, entendi o porquê ao reviver o ritual multissensorial de consumir música em vinil. Esse é um dos motivos pelos quais os jogos de mesa estão voltando com tudo. Seja com tabuleiros, cartas ou dados, esse tipo de entretenimento vem experimentando uma nova onda de crescimento.
De acordo com um relatório de 2018 publicado pela Reportlinker, o mercado de jogos deve atingir US$ 12 bilhões até 2023, um crescimento anual de 9%. O Brasil não está atrás - quem acompanha o mercado nacional tem visto a proliferação de editoras traduzindo e lançando uma diversidade inédita de títulos, muitas vezes concomitantemente ao mercado internacional. Ano passado mais de 5 mil pessoas compareceram à edição paulista do Diversão Offline, convenção anual de entusiastas que reuniu mais de 30 editoras.
No auge dos anos 1970-1980, Grow e Estrela dominavam o cenário com Banco Imobiliário e War. Após um período de estagnação na década seguinte, nos anos 2000 o jogo mudou. Mais ou menos como a indústria cinematográfica de Hollywood foi superada em criatividade pelo renascimento das séries, as gigantes dos jogos vêm sendo deixadas para trás por editoras menores, mas com mais liberdade criativa. Nos chamados eurogames, nos quais o fator sorte é reduzido, os conflitos são frequentemente substituídos por estratégias e os jogadores são levados a mergulhar nos temas, sentindo-se na pele de exploradores, alquimistas, cowboys, e trazem novas mecânicas para a mesa, cada vez mais inventivas.
Pensando bem, esse crescimento não deveria nos espantar. Jogar é uma das formas de entretenimento mais antigas que existem. Há referências egípcias ao jogo Senet com mais de 3 mil anos de idade. E alguns milênios antes nós já cavávamos buracos no chão e disputávamos com sementes partidas em mancalas diversas.
Da mesma forma que quando as crianças brincam de casinha, de polícia, de pega-pega estão ensaiando para a vida real, aprendendo a lidar com regras, transgressões, praticando as interações sociais, os jogos de tabuleiro dão essa chance aos adultos. É uma forma de vivenciar situações de vida real em um ambiente lúdico, protegido, e ali praticar habilidades, testar soluções. É como a frase que vi atribuída ao comediante Ray Romano, segundo a qual os jogos de tabuleiro nos obrigam a estar concentrados, contar dinheiro, esperar a nossa vez de jogar, além de sermos sempre julgados por nossas ações; “É como se fosse um emprego”, ironizava.
Finalmente há o aspecto de interação humana. Nesse tempo em que as pessoas nem levantam os olhos do celular para reclamar que ninguém tira o olho do celular, os jogos de tabuleiro e cartas pedem que olhemos nos olhos uns dos outros, troquemos ideias, negociemos, blefemos, comemoremos. É quase uma academia para a empatia.
Quem quiser conhecer mais desse mundo, o Diversão Offline paulista será neste ano em 27 e 28 de abril, no Centro de Convenções São Luís. Bom jogo. E bom domingo.
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