Graziella Guiotti
02 Outubro 2018 | 16h25
*Escrito em parceria com Samuel Ralize de Godoy, sociólogo e mestre em ciência política pela Universidade de São Paulo.
A ciência política não é unânime sobre o significado de democracia. Diferentes vertentes consideram elementos diversos que seriam necessários para se chamar um regime de democrático, inclusive quanto ao enfoque na liberdade ou na igualdade. Contudo, desconhecemos definição de democracia que não abarque eleições competitivas, livres e justas, ainda que sejam raras as que resumam a democracia a esse elemento. Em outras palavras, as eleições são condição necessária, mas não suficiente para que um regime seja entendido como democrático. Levitsky e Way falam, aliás, de um regime híbrido pós-Guerra Fria que chamam de autoritarismo competitivo.
Pippa Norris propõe o conceito de integridade eleitoral. Algumas questões como voto de cabresto e fraude generalizada já são menos comuns em democracias consolidadas, mas outras, como tipos de financiamento de campanha e a influência do poder econômico nas decisões políticas, são objeto de debate e estão sofrendo constantes mudanças. Talvez o elemento mais novo e desconhecido seja a mudança na forma de consumo de informação para a tomada de decisão do voto. Com a diminuição da importância dos veículos tradicionais de acesso à informação, o risco das notícias falsas é flagrante. Tanto que, no Congresso norte-americano, chegou-se a discutir a regulação de redes sociais para evitar a propagação de notícias falsas em períodos eleitorais, especialmente de forma automatizada. Boatos se propagam rapidamente, apoiados na credibilidade pessoal do remetente.
Uma das mentiras que ficaram famosas nas últimas eleições, mas que vem de muito antes, foi a de que, se mais da metade dos votos fossem nulos, a eleição seria realizada novamente. Há, ainda, variações que dizem que os candidatos teriam de ser diferentes. Outra propaga que, até hoje, há diferença entre nulos e brancos na contagem do quociente eleitoral. Nenhum desses factoides é verdadeiro, mas eles se espalham como pólvora. Recentemente, surgiu uma nova leva sobre as urnas eletrônicas – propagada, inclusive, por detentores de mandatos que se sustentam em eleições realizadas pelas mesmas urnas.
A urna eletrônica entrou em operação no Brasil nas eleições de 1996, em 57 municípios. O experimento se expandiu para 537 municípios em 1998 e, dois anos depois, a urna passou a ser utilizada em 100% do País. De lá para cá, o equipamento se aperfeiçoou com uma série de medidas de segurança; entretanto, a desconfiança em torno da integridade e do sigilo do voto eletrônico sempre esteve presente. Afinal, a urna eletrônica brasileira é segura?
O Tribunal Superior Eleitoral (TSE), cuja origem remonta à década de 1930, quando se queria combater o voto de cabresto e o domínio de lideranças políticas locais sobre os procedimentos de votação e apuração nas regiões mais distantes da capital, foi o responsável pelo desenvolvimento do projeto da urna eletrônica brasileira. Tanto o hardware (o equipamento propriamente dito) quanto o software (o conjunto de sistemas instalados no equipamento) foram desenvolvidos por técnicos do Tribunal. Fato é que, na verdade, é relativamente pequeno o número de pessoas externas ao TSE que tiveram contato com os chamados códigos-fonte (as linhas de código que compõem o software) da urna eletrônica brasileira, o que gera grande desconfiança no meio acadêmico e, certamente, entre a população geral.
Por isso, o Tribunal vem empregando formas de diminuir a desconfiança e aprimorar a segurança do sistema. O processo de elaboração do código e preparação das urnas para votação é auditado pelos partidos políticos, pelo Ministério Público e pela Ordem dos Advogados do Brasil. O código costuma ser apresentado à comunidade técnica, para inspeção e melhorias (como foi o caso do teste público de 2017, por exemplo, em que uma vulnerabilidade foi encontrada e, segundo o Tribunal, foi posteriormente corrigida). Não obstante, o TSE informou que pretende abrir o código-fonte das urnas eletrônicas para a comunidade.
Ao início e ao término da votação, todas as urnas emitem as “zerésimas” e os boletins de urna, respectivamente, que permitem observar quantos votos estão registrados em seus arquivos de dados no início e no final do dia. Importante mencionar que nenhuma urna eletrônica tem conexão à Internet: as mídias de resultados são criptografadas, retiradas de cada urna e conectadas aos computadores dos tribunais, que transmitem os dados ao TSE. Além disso, por amostragem, algumas urnas já preparadas, lacradas e enviadas para as seções eleitorais são selecionadas e recolhidas na véspera da eleição para que, no grande dia, sejam submetidas à chamada “votação paralela”: num ambiente completamente filmado e controlado, algumas pessoas registram votos em cédulas de papel, outras pessoas digitam esses mesmos votos nas urnas selecionadas e outras fazem a contagem dos votos nas cédulas; ao final do dia, as contagens são comparadas para checar se os totais correspondem uns com os outros. As perguntas e respostas mais frequentes sobre a urna eletrônica estão reunidas num documento publicado pelo TSE em 2015.
Apesar de todas essas medidas, muitas pessoas pedem a implementação do voto impresso, complementar ao registro digital do voto. O TSE responde a essa reivindicação dizendo que o voto impresso poderia violar o sigilo, na medida em que o papel é um meio muito vulnerável a manipulações. Existe um projeto de urna eletrônica que possui uma impressora acoplada, de forma que o voto registrado é impresso, conferido por um visor transparente e depositado num compartimento que preserve o sigilo, sem contato com o meio externo e sem a identificação do eleitor. Todavia, a adoção desse modelo foi suspensa pelo STF.
Sarah Birch aponta que a confiança dos cidadãos na integridade eleitoral está positivamente relacionada com a participação eleitoral em países onde o voto é facultativo. Isto é, em lugares onde se pode escolher votar ou não, é mais provável que a indivídua vote caso acredite na integridade das eleições. Uma vez que no Brasil é improvável que alguém deixe de votar, por se tratar de uma atividade mandatória, os boatos quanto à integridade da urna podem contribuir para a sensação de desilusão e aumentar a quantidade de votos brancos e nulos.
É certo que ainda há problemas que precisam ser resolvidos. Ao propor a ampla abertura do código-fonte e a adoção da impressão controlada dos votos, o TSE pode blindar a urna eletrônica contra vulnerabilidades conhecidas e aumentar a confiança dos eleitores. Enquanto isso, o direito a anular o voto é garantido, mas a desgraça dos que não gostam de política é serem governados pelos que gostam. E quem mais ganha com isso é quem está na frente.