quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Urnas eletrônicas e Integridade Eleitoral, OESP

Graziella Guiotti
02 Outubro 2018 | 16h25

*Escrito em parceria com Samuel Ralize de Godoy, sociólogo e mestre em ciência política pela Universidade de São Paulo.
A ciência política não é unânime sobre o significado de democracia. Diferentes vertentes consideram elementos diversos que seriam necessários para se chamar um regime de democrático, inclusive quanto ao enfoque na liberdade ou na igualdade. Contudo, desconhecemos definição de democracia que não abarque eleições competitivas, livres e justas, ainda que sejam raras as que resumam a democracia a esse elemento. Em outras palavras, as eleições são condição necessária, mas não suficiente para que um regime seja entendido como democrático. Levitsky e Way falam, aliás, de um regime híbrido pós-Guerra Fria que chamam de autoritarismo competitivo.
Pippa Norris propõe o conceito de integridade eleitoral. Algumas questões como voto de cabresto e fraude generalizada já são menos comuns em democracias consolidadas, mas outras, como tipos de financiamento de campanha e a influência do poder econômico nas decisões políticas, são objeto de debate e estão sofrendo constantes mudanças. Talvez o elemento mais novo e desconhecido seja a mudança na forma de consumo de informação para a tomada de decisão do voto. Com a diminuição da importância dos veículos tradicionais de acesso à informação, o risco das notícias falsas é flagrante. Tanto que, no Congresso norte-americano, chegou-se a discutir a regulação de redes sociais para evitar a propagação de notícias falsas em períodos eleitorais, especialmente de forma automatizada. Boatos se propagam rapidamente, apoiados na credibilidade pessoal do remetente.
Uma das mentiras que ficaram famosas nas últimas eleições, mas que vem de muito antes, foi a de que, se mais da metade dos votos fossem nulos, a eleição seria realizada novamente. Há, ainda, variações que dizem que os candidatos teriam de ser diferentes. Outra propaga que, até hoje, há diferença entre nulos e brancos na contagem do quociente eleitoral. Nenhum desses factoides é verdadeiro, mas eles se espalham como pólvora. Recentemente, surgiu uma nova leva sobre as urnas eletrônicas – propagada, inclusive, por detentores de mandatos que se sustentam em eleições realizadas pelas mesmas urnas.
A urna eletrônica entrou em operação no Brasil nas eleições de 1996, em 57 municípios. O experimento se expandiu para 537 municípios em 1998 e, dois anos depois, a urna passou a ser utilizada em 100% do País. De lá para cá, o equipamento se aperfeiçoou com uma série de medidas de segurança; entretanto, a desconfiança em torno da integridade e do sigilo do voto eletrônico sempre esteve presente. Afinal, a urna eletrônica brasileira é segura?
O Tribunal Superior Eleitoral (TSE), cuja origem remonta à década de 1930, quando se queria combater o voto de cabresto e o domínio de lideranças políticas locais sobre os procedimentos de votação e apuração nas regiões mais distantes da capital, foi o responsável pelo desenvolvimento do projeto da urna eletrônica brasileira. Tanto o hardware (o equipamento propriamente dito) quanto o software (o conjunto de sistemas instalados no equipamento) foram desenvolvidos por técnicos do Tribunal. Fato é que, na verdade, é relativamente pequeno o número de pessoas externas ao TSE que tiveram contato com os chamados códigos-fonte (as linhas de código que compõem o software) da urna eletrônica brasileira, o que gera grande desconfiança no meio acadêmico e, certamente, entre a população geral.
Por isso, o Tribunal vem empregando formas de diminuir a desconfiança e aprimorar a segurança do sistema. O processo de elaboração do código e preparação das urnas para votação é auditado pelos partidos políticos, pelo Ministério Público e pela Ordem dos Advogados do Brasil. O código costuma ser apresentado à comunidade técnica, para inspeção e melhorias (como foi o caso do teste público de 2017, por exemplo, em que uma vulnerabilidade foi encontrada e, segundo o Tribunal, foi posteriormente corrigida). Não obstante, o TSE informou que pretende abrir o código-fonte das urnas eletrônicas para a comunidade.
Ao início e ao término da votação, todas as urnas emitem as “zerésimas” e os boletins de urna, respectivamente, que permitem observar quantos votos estão registrados em seus arquivos de dados no início e no final do dia. Importante mencionar que nenhuma urna eletrônica tem conexão à Internet: as mídias de resultados são criptografadas, retiradas de cada urna e conectadas aos computadores dos tribunais, que transmitem os dados ao TSE. Além disso, por amostragem, algumas urnas já preparadas, lacradas e enviadas para as seções eleitorais são selecionadas e recolhidas na véspera da eleição para que, no grande dia, sejam submetidas à chamada “votação paralela”: num ambiente completamente filmado e controlado, algumas pessoas registram votos em cédulas de papel, outras pessoas digitam esses mesmos votos nas urnas selecionadas e outras fazem a contagem dos votos nas cédulas; ao final do dia, as contagens são comparadas para checar se os totais correspondem uns com os outros. As perguntas e respostas mais frequentes sobre a urna eletrônica estão reunidas num documento publicado pelo TSE em 2015.
Apesar de todas essas medidas, muitas pessoas pedem a implementação do voto impresso, complementar ao registro digital do voto. O TSE responde a essa reivindicação dizendo que o voto impresso poderia violar o sigilo, na medida em que o papel é um meio muito vulnerável a manipulações. Existe um projeto de urna eletrônica que possui uma impressora acoplada, de forma que o voto registrado é impresso, conferido por um visor transparente e depositado num compartimento que preserve o sigilo, sem contato com o meio externo e sem a identificação do eleitor. Todavia, a adoção desse modelo foi suspensa pelo STF.
Sarah Birch aponta que a confiança dos cidadãos na integridade eleitoral está positivamente relacionada com a participação eleitoral em países onde o voto é facultativo. Isto é, em lugares onde se pode escolher votar ou não, é mais provável que a indivídua vote caso acredite na integridade das eleições. Uma vez que no Brasil é improvável que alguém deixe de votar, por se tratar de uma atividade mandatória, os boatos quanto à integridade da urna podem contribuir para a sensação de desilusão e aumentar a quantidade de votos brancos e nulos.
É certo que ainda há problemas que precisam ser resolvidos. Ao propor a ampla abertura do código-fonte e a adoção da impressão controlada dos votos, o TSE pode blindar a urna eletrônica contra vulnerabilidades conhecidas e aumentar a confiança dos eleitores. Enquanto isso, o direito a anular o voto é garantido, mas a desgraça dos que não gostam de política é serem governados pelos que gostam. E quem mais ganha com isso é quem está na frente.

‘Os canais de renovação de ideias na política estão entupidos’, diz sociólogo Sergio Abranches, OESP

Autor de artigo acadêmico que, há três décadas, cunhou o termo “presidencialismo de coalização”, o sociólogo e cientista político Sérgio Abranches, de 68 anos, considera que o presidente eleito nas eleições 2018 terá de fazer alianças “grandes e heterogêneas” e terá “dificuldade para governar”. “O futuro democrático está em jogo porque estamos com todos os canais de renovação de liderança e de circulação de novas ideias entupidos”, diz Abranches, ao Estado. O sociólogo acaba de lançar o livro Presidencialismo de Coalização – Raízes e Evolução do Modelo Político Brasileiro, no qual faz uma radiografia do sistema de governo brasileiro. Abaixo, os principais trechos da entrevista.
Em quase três décadas, dois de quatro presidentes eleitos (Fernando Collor e Dilma Rousseff) sofreram impeachment. Isso não mostra uma falha do presidencialismo de coalização?
O impeachment não revela uma falha do sistema. Acho muito mais grave termos eleito apenas quatro presidentes (neste período). O impeachment é um mecanismo traumático para resolver um problema inerente ao presidencialismo de coalizão. Mas isso também seria problema no parlamentarismo. Dificilmente um presidente teria maioria com seu partido, tanto no presidencialismo ou parlamentarismo. Aqui o presidente tem todo o poder financeiro, inclusive para financiar questões dos municípios e Estados. As trocas se dão em torno de recursos para atender grupos de interesses e bases eleitorais. Então, há um incentivo enorme a uma troca puramente clientelista e à corrupção.
Qual o balanço do presidencialismo de coalização nesses últimos 30 anos?
Conseguimos fortalecer instituições que garantem a governabilidade e a persistência da democracia. O presidencialismo de coalizão é capaz de resolver crises que ele próprio cria, derivadas da dissolução da coalizão presidencial que provoca desestabilização. Mas ele foi perdendo a qualidade na produção de políticas públicas. Para atender à dinâmica da coalizão, os presidentes começaram a baixar o nível de expectativa em relação à qualidade e profundidade das políticas que promoveram. Outro aspecto é que não podemos ter no impeachment a única forma de afastar presidentes que perdem apoio majoritário ou popularidade.
O sr. cita a reeleição como um dos dilemas do presidencialismo. Por quê?
A reeleição prejudica terrivelmente o processo de renovação. Fernando Haddad tem dificuldade de se impor como liderança nova pela sombra de Lula. O Alckmin, pela sombra de FHC e por ter disputado o tempo todo com líderes regionais do partido. A reeleição agrava a oligarquização e a concentração em poucas lideranças. Ela impede a renovação. Em um sistema com tantos incentivos ao clientelismo, a reeleição é praticamente a regra. Em geral governadores e prefeitos nas grandes cidades conseguem se reeleger, o que agrava o processo. Se ao longo do mandato o presidente faz concessões para se reeleger, o grau de concessões clientelistas é infinitamente superior ao que tinha no primeiro mandato. 
Seja qual for o vencedor, como o próximo presidente irá governar o País se ele, além de formar minoria no Congresso, vai ter de enfrentar a polarização na política e na sociedade?
Vai ter que fazer coalizão. Vai depender muito do resultado das eleições parlamentares. Como a distribuição de recursos privilegiou cinco ou seis maiores partidos, isso vai dar a eles um colchão de recursos suficiente para que façam bancadas numerosas. As coalizões serão grandes e heterogêneas. Terão dificuldades para governar.
Qual futuro o sr. enxerga para o País após as eleições levando em consideração o tamanho da crise política brasileira?
Acho que estas eleições são muito peculiares. Elas coincidem com uma crise geral do sistema partidário brasileiro e com um esgotamento das lideranças partidárias. O desafio no próximo mandato presidencial é promover realinhamento e renovação partidária. É uma questão que vai ser difícil porque os partidos são muito oligárquicos – e a maneira pela qual os recursos foram distribuídos reforçou a tendência de concentração de poder nos partidos. O futuro democrático está em jogo porque estamos com todos os canais de renovação de liderança e de circulação de novas ideias entupidos e engarrafados.
O sr. disse que a democracia representativa está em xeque em o todo o mundo. Quais são as peculiaridades do caso brasileiro?
No Brasil, isso coincide com uma crise econômica muito grave, uma crise política de esgotamento das lideranças, de envelhecimento dos partidos, de fragmentação partidária. E as velhas estruturas se fragmentam, mas criam filhotes iguaizinhos. São vários filhotes do MDB e do DEM disputando agora como legendas independentes. Por outro lado, não fizemos um processo adequado de renovação da nossa estrutura econômica, não acompanhamos o processo científico-tecnológico mais recente. O Brasil acumulou déficits que terão de ser supridos em curto prazo para enfrentar os desafios do século 21 a contento. O sistema político vai precisar dar respostas rapidamente.
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1968: Jovem morre em batalha na Maria Antônia, FSP

apaz de 20 anos é baleado em confronto entre alunos de esquerda da USP e estudantes pró-ditadura do Mackenzie

Fachada da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, na rua Maria Antônia, em São Paulo (SP), em 3 de outubro de 1968, após a chamada "Batalha da Maria Antônia"
Fachada da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, na rua Maria Antônia, em São Paulo (SP), em 3 de outubro de 1968, após a chamada "Batalha da Maria Antônia" - Acervo UH/Folhapress
Naief Haddad
3 DE OUTUBRO DE 1968
São Paulo viveu um dia de guerra. 
Neste 3 de outubro, um estudante de 20 anos morreu depois de levar um tiro na cabeça; grande parte do prédio da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da USP foi destruído pelo fogo; carros foram incendiados; agências bancárias, depredadas. 
A batalha da rua Maria Antônia já pode ser vista como um capítulo trágico da história política do Brasil. 
Não é de hoje a rivalidade entre os estudantes da USP, muitos deles simpáticos à doutrina comunista, e os alunos do Mackenzie, mais alinhados à ditadura militar. A rua de cerca de 500 m que corta a Vila Buarque separa visões políticas opostas.
Estudantes da USP durante os combates que ficaram conhecidos como Batalha da Maria Antônia, em 3 de outubro de 1968
Estudantes da USP durante os combates que ficaram conhecidos como Batalha da Maria Antônia, em 3 de outubro de 1968 - Acervo UH/Folhapress
No último mês de agosto, o prédio principal da FFCL foi pichado com dizeres como “Fora o Comunismo” e “CCC [Comando de Caça aos Comunistas] voltou!”. Um cenário de confronto começava a se esboçar com nitidez, com líderes estudantis à frente. 
Entre os nomes à esquerda, Luís Travassos, presidente da UNE (União Nacional dos Estudantes), e José Dirceu |1|, presidente da UEE (União Estadual dos Estudantes). Entre os expoentes à direita, Fábio Tortucci, presidente do diretório acadêmico da faculdade de direito do Mackenzie.

|1| José Dirceu foi preso no Congresso da UNE, em Ibiúna, nove dias depois da batalha da Maria Antônia. Em 1969, ele e outros presos políticos foram soltos em troca da libertação do embaixador dos EUA Charles Elbrick, que havia sido sequestrado por militantes de esquerda. Pouco mais de uma década depois, tornou-se um dos líderes do PT. Em 2012, foi condenado pela primeira vez por crimes como corrupção 

Na manhã de 2 de outubro, universitários e secundaristas paravam os carros na Maria Antônia a fim de pedir dinheiro para organizar o 30º Congresso da UNE. 
O ato irritou os estudantes do Mackenzie que, de dentro das dependências da instituição particular, passaram a jogar paus, pedras, ovos e outros objetos no grupo que promovia aquele tipo de pedágio. 
Os atacados reagiram, com o apoio dos jovens da USP, lançando de volta o que encontravam pela frente. 
O conflito só chegou ao fim após intervenção policial no início da tarde. Ainda assim, por volta de 22h, uma bomba jogada de um carro em alta velocidade explodiu diante da porta principal da FFCL. 
Na madrugada do dia 2 para o dia 3, integrantes da Força Pública |2| formaram um cordão no terreno do Mackenzie para evitar invasões ao local. 

|2| Até dezembro de 1969, havia duas corporações estaduais, a Força Pública e a Guarda Civil. Nessa época, elas foram fundidas, dando origem à Polícia Militar 

Apesar do clima tenso, não foram registrados incidentes nas primeiras horas da manhã até que, por volta de 11h, estudantes da FFCL estenderam faixas na frente do prédio. 
Uma delas falava em união entre USP e Mackenzie contra o CCC —de fato, alguns alunos da instituição privada estão mais próximos da esquerda. Outra criticava a repressão aos comunistas. 
Nesse instante, jovens deixaram o Mackenzie e arrancaram as faixas da faculdade vizinha. Começava, de fato, a Batalha da Maria Antônia. 
A FFCL passou a ser atingida continuamente por coquetéis molotov e bombas de gás lacrimogêneo. Focos de incêndio se alastravam pelo telhado e pelas salas de aula do prédio. Os alunos e, posteriormente, os bombeiros combatiam o fogo, mas nem sempre eram capazes de detê-lo.
O poder de reação dos estudantes da USP era claramente inferior. Como tinham material explosivo em pequena quantidade, atacavam os vizinhos do Mackenzie principalmente com pedras.
No quarto andar do prédio, universitários amarraram tiras de borracha nas pernas de uma cadeira para montar um estilingue potente, com o qual poderiam arremessar pedras grandes. O fato é que a turma da Filosofia não tinha munição para causar danos consideráveis ao oponente. 
Por outro lado, havia balas no chão das salas da FFCL, o que sugeria uso de arma de fogo entre os mackenzistas. 
Aluno secundarista do colégio Marina Cintra, na rua da Consolação, José Guimarães, 20, havia se juntado aos estudantes da USP. Por volta de 14h30, o jovem levou um tiro que atravessou sua cabeça. Guimarães |3| foi levado por uma ambulância ao Hospital das Clínicas, mas morreu.

|3| Como conta Roberto Sander no livro “1968”, a família de José Guimarães cedeu o corpo aos estudantes, que o velaram na Cidade Universitária. Não houve punição para o crime

Postados na esquina das ruas Maria Antônia e Itambé, os integrantes da Força Pública assistiam ao conflito, impassíveis. Enquanto isso, o fogo se espalhava pela FFCL.  
Eram cerca de 15h30 quando parcela dos estudantes da USP, ciente da impossibilidade de enfrentar os inimigos, saiu pelas ruas do centro da cidade, espalhando destruição. 
Na Praça da Sé, eles viraram e queimaram um carro do Dops (Departamento de Ordem Política e Social). Também incendiaram carros do governo estadual, depredaram bancos e picharam muros. Ao longo do protesto, também promoveram comícios-relâmpagos —José Dirceu falou em um deles.
O político José Dirceu, então presidente da UEE (União dos Estudantes Secundaristas), fala em cima de um Fusca para estudantes da USP
O político José Dirceu, então presidente da UEE (União dos Estudantes Secundaristas), fala em cima de um Fusca para estudantes da USP - Acervo UH/Folhapress

O protesto só foi interrompido na praça da Bandeira, onde havia um pelotão de choque. Mais de 30 estudantes foram presos nas imediações.
A resistência no prédio da USP era quase nula às 21h, quando membros da Força Pública invadiram o departamento de ciências econômicas, jogando bombas nas salas e arrombando as portas. Professores, como Bento Prado Júnior, receberam ordem de prisão.
Além de um estudante morto, foram ao menos quatro pessoas baleadas e dezenas com outros ferimentos.
A situação só se acalmou por volta de 22h30. Por quase 12 horas, a rua Maria Antônia viveu o terror.
Colaborou Edgar Silva