quarta-feira, 12 de setembro de 2018

Imprudência fardada, Opinião FSP

Declarações confusas de Villas Bôas em nada contribuem para o apaziguamento dos ânimos

O comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, em cerimônia no Palácio do Planalto, em abril deste ano
O comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, em cerimônia no Palácio do Planalto, em abril deste ano - Evaristo Sa - 11.abr.18/AFP
Os maiores protestos desde a redemocratização, uma recessão profunda e extensa como não se via desde 1983, o impeachment da presidente da República e uma operação anticorrupção em escala inédita no mundo. Nesse quadro de múltiplas excepcionalidades está mergulhado o Brasil desde 2013.
Pode-se discutir a tese segundo a qual as instituições nacionais não se mostraram suficientemente fortes a ponto de prevenir a explosão de tantos petardos simultâneos. Está fora de questão, no entanto, que o dique da legalidade democrática resiste bem aos testes extremos a que tem sido submetido.
As derrapagens de atores importantes para a sustentação da estabilidade não chegaram a ser graves, embora pudessem quase todas ter sido evitadas mediante um exercício de disciplina e autocontenção.
É imprudente, por exemplo, que o comandante do Exército externe suas interpretações acerca da possibilidade de as eleições serem questionadas após o atentado que vitimou Jair Bolsonaro (PSL). O general Eduardo Villas Bôas, contudo, fez mais que isso em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo.
Pôs-se a criticar suposta ingerência do Comitê de Direitos Humanos da ONU e tachou de “pior cenário” aquele de “termos alguém sub judice, afrontando tanto a Constituição como a Lei da Ficha Limpa”, em alusão ao caso do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Cabe apenas ao Judiciário, respeitando o devido processo legal, arbitrar sobre os argumentos da apelação do líder petista. Por seu turno, o resultado de eleições transcorridas dentro das regras, como acontece rigorosamente desde 1989, legitima-se automaticamente.
Às Forças Armadas, bem como às demais organizações do Estado, cumpre acatar as decisões soberanas das cortes e das urnas. Esse fato da ordem democrática recomendaria às autoridades que lideram segmentos da administração um silêncio reverencial sobre o que é competência de outras instâncias.
Em nada contribui para o apaziguamento dos ânimos —um objetivo que todo brasileiro com responsabilidade coletiva deveria perseguir neste momento— essa conversa confusa em torno de legitimidade da eleição e causas de instabilidade no país. Tanto pior quando o fraseado resvaladiço surge de pessoas que vestem ou vestiram farda.
Em recente entrevista à GloboNews, o candidato a vice de Bolsonaro, o general da reserva Hamilton Mourão, divagou sobre hipóteses que, para ele, poderiam justificar um autogolpe do presidente da República. O rocambole argumentativo não deixou entrever como essa aberração poderia conviver com a Constituição em vigor.
Numa disputa já bastante tensa, em que houve tentativa de assassinar um candidato, esse debate não conduz a lugar nenhum.

terça-feira, 11 de setembro de 2018

Sistema Único de Saúde: Ser ou não ser?, Antonio Nucifora, FSP

Presidenciáveis deveriam propor uma agenda de eficiência ao SUS

Nas últimas semanas, há muito debate sobre a necessidade de reformar o Sistema Único Saúde (SUS).  Em 2018 o Brasil celebra 30 anos de sua criação. Durante esses, o SUS contribuiu para melhorar os indicadores de saúde da população e reduzir as desigualdades na distribuição e acesso dos recursos de saúde em todo o país. A expectativa de vida ao nascer dos brasileiros aumentou aproximadamente 9 anos, a taxa de mortalidade materna foi reduzida pela metade e a taxa de mortalidade infantil caiu mais de 70%.
Os avanços são indiscutíveis. Entretanto, persistem desafios esmagadores. O SUS é frequentemente apontado como superlotado, de baixa qualidade e com escassez de profissionais de saúde. A explicação frequente é que o governo não gasta suficiente com saúde, o que exacerba as fragilidades de um sistema diretamente responsável pela saúde de mais de 170 milhões de brasileiros. Porém, um recente estudo do Banco Mundial aponta para um claro escopo para o SUS alcançar melhores resultados, com o montante atual de gastos públicos.  Então, gastar mais ou gastar melhor?
O gasto total com saúde no Brasil (9,1% do PIB) é comparável à média dos países da OCDE (9%) e superior à média de seus pares estruturais e regionais (6,7% e 7,2%, respetivamente).  No entanto, ao contrário da maioria de seus pares, menos da metade do gasto total em saúde no Brasil é gasto público. Portanto, é possível argumentar nos dois sentidos: que os gastos com serviços de saúde já são muito altos ou que os gastos públicos são relativamente baixos.
O que está claro, no entanto, é que existem desafios significativos na aplicação dos recursos públicos no SUS.  Utilizando técnica de fronteira de produção, outro estudo do Banco Mundial estimou em 37% as ineficiências na Atenção Primária à Saúde (APS) e 71% na Média e Alta Complexidade (MAC).  O estudo aponta que o SUS poderia aumentar em 64% o número de consultas médicas na APS, mais que dobrar o número de procedimentos ambulatoriais (consultas com especialistas, por exemplo) e realizar 80% mais internações sem aumentar o volume de gastos.  Esses resultados significam que o SUS poderia alcançar mais e melhores resultados mesmo sem mais recursos, o que é particularmente importante no contexto dos graves desafios fiscais enfrentados pelo país.
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Corredor da UTI (Unidade de terapia intensiva) da Santa Casa de São Paulo - Joel Silva/Folhapress
A análise do Banco Mundial demonstra que escala é um dos principais fatores para explicar a ineficiência do SUS, isso tanto para prover serviços de APS como serviços de MAC.  Na MAC, por exemplo, os municípios com menos de 5.000 habitantes têm desempenho quatro vezes pior que os municípios com mais de 100 mil habitantes.  Apenas os municípios com mais de 20 mil habitantes alcançam a média nacional de eficiência tanto na APS como na MAC. Porém, de acordo com o IBGE, aproximadamente 80% dos municípios brasileiros têm menos de 20 mil habitantes!
Outro grande problema do SUS é o número de hospitais de pequeno porte, com menos de 50 leitos.  Esses hospitais estão presentes na maioria dos municípios brasileiros (98% dos hospitais nos municípios com menos de 5.000 habitantes têm menos de 50 leitos).  E operam com baixo volume de procedimentos (consultas, internações, etc.) o que, de um lado, resulta em ineficiências pela falta de economia de escala e, de outro, em piores resultados (taxas de mortalidade hospitalar mais altas).  A situação do setor hospitalar brasileiro é alarmante: 80% dos hospitais brasileiros têm menos de 100 leitos, quando a literatura especializada recomenda pelo menos 250 leitos; a taxa média de ocupação dos leitos no Brasil é 45% (37% para leitos agudos), muito abaixo da média entre os países da OCDE, 71%, e muito abaixo da taxa de ocupação recomendada, entre 75% e 85%).
Uma outra fonte de ineficiência são os desafios relacionados à disponibilidade, distribuição e desempenho da força de trabalho em saúde.  O número de profissionais de saúde disponíveis, particularmente os médicos, é menor do que observado em países com nível similar de desenvolvimento e bem abaixo da média entre os países da OCDE.  Além da relativa escassez, os médicos estão concentrados nos grandes centros urbanos do país.  Uma alternativa a essa escassez relativa, seria permitir que outros profissionais, como enfermeiros, exerçam papel mais destacado na prestação dos cuidados à saúde.
Embora a regulamentação nacional autorize os enfermeiros a realizar consultas e prescrever determinados medicamentos e exames em unidades básicas de saúde, há resistência profissional e institucional contra essas práticas. Estudo da Organização Mundial da Saúde de 2006 apontou que a maioria dos municípios brasileiros poderia aumentar o nível de cobertura pré-natal adotando um processo de produção mais intensivo em profissionais de enfermagem do que em médicos.
Outros fatores que afetam a eficiência do SUS são: (i) a organização da prestação de serviços que fornece cuidados de cura para condições agudas com coordenação limitada entre provedores e níveis de atenção - os serviços hospitalares de atendimento e diagnóstico são distribuídos de maneira desigual; (ii) os mecanismos de pagamento dos prestadores não se baseiam nos custos reais da prestação dos serviços e frequentemente não estão relacionados com os diagnósticos dos pacientes ou ajustados pela gravidade dos casos; e (iii) novas tecnologias são frequentemente incorporadas de maneira ad hoc, particularmente através de processos judiciais, sem avaliação de custo-eficácia.
O Brasil, como a maioria dos países ao redor do mundo, enfrenta desafios relativos à sustentabilidade do seu sistema de saúde (público e privado).  Na maioria dos países, o Brasil incluído, os gastos em saúde crescem a taxas superiores às taxas de crescimento do produto interno bruto (PIB). Mantido o padrão atual de crescimento nominal dos gastos, os gastos com o SUS alcançarão R$700 bilhões em 2030, isso sem levar em conta o aumento do peso das doenças crônicas e o envelhecimento populacional
Ganhos de eficiência poderiam mitigar essa tendência e proporcionar o espaço fiscal necessário para a consolidação do SUS, viabilizando investimentos em áreas fundamentais como a ampliação da APS, melhorias na qualidade do atendimento e acesso a serviços especializados, para citar apenas alguns desafios imediatos. O Banco Mundial estima que a melhoria da eficiência do SUS poderá resultar em ganhos acumulados de aproximadamente R$ 989 bilhões até 2030.
No Brasil, a discussão sobre a sustentabilidade do SUS passa necessariamente por reconhecer que existe escopo para alcançar melhores resultados com o atual nível de gastos.  Para lidar com a expansão necessária na demanda por serviços de saúde, esperada a partir da transição demográfica e mudanças no perfil epidemiológico da população, o SUS precisa de reformas estratégicas, para assegurar a racionalização da atenção hospitalar (para maximizar escala, qualidade e eficiência), melhorar o desempenho da força de trabalho em saúde (com expansão da oferta de profissionais e a introdução de incentivos para aumentar a produtividade) e integrar melhor os vários níveis de atenção e provedores de serviços (através da criação de redes integradas de atenção à saúde). Os presidenciáveis deveriam propor uma agenda de eficiência ao SUS, e buscar soluções para melhorar e consolidar o ‘SUS real’, o SUS do cotidiano de usuários e gestores. 
Esta coluna foi preparada em colaboração com o meu colega Edson Araujo, economista sênior do departamento de saúde do Banco Mundial.
Antonio Nucifora
Economista-chefe do Banco Mundial para o Brasil, já trabalhou para a instituição na Europa, na África e no Oriente Médio.

A eleição sorri para o dissenso, para os cansados do status quo, FSP por Marco Aurelio Ruediger

Dificilmente esta eleição favorecerá os políticos que pretendam insistir em encarnar teses de consenso ou “pacificação”, bem como os que nela se autovitimam. Esta eleição sorri para o dissenso, para os que sinalizam com a crítica, os cansados do status quo, os politicamente emergentes, os políticos com pele curtida e aperto de mão firme. Dois vetores forçam para esse caminho.

Primeiro, a polarização e a virulência do processo político brasileiro não são só uma questão de lideranças com teses radicalizadas. Há corresponsáveis, e não se circunscreve, portanto, apenas aos mais assertivos, mas aponta àqueles que hoje buscam se eximir de ações no passado, quando efetivamente hegemonizavam o quadro partidário nacional. Como se politica não tivesse memória e não resultasse de processos e decisões anteriores que sucessivamente deixam atores atados a determinados caminhos, fechando de vez outros. 
Segundo, o quadro de resultantes de políticas públicas que se constituiu altera equações e tem autorias. Há hoje milhões de desempregados, a segurança pública e o sistema prisional explodem, temos um Estado ineficiente e distorcido, reformas econômicas são adiadas, corrupção e pressão politica corroem a confiança nas instituições. Tudo isso no caudal de anos de acirrada luta partidária.
Em 2014, tínhamos dois campos bem definidos na disputa eleitoral em torno dos quais gravitavam núcleos políticos subsidiários. Aberta a caixa de Pandora da Lava Jato e do impeachment, o processo de ruptura nas polaridades se intensificou. A partir daí, amplia-se a fragmentação internamente aos campos da esquerda e da direita. 
A hegemonia binária de 2014 é desafiada nos dois polos. Agremiações e candidaturas insurgentes, que atreladas às redes sociais ganham espaço crescente, apontam para cenários diversos, não previsíveis, aumentando a insegurança do mercado. O cenário torna-se complexo em 2018.
No entanto, a partir de um atentado político, inaceitável e condenável, mas ainda assim um fato pivotal, imagina-se uma possibilidade. 
O discurso de pacificação concorre com outro, de vitimização. No fundo, ambos são uma tentativa de encobrimento de digitais nos vetores acima. Mistura-se o ataque a candidatos, com maior radicalidade de propostas, em especial na direita, mas visando segmentos assertivos da esquerda também. Um sofisma, pois a radicalidade de propostas não leva necessariamente a um atentado, nem assertividade necessariamente a descontrole.
De contrabando à tese da pacificação e vitimização, vem a tentativa de descompromisso dos grandes atores partidários com o acirramento do processo iniciado em 2014. 
Dessa forma, limpas as impressões digitais, a política deveria voltar aos seus eixos binários, mais seguros e previsíveis. Enfim, uma visão idealizada e utópica a se seguir. Equivocam-se. 
A história, como disse Marx, “se repete a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”. Entramos na segunda fase. Ignorar os fatos é o maior dos erros em estratégia. 
Medido nesta segunda-feira (10) o engajamento no Twitter aos discursos dos candidatos (do dia 6 ao dia 10), temos: Bolsonaro, +107%; Ciro, +18%; Haddad,+15%; Marina, +5%; e Alckmin, -8%. 
Tendência passível de mudança, ainda que difícil. As redes reconstroem narrativas para além do marketing tradicional, numa eleição eivada de imponderáveis em tempo real. 
O brasileiro hoje está mais sensível para as distopias. A maior farsa é ignorar os fatos. 
Marco Aurelio Ruediger