Ouso contradizer esse extraordinário talento que é Zuenir Ventura, para quem 1968 foi o ano que não terminou, título de seu livro mais emblemático.
Do meu ponto de vista, 1968 terminou, sim, ao menos no Brasil. No dia 13 de dezembro daquele ano, acompanhamos na redação do Estadão, meu jornal à época, a edição do Ato Institucional número 5. Fechamos a edição do dia seguinte e fomos a um boteco na rua da Consolação, em frente à antiga sede do jornal.
Lembro-me de ter dito aos companheiros: o futuro está interditado.
Solene demais, algo brega, meio ridículo, admito hoje. Mas com muita verdade. Tanta verdade que foi preciso esperar 21 anos para poder votar para presidente. E pela primeira vez na vida, já com 46 anos.
O AI-5 consolidou, pois, a castração cívica de toda a minha geração, que o golpe de 1964 já havia iniciado.
Por isso, ouso dizer que 1968 terminou, sim, e terminou mal. Pior: meses antes, com a chamada Passeata dos 100 Mil, no Rio de Janeiro, flutuou a sensação de que a ditadura não resistiria muito mais às massas nas ruas. Ilusão.
Nem havia massas de fato nem a ditadura estava abalada.
No resto do mundo, no entanto, o cenário foi bem outro, embora, no fim do ano célebre, as coisas tenham mudado pouco. Houve, sim, uma revolução cultural, na forma de liberalização dos costumes.
Mas é uma mudança que foi se instalando aos poucos, como todas as mudanças, aliás.
Sempre há a tentação de imaginar que a qualquer momento pode haver um novo Maio de 68, ainda mais quando aquele momento efervescente completa 50 anos.
Seria até divertido um novo levante como aquele, mas me parece estar ocorrendo o contrário. Maio de 1968 foi libertário, irreverente, alegre, iconoclástico.
Hoje, há muito mais raiva que alegria, muito mais sectarismo do que contestação às seitas políticas que se manifestam.
Enquanto, por aqui, coxinhas e mortadelas se matam, ao menos verbalmente e só nas redes sociais, os estudantes franceses de 1968 cantavam que "a humanidade só será feliz quando o último capitalista for enforcado com as tripas do último esquerdista".
Enquanto a moçada de 50 anos atrás acreditava que a imaginação tomara o poder, agora quem está no poder é exatamente a falta de imaginação.
Antes, era "proibido proibir". Hoje, tenta-se, em geral inutilmente, proibir uma porção de coisas.
Em um muro qualquer de Paris, lia-se: "Decretado o estado de felicidade permanente".
Não era verdade, claro, mas era um manifesto de boas intenções.
Hoje, o que há, no mundo todo ou em boa parte dele, é um estado permanente de ansiedade, de insegurança.
No "estado de felicidade permanente", parecia caber todo mundo.
No estado de ansiedade permanente, não cabe o outro, do que dá prova o crescimento da xenofobia, da misoginia, do racismo, do antissemitismo (bom lembrar que um dos slogans de 1968 era "nós somos todos judeus alemães".)
Parece ter sobrado, dos incontáveis e adoráveis slogans de 1968, apenas um: "Parem o mundo, eu quero descer".
Clóvis Rossi
É repórter especial e membro do Conselho Editorial da Folha. É vencedor do prêmio Maria Moors Cabot.