Qua, 03 de Abril de 2013 17:53 |
Essa longa discussão sobre a preservação do meio ambiente, cuidar do planeta cai, diretamente, na questão do desperdício de água. Neste caso, recorremos a uma solução antiga: reutilizar a água. Fazemos isso há um bom tempo, pois a água que bebemos, de certa maneira, também é tratada e reutilizada. Entretanto, o desperdício excessivo vem sendo debatido pelos ambientalistas, uma vez que a abundância que pensamos ter, pode e deve acabar em algumas décadas segundo cientistas. Por isso, o reúso e o aproveitamento de água seria a melhor provisão para evitar uma catástrofe mundial. Embora os dois tópicos sejam distintos, ambos tem a finalidade de reutilizar a água.
A economia de bilhões de litros de água por dia fazem o alto investimento valer a pena. Para uma residência, por exemplo, que deseja fazer a instalação do sistema para o aproveitamento de água de chuva, considerando inclusive, obras civis e reservatório, fica em torno de quinze mil reais. Este é um custo benefício para a população e o meio ambiente. No entanto, o procedimento para este sistema é mais simples no sentido de ter um respaldo técnico para se basear. Contudo, quando se trata de reúso de água permanecemos em um impasse: a falta de normas técnicas.
Muitas empresas investem para que seja possível o processo de reúso de água, mas acabam quase que fazendo as cegas, pois não temos normas ou diretrizes para serem seguidas.
Existem basicamente duas normas que tratam de reúso de água no Brasil: a Resolução CNRH nº 54/2005 e a Norma NBR 13969/1997, que tem abrangência nacional. O Conselho Nacional de Recursos Hídrico (CNRH) na resolução Nº 54, de 28 de novembro de 2005, descreve, ainda que sucintamente, quatro modalidades para prática de reúso direto não potável: para fins agrícolas, ambientais, indústrias e aquicultura. Essa resolução é uma norma geral, enquanto a NBR 13969, que não é específica para reúso, tem um item dedicado ao tema, inclusive com a definição de classes de água de reúso e indicação de padrões de qualidade, que descreve as unidades de pós-tratamento e sugere alternativas de disposição final de efluentes líquidos de tanques sépticos.
• Classe 1: Lavagem de carros e outros usos;
• Classe 2: Lavagens de pisos, calçadas e irrigação dos jardins, manutenção dos lagos e canais para fins paisagísticos, exceto chafarizes;
• Classe 3: Reúso nas descargas dos vasos sanitários;
• Classe 4: Reúso nos pomares, cereais, forragens, pastagens para gados e outros cultivos através de escoamento superficial ou por sistema de irrigação pontual.
Além destas, existem várias normas municipais que tratam desta questão. No caso das normas municipais, a maioria delas, de alguma forma impõem a necessidade de programas de reúso, porém não apresentam nenhuma orientação técnica para a sua aplicação.
Com o crescimento de interesse pelo tema, a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) criou a norma NBR 15527/07 “Aproveitamento de água de chuva para áreas urbanas e fins não potáveis”, mas nenhuma, pelo menos por enquanto, para o reúso de água que, de acordo com a ABNT, esta possibilidade já está sendo verificada.
Alguns municípios como Curitiba e São Paulo, entre outros, propuseram normas para impor a prática do aproveitamento de água da chuva, porém como já mencionado ocorre da mesma forma como no caso das normas para reúso, ou seja, sem qualquer orientação técnica. Em São Paulo, por exemplo, tem a lei que ficou conhecida como a Lei das Piscininhas, cujo principal objetivo é minimizar o escoamento superficial de água durante as chuvas, Lei nº 13.276/2002. O que contribui e bastante para a economia de bilhões de litros de água, mas isso não vem ao caso, pois com a falta de legislação essa alternativa não é possível assegurar eficácia na segurança.
Como não há normalização específica e nem diretrizes para o reúso de água, algumas empresas tentam outras alternativas como destaca o professor no departamento de Eng. Hidráulica e Ambiental da Escola Politécnica da USP e Coordenador de Projetos da CIRRA – Centro Internacional de Referência em Reúso de Água, Dr. José Carlos Mierzwa: “Normalmente, quando se pretende implantar programas de reúso mais abrangentes, os profissionais fazem consultas à diretrizes internacionais, como da Organização Mundial da Saúde (WHO Guidelines for the safe use of wastewater, excreta and Greywater) ou da Agência Americana de Proteção Ambiental (EPA Guidelines for Water Reuse)”.
Normalização internacional
Para o engenheiro especialista em química ambiental, Henrique Martins da empresa Eqma Engenharia & Consultoria, apesar de várias empresas terem alto investimento e portanto cobrarem alguma legislação para facilitar a atuação no processo, é a falta de preparo e investimento em pesquisas e equipamentos de outras que compromete o resultado da água, podendo não ser satisfatória.
Como não existe uma norma específica para o reúso, uma alternativa é o Brasil adotar a normalização de outros países. Alguns países como a Alemanha utiliza a água da chuva para fins não potáveis, mas a Austrália já utiliza para fins potáveis.
“Estamos marcando com a ABNT revisão da norma NBR 15527/07 para incluirmos a área rural e o uso de água potável e aguardando decisão da ABNT que será a de adaptar alguma norma europeia para o Brasil com finalidade de reúso”, afirma o professor da ABNT e Diretor-Presidente da Agência de Regulação dos Serviços de Saneamento Básico da cidade de Guarulhos (AGRU), Plínio Tomaz.
Apesar de ser uma alternativa a adoção de normas europeias, é preciso levar em consideração alguns aspectos diferenciais do nosso país para o uso dessas normas, como ressalta o Dr. José Carlos: “A possibilidade de utilização de normas internacionais é uma opção, porém elas devem ser avaliadas com critério para aplicação no país, principalmente pelas diferenças culturais e também pelo nível de desenvolvimento tecnológico. Muitas vezes os padrões de normas de reúso internacionais acabam sendo mais restritivos ou equivalentes aos padrões de qualidade que são utilizados para a água potável no Brasil, principalmente pelo fato de nos países desenvolvidos as tecnologias de tratamento de água para abastecimento e esgotos serem mais modernas. A discussão sobre normas para reúso no Brasil já ocorrem há muito tempo, mas até o momento não se chegou a nenhum consenso sobre uma norma que pudesse ser efetivamente adotada e não mais uma norma. Não adianta tentar usar normas muito restritivas, pois elas não incentivam a prática do reúso, assim como normas genéricas não dão condições de segurança para quem quer implantar programas de reúso”.
Mas o que nos impede de ter nossa própria normalização? Para o Dr. José Carlos, a respostas está relacionada a diversos aspectos, dentre eles a questão da prioridade: “O impedimento está no tema da relevância da água para o desenvolvimento não ser prioritário nas agendas dos diversos atores envolvidos, se fosse, já teria sido desenvolvido um arcabouço legal específico para tratar do tema. A ausência de normas sobre reúso não impediram várias iniciativas em regiões que tem problemas críticos em relação à disponibilidade e demanda de água. O que ocorre em geral é a norma ser criada com base nas experiências já existentes, sem a necessidade de se importar normas de outros países. O bom senso é a melhor ferramenta que temos disponível”, argumenta ele.
O outro aspecto é que, apesar da capacidade técnica e pesquisadores mundialmente reconhecidos, segundo o engenheiro químico, Henrique Martins, o Brasil ainda carece de estrutura e organização política para o completo desenvolvimento das pesquisas. E que, por isso, as ações para reutilização de água potável, águas naturais e etc, são baseadas em regulamentações de outros países, efetuando-se apenas pequenas modificações e adaptações à nossa realidade, não havendo de fato um desenvolvimento científico integralmente nacional.
Diferentemente dos demais países, no Brasil ainda é lenta a iniciativa para estes programas de reúso de água. Fica até difícil mensurar o nosso atraso com qualquer país europeu, porque estamos falando de países desenvolvidos e a falta de normas não nos permite uma comparação justa, como explica o especialista Henrique Martins: “Como não temos uma norma nacional ou legislações específicas para reúso fica difícil efetuar a comparação, porém a título de curiosidade, na Califórnia, estado americano, existem normas para reúso agrícola, entre os quais alguns parâmetros são mais restritivos que a nossa portaria Nº 2914 de 12 de dezembro de 2011 que dispõem sobre procedimento de controle e de vigilância da qualidade da água para consumo humano e seu padrão de potabilidade”.
Existe a expectativa de ter este processo normalizado em breve, entretanto com otimismo ainda que tímido, o reúso potável, ao que parece, permanece uma descrença até para alguns especialistas no assunto. “O reúso potável é um tema extremamente complexo e pouco explorado, acredito que vai permanecer assim por muito tempo, pois esta modalidade envolve diversos aspectos de saúde pública e ambiental, tecnologias de ponta, associados a custos extremamente elevados. Devemos mencionar que toda água que dispomos hoje é a mesma de milhões de anos atrás, sendo que esta é reciclada pelo ciclo natural da água através de infinitas repetições de evaporação e precipitação”, opina Martins.
A importância da regulamentação
A falta de normas não impediu que algumas cidades do país com graves problemas de disponibilidade e demanda de água tivessem a iniciativa do reúso, mas implica na segurança do procedimento deste reúso, uma vez que, não havendo diretrizes ou especificações as empresas não tem padrões para se basear.
“Como todo projeto de engenharia de sistema de tratamento deve-se ter conhecimento da qualidade da água bruta e da água tratada para se estabelecer os processos que serão necessários, portanto com maior disponibilidade de normas para reúso, certamente haverá maior segurança, agilidade e melhoria na comunicação entre as empresas que buscam no reúso uma fonte de alternativa visando à economia e preservação de recursos, além das empresas fabricantes de equipamentos focarem no projeto de especificações das normas. Atualmente, as empresas solicitantes do sistema muitas vezes não têm as especificações de qualidade para o reúso, ficando sob responsabilidade da empresa fabricante especificar a qualidade da água”, diz o especialista Henrique Martins.
Procedimentos estes que determinam a qualidade da água de reúso, cujo o resultado final afeta diretamente o usuário, como complementa Martins: “A existência de uma norma ou mesmo legislação específica para reúso de água seria de extrema importância para segurança dos usuários quanto a exposição e garantia da qualidade da água de reúso”.
Conscientização
Não se sabe quanto tempo irá demorar para que tenhamos a normalização para o reúso, mas é certo que o procedimento sendo regulamentado, além de trazer maior segurança e eficácia no processo, também despertará maior interesse no tema. Contudo, não é apenas a existência de legislações que proporcionaria programas de reúso, mesmo assim, é válida a iniciativa dos programas de redução do consumo de água para depois seguir com as ações de regulamentação de normas, como analisa o Dr. José Carlos: “Ao meu ver, ainda precisamos avançar em vários temas distintos, como conservação da água, melhoria dos índices de coleta e tratamento de esgotos, inclusive com tecnologias mais apropriadas para os dias atuais e mesmo em programas de reúso não potável. Depois disto, caso ainda seja necessário, a questão do reúso potável poderia ser colocada na pauta de discussões”.
Fonte: Revista TAE
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Eis o porquê desta entrevista com o escritor e pedagogo francês Philippe Meirieu. Inspirador das reformas pedagógicas realizadas na França nos anos 1990, ele é pesquisador e vice-presidente da região de Rhônes-Alpes, no sul da França, onde cuida da política educacional. Seguidor de Jean-Jacques Rousseau, Pestalozzi e Freinet, aplica os princípios da pedagogia da Nova Educação, iniciativa que o transformou em referência na área muitas milhas além das fronteiras da Europa.
No entanto, mais que herdeiro de uma tradição pedagógica utopista, Meirieu é célebre pela defesa feroz do diálogo entre alunos e professores, entre colegas do magistério e entre mestres e administradores. Considerado pelo jornal francês Libération o pedagogo mais ouvido pelos governos da França, Meirieu teria muito a dizer aos líderes brasileiros. Aqui ele aborda um de seus temas de maior repercussão: as tensões inerentes ao ato de educar. Para Meirieu, a educação é responsabilidade coletiva. “Ela deveria envolver todos, absolutamente todos os adultos: pais, políticos, mundo econômico e associativo.”
Suas referências pedagógicas costumavam ser Rousseau, Pestolazzi, Freinet, Montessori, Claparède. Esses grandes autores continuam atuais para a pedagogia contemporânea? Por que são importantes?
A situação obviamente mudou muito desde a época de Rousseau e até mesmo desde os tempos de Freinet, Montessori e Claparède. Mas ainda há no empreendimento educacional uma dimensão antropológica que permanece fundamental: educar é acolher uma criança, a quem convém transmitir não só os meios para compreender este mundo e para nele agir, mas também para renová-lo e até torná-lo melhor. A educação tem, na minha opinião, duas dimensões essenciais: a transmissão e a emancipação, a formação de pessoas capazes de se integrar à sociedade por meio do conhecimento e das habilidades que nós lhes transmitimos; e a formação de cidadãos, que não só têm de se adaptar e obedecer, mas aprender a pensar por si mesmos e se tornar atores sociais em uma democracia vibrante. O que torna as coisas complicadas é que esses dois movimentos - a transmissão e a emancipação - devem ser realizados no mesmo ato, na mesma operação, ao aprender a ler e escrever, ao trabalhar em ciência e literatura, por exemplo. Eu preciso aprender gramática e, ao mesmo tempo, construir minha liberdade por meio de um melhor domínio da comunicação escrita, que me permite ser mais rigoroso e persuasivo para expressar meus pontos de vista. E eu preciso aprender ciências para ser bem-sucedido em minha escolaridade e, ao mesmo tempo, tomar o poder sobre mim e sobre o mundo, lutar contra a fatalidade, buscar ultrapassar as relações de força pela busca da verdade e pelo bem comum. Cada ato de transmissão deve, assim, ser questionado sobre sua capacidade de emancipação. Era nisso que Rousseau estava interessado, assim como Claparède ou, no Brasil, Paulo Freire. Esse é o coração da pedagogia. E, ainda que tenhamos de adaptar nossos meios para fazê-lo, o objetivo continua o mesmo.
Em seu livro ‘Carta a um Jovem Professor’ (Editora Penso), o senhor manifesta a vontade do professor de ser o veículo do aprendizado, um ‘passeur’. No entanto, as tecnologias tomam cada vez mais lugar na educação da criança, que tem mais autonomia. O papel do professor continua o mesmo?
Imaginemos um pesadelo de ficção científica no qual as escolas e as salas de aula desapareceriam e onde cada aluno trabalharia sozinho diante de uma tela, acessando diretamente bases de dados gigantescas, com exercícios que ele utilizaria em função de seu nível. Os alunos teriam a supervisão de vigias, substitutos eficazes dos professores, que se tornariam inúteis. Esse seria o pior dos mundos. Primeiro porque a função do professor não é apenas transmitir os saberes, mas também o amor pelos saberes e o desejo de ser sempre mais preciso, mais correto, mais rigoroso na busca pela verdade. Além disso, as tecnologias podem ser utilizadas de forma pertinente, mas também levar a interpretações erradas e graves. Uma ferramenta de busca não classifica os conhecimentos segundo seu grau de fiabilidade científica, e sim segundo sua atratividade. Um software de educação pode ser muito eficaz para um estudante e inútil para outro. Por último, porque a escola não tem apenas a vocação de franquear o aprendizado aos estudantes; ela deve ser o lugar onde se aprende em conjunto. Digo em conjunto porque isso permite sair do individualismo e construir um coletivo de solidariedade. Em conjunto quer dizer que a discussão e a ajuda mútua são meios preciosos de formação cidadã. Essa é a razão pela qual as tecnologias não tornam o professor inútil. Ao contrário: é ele que se torna o fiador de seu bom uso e de seu caráter educativo.
O senhor fala em “dimensão secreta” no ofício de professor. Essa é uma ideia metafísica. Acredita que o professor é mais missionário do que profissional?
Nenhum ofício pode ser reduzido à soma de suas competências necessárias. Não é assim para o jogador de futebol, nem para o jornalista, nem para o agricultor, nem para o engenheiro. Os professores não são exceção à regra. Em cada professor há uma espécie de “casa mitológica” no centro de seu compromisso: é a paixão de transmitir, a vontade de que ninguém fique pelo caminho, a necessidade de compreender por que tal aluno não consegue fazer algo e buscar a forma de ensiná-lo, para que todos experimentem o desejo de aprender e a felicidade de compreender. Isso não é metafísico, é um projeto que faz do professor um verdadeiro aventureiro do século 21.
Eu faço essa pergunta porque em ‘Carta a um Jovem Professor’ encontramos uma "inevitável e dolorosa decepção" por parte do professor diante de uma realidade "difícil de aceitar", já que o trabalho cotidiano fica longe do ideal. Acredita mesmo que a decepção é o destino incontornável do professor?
Sim, sempre há um pouco de decepção no exercício desse ofício, porque o projeto de compartilhar todos os saberes a todos os alunos é necessário porém, ao mesmo tempo, um projeto quase impossível. Mas essa decepção não deve de forma alguma se transformar em fatalismo, ao contrário. É preciso fazer dela um meio de reforçar nossa determinação individual e coletiva, uma maneira de suscitar e estimular nossa criatividade.
O senhor afirma que uma das razões dos disfuncionamentos da escola é a autoridade no interior do estabelecimento, que deixou de ser do professor e está nas mãos dos gestores. Quais são as consequências dessa mudança na hierarquia da escola?
Nós estamos, em especial nos países ocidentais, em uma corrida em direção aos “resultados”, que dão um poder excessivo aos gestores. A obrigação dos resultados na educação é um absurdo: bastaria selecionar os alunos na entrada e obteríamos sempre bons resultados na saída. Além disso, os “gestores” acabam por esquecer o que está no coração do ato pedagógico: o desejo de aprender. Nós podemos ter uma instituição séria, bem-organizada, com uma multiplicidade de escalas e controles, avaliações e painéis de bordo de toda espécie. E, diante de nós, alunos para quem o conhecimento ensinado não tem sentido algum. Então eles só trabalham para evitar sanções e se tornam “carreiristas”. Perguntemo-nos sempre o que pode mobilizar a inteligência de uma criança, busquemos a cultura que seja suscetível de ajudá-lo a sair de suas preocupações imediatas, o que pode lhe abrir os olhos para o mundo e conduzi-lo a saberes mais complexos. É preciso evitar, creio eu, reduzir a escola a uma máquina de ensinar porque, como máquina, a escola não funciona. Ela funciona apenas como ponto de encontro vivo entre “professores-pesquisadores” e “estudantes-pesquisadores”.
O senhor denuncia a "teorização excessiva, tecnocrática" do ato de ensinar. A educação teria se tornado mercantil demais, orientada demais à eficiência. Mas mesmo a escola pública e gratuita caiu nessa armadilha? Qual seria o antídoto para essa situação?
A verdadeira eficiência da escola seria transmitir o desejo de aprender, não transformar a escolaridade em uma corrida de obstáculos. Todas as nossas escolas estão ameaçadas pelo utilitarismo de ensinar apenas “o que vai servir” imediatamente. Mas o prazer de aprender está no reencontro com a cultura, porque a cultura não responde apenas aos problemas concretos e imediatos, mas às questões fundamentais que o ser humano se faz sobre suas origens e sobre seu futuro, sobre o que o inquieta e sobre o que lhe dá esperança. Eu sonho com uma escola na qual se ensine aos estudantes por que e como Pitágoras elaborou o famoso teorema ou em que condições Newton descobriu a gravidade, uma escola na qual, por meio da literatura, possamos aprender a domar nosso medo do outro e a pactuar com a incerteza. Eu sonho com uma escola onde ensinemos saberes vivos e não saberes fossilizados.
Em 2008 o filme francês ‘Entre os Muros da Escola’, de Laurent Cantet, fez enorme sucesso, inclusive no Brasil, ao abordar as condições de ensino nas periferias da França. Como chegamos a esse ponto? E como sair dele?
Esse filme me pareceu muito caricatural, tanto pela realidade que ele descreve quanto pela atitude demagógica do professor que ele promove. É claro que a situação se tornou muito difícil em algumas turmas porque nós não mais escolarizamos apenas as crianças privilegiadas, que encontraram suas panóplias de bons alunos aos pés de seus berços. Mas estou certo de que devemos ser exigentes com os estudantes, estruturar a classe com regras que permitam de fato o trabalho em conjunto, propor conteúdos que mobilizem os estudantes e fazer tudo isso em estabelecimentos que sejam verdadeiras “instituições” sólidas, com equipes de professores solidários, que assumam e acompanhem os grupos de alunos que eles conhecem. Eu sou a favor da implantação de “microestabelecimentos” dentro dos estabelecimentos, que reagrupem uma centena de estudantes, sob os cuidados de cinco ou seis professores responsáveis. Não precisamos de grandes estabelecimentos anônimos nos quais os alunos são abandonados a eles próprios e à boa vontade de alguns adultos voluntários. Precisamos de “medidas estruturantes”, com escala humana.
Na França fala-se muito na cultura-zapping dos alunos, em especial dos estudantes de periferia. No Brasil, no entanto, a realidade é ainda mais dura: a da evasão em massa, do abandono, do tráfico de drogas dentro dos muros da escola, da violência entre estudantes e dos estudantes para com os professores. Como um professor talentoso, idealista, pode sobreviver em um ambiente tão hostil?
Posso bem imaginar a dificuldade da tarefa e o sofrimento dos professores. Frente a isso, creio antes de mais nada na força do trabalho em equipe, em romper a solidão, em trabalhar em conjunto, em trocar impressões sobre dificuldades e conquistas. Trabalhar em duplas de professores em uma mesma turma, mesmo que mais numerosa, pode ajudar a retomar as rédeas. Além disso, mesmo os alunos mais marginalizados, mais difíceis, podem se apaixonar por alguma coisa - um projeto, uma atividade cultural forte - que lhes permitirá mudar de comportamento. Eu sei bem que os professores se sentem desgastados, mas eles devem saber que, em muitos casos, mesmo se uma atividade parece não interessar aos alunos, mesmo se uma situação degenera em violência, mesmo se a indiferença se instala, não podemos nunca saber se não influenciamos alguns que, por pudor, não dirão nada, mesmo que estejam marcados profundamente para o resto de suas vidas. Enfim, claro que a escola não pode, sozinha, reparar todas as feridas da sociedade. A educação é uma responsabilidade coletiva de todos os adultos, absolutamente todos os adultos: pais, políticos, mundo econômico e associativo. Nós temos todos uma responsabilidade educativa e temos um “dever de intervenção” a cada vez que uma situação se degenera. Não podemos exigir tudo dos professores. O dever da exemplaridade concerne a todos nós.
O professor no Brasil é um dos mais mal pagos do mundo, segundo indicadores estatísticos. O que isso quer dizer sobre a importância da educação em um país?
Evidentemente é um mau sinal. O professor tem um ofício muito duro. Deve ter direito a um reconhecimento que seja ao mesmo tempo simbólico e material. O reconhecimento que um país dá aos seus professores é o sinal da importância que atribui a seus filhos, ou seja, a seu futuro.
No sul do Brasil, um movimento de greve e uma manifestação de professores foram reprimidos pela polícia a cacetadas e a tiros de balas de borracha há alguns dias. O que o senhor pensa disso?
Não consigo entender tal comportamento da polícia. Em uma democracia os governantes devem prestar atenção extrema às demandas dos professores e manter um diálogo aberto e permanente com eles. Os governos podem não estar de acordo com os professores e vice-versa; pode haver conflitos, até mesmo graves. Mas é preciso sempre que os dirigentes deixem a porta aberta aos professores. Isso não significa que devam ceder em tudo, mas que eles os escutem, compreendam e procurem avançar em harmonia. Não podemos governar de forma sustentável hostilizando os encarregados de formar nossa juventude. A história nos ensina isso permanentemente. A revolta dos professores é sempre, em uma sociedade, sintoma de um mal-estar que deve ser levado a sério. Não é um movimento caprichoso que deve ser reprimido.
O senhor costuma dizer que uma das missões da escola é ensinar a viver juntos, a respeitar as diferenças, a escapar da armadilha da formação de comunidades fechadas. Chama isso de ‘aprendizado da liberdade’. Mas parece que vivemos numa espiral inversa, a da radicalização, do entrincheiramento, da reafirmação de nossas próprias convicções, a despeito do outro. Como lutar contra isso?
Tem razão. A sociedade que você descreve é exatamente aquela em que vivemos. Mas, frente a ela, a escola não deve ter vergonha de remar contra a maré, ao contrário! É a sua missão! Frente ao entrincheiramento individual, a escola deve promover o coletivo, a solidariedade. Frente ao aumento da desatenção e da demagogia, a escola deve promover o esforço intelectual e o prazer que dele se depreende. Frente a todas as formas de radicalização, a escola deve ensinar e mostrar de forma concreta a diferença entre o “saber” e o “crer”. Frente ao apelo da pulsão consumista, a escola deve ensinar a limitar as demandas. Frente à aceleração infernal imposta pelas tecnologias, a escola deve dar tempo para pensar, tatear, refletir. A escola não deve ter vergonha de reequilibrar a sociedade. É a sua missão fundamental.