domingo, 7 de dezembro de 2014

Desigualdade patrimonial é pior que a de renda

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Economia


É o que indica estudo inédito. Apoiado por futuro ministro do Planejamento, projeto de lei tenta expor a situação
por André Barrocal — publicado 07/12/2014 09:24
Edilson Rodrigues / Agência Senado
A riqueza gerada pela economia mundial é de cerca de 75 trilhões de dólares por ano. Se fosse distribuída por igual entre os habitantes do planeta, cada um teria uns 870 dólares mensais. Pelo câmbio atual, 2,2 mil reais. A realidade econômica varia pelo globo, então pode-se viver melhor ou pior com tal renda, dependendo do país – e das ambições individuais, claro. Mas uma coisa parece certa. É ilusão achar que todo mundo pode enriquecer trabalhando: a produção diária de riqueza é insuficiente. Criar empregos tem, portanto, um efeito limitado na melhoria de vida das pessoas.
Para distribuir mais a renda, a solução parece ser a busca de fontes alternativas à riqueza gerada cotidianamente. Por exemplo: o patrimônio acumulado ao longo dos tempos pelos milionários. Imóveis, terrenos, ações, aplicações financeiras, artigos de luxo poderiam ser mais taxados pelos governos e repartidos com as populações na forma de serviços públicos. Isso permitiria aliviar os impostos cobrados no consumo, punitivos dos mais pobres. É mais ou menos o caminho sugerido pelo economista do momento, o francês Thomas Piketty, autor do badalado livro O Capital no Século XXI.
O Brasil tem uma resistência histórica a tributar o patrimônio e até mesmo a debater o tema. Já despontam, no entanto, iniciativas capazes de ao menos estimular a discussão. Um estudo inédito feito por um economista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) oferece pistas de que a desigualdade patrimonial brasileira supera – e muito – a de renda. Uma lei discutida no Congresso tenta expor a situação e encontra um simpatizante no futuro ministro do Planejamento, Nelson Barbosa.
Embora não haja dados oficiais sobre a desigualdade nacional a incluir o patrimônio no cálculo, o pesquisador André Calixtre, do Ipea, fez um esforço para tatear a situação. Ele analisou 480 mil declarações de bens entregues à Justiça eleitoral por todos os candidatos a prefeito e vereador na campanha de 2012. A base de dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) não é uma representação perfeita da sociedade, reconhece Calixtre. Há razões também, diz, para desconfiar da sinceridade das informações prestadas pelos candidatos – parecer muito rico pode não pegar bem junto ao eleitorado, além de chamar a atenção da Receita. Muitas declarações continham erros também.
Feitas estas ressalvas, o economista apurou que o índice de desigualdade patrimonial entre os candidatos era de 0,81, considerando-se inclusive os postulantes que disseram não ter bens. E de 0,70, excluindo-se a turma de patrimônio zero. Os dois índices estão bem acima da desigualdade calculada pelo IBGE só com base na renda. Em 2012, este índice, conhecido como Gini, era de 0,49. Quanto mais perto de um, maior é a desigualdade. “A análise da base de dados do TSE sugere que a desconcentração de renda ocorrida nos últimos anos foi acompanhada de uma concentração da propriedade, como aconteceu na Coreia do Sul”, afirma Calixtre. “A desigualdade patrimonial no Brasil é muito maior do que na renda. Precisamos tributar mais os mais ricos.”
O estudo Nas fronteiras da desigualdade brasileira será publicado em breve por uma fundação ligada ao Partido Social Democrata alemão, a Friedrich Ebert. Tem potencial para ajudar no debate de uma lei proposta em junho na Câmara dos Deputados que quer o obrigar o governo a produzir anualmente um Relatório sobre a Distribuição Pessoal da Renda e da Riqueza dos brasileiros. Uma radiografia patrimonial da população, algo existente mundo afora mas desconhecido por aqui. Seria elaborado a partir das declarações de renda recebidas pela Receita Federal, com o compromisso de preservar o sigilo individual dos contribuintes. Conteria números, não nomes.
O documento permitiria ao País saber mais sobre si e, a partir daí, discutir propostas de melhoria da distribuição de renda via taxação das fortunas. Sua ausência foi a razão para o Brasil ter ficado de fora do livro de Piketty. “A sociedade brasileira não dispõe de informações sobre a distribuição da riqueza e dos efeitos da tributação vigente em reduzir as desigualdades”, diz o autor do projeto, deputado Claudio Puty (PT-PA). “Assim, torna-se imperioso que sejam produzidas informações estatísticas de qualidade para guiar políticas públicas efetivas em reduzir as desigualdades.”
O País possui uma tradição de pouco tributar a propriedade e a riqueza. Ao contrário do que ocorre pelo globo, prefere bancar políticas e funcionários públicos com dinheiro arrecadado no comércio de bens e serviços. A opção afeta os mais pobres, pois eles não conseguem economizar e pagam impostos em todas as suas compras – de carne, de roupa, de celular. No Brasil, 44% da arrecadação nasce no consumo. Nos Estados Unidos, são 18%. Na França, 25%. Nos EUA, o peso dos tributos sobre a renda e sobre o patrimônio no total arrecadado é o dobro daqui: 56% a 27%.
Os números acima são da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), entidade internacional a congregar países ricos. Foram usados pelo futuro ministro da Fazenda, Joaquim Levy, em um artigo publicado em setembro sob o título de Robustez fiscal e qualidade do gasto como ferramentas para o crescimento. No texto, ele diz que a taxação do consumo no Brasil “é muito maior do que na maioria dos países, inclusive desenvolvidos, e tem efeitos negativos sobre a distribuição de renda”.
Companheiro de Levy na futura equipe econômica, Nelson Barbosa publicou um mês antes o artigo Para conhecer melhor a distribuição de renda e riqueza no País, mostrando-se um entusiasta da lei de Puty. Até propôs reforçar o orçamento da Receita Federal, para os técnicos poderem estudar mais este tipo de assunto. “Nos últimos anos, o Brasil foi uma das poucas grandes economias do mundo em que a desigualdade da distribuição de renda do trabalho caiu. Já está na hora de ampliarmos nossos estudos sobre o tema para a renda do capital e a riqueza.”
Será que vamos mesmo?

Para a alma mater, in Piaui

Delfim Netto comprou seu primeiro livro na Civilização Brasileira, no Centro de São Paulo, quando era adolescente. Sete décadas depois, ele tem 250 mil livros. Eles estão acomodados num galpão com vários salões no sítio do ex-ministro em Cotia, nas imediações de São Paulo. Quer dizer, ele supõe que sejam 250 mil. “Usando como critério o número de artigos e ensaios, que são o usual no meu campo, o da economia, acho que a biblioteca pode ter uns 500 mil itens”, disse recentemente.
Ele se apressou em explicar que não setrata de uma biblioteca preciosa. “Não tenho raridades, nem primeiras edições, nem autógrafos, nem manuscritos”, disse.“É apenas uma biblioteca de trabalho, não sou um fetichista.” O ex-deputado tem, por exemplo, as primeiras edições dos clássicos da economia, de A Riqueza das Nações, de Adam Smith, a O Capital, de Karl Marx. Mas são primeiras edições falsas. “Uma editora alemã republicou recentemente todos os clássicos, exatamente como na primeira edição, com o papel, o tamanho e a tipologia originais”, contou Delfim Netto. “Assim, pode-se ter uma noção de como o livro chegou aos leitores pela primeira vez. E melhor: como se fosse novo. É coisa de alemão.”
Se não é dono de edições príncipes, ele tem, em contrapartida, todas as dezenove edições deIntrodução à Análise Econômica, de Paul A. Samuelson, o primeiro americano a ganhar o Nobel de Economia, em 1970. “Não é uma extravagância”, disse, “é para poder comparar como Samuelson mudou a maneira de pensar e alterou o livro ao longo de mais de meio século.” A seção dedicada a Marx, por sua vez, é de dar inveja a marxistas empenhados. A biblioteca, por tudo isso, tem valor, inclusive monetário (“É o meu maior patrimônio”), mas que decorre mais do conjunto do que dos livros individuais.
Ela está divida em quatro assuntos principais: economia, matemática, história e filosofia (que abarca sociologia, política e afins). Seus idiomas, pela ordem, também são quatro: inglês, francês, português, italiano; e alguma coisa de alemão e espanhol. Não há nada de ficção e adjacências. “Os de literatura, que são poucos, eu deixo em casa até para não misturar”, disse.
Obviamente, os livros estão catalogados. Seus dados sumários (título, autor, ano e local de publicação) ficam armazenados num computador. Mas o sistema de catalogação não é o mais disseminado. Foi o próprio Delfim Nettoquem o inventou, e não tem nada de complicado. A ficha no computador registra apenas três informações: a sala, a estante e a prateleira. Chegando a ela, o livro precisa ser achado num espaço de pouco mais de 1 metro.
Depois de muito comprar livros e revistas separadamente, em livrarias e sebos, Delfim passou a adquirir bibliotecas: “Geralmente, comprava de professores de economia. A família vendia porque os descendentes não tinham interesse no assunto. E também para liberar quartos, salas e, às vezes, apartamentos inteiros ocupados por livros.”
O ex-ministro passou a frequentar sebos e antiquários no exterior. “Quando eu viajava como ministro, digamos para Estocolmo, eu pedia antes a um segundo-secretário da nossa embaixada que descobrisse o endereço dos três melhores sebos. Aí, depois dos compromissos, eu reservava uma horinha para visitá-los.” Um dos seus sebos preferidos, ainda hoje, é o Strand, no Village, em Nova York. Foi lá dezenas de vezes e, empurrando um carrinho de supermercado, percorreu as lendárias 18 milhas de estantes, à cata de livros usados de matemática e economia. Enchia vários carrinhos e despachava caixas cheias de livros por navio. Quando embaixador em Paris, ele frequentava os bouquinistes na beira do Sena e antiquários de Saint-Germain-des-Prés.
Aí chegou a internet. “Foi uma festa”, lembrou Delfim. Surgiram os sebos on-line. Depois as redes de sebos. “Aí, você descobria que em Cingapura havia o livro que você procurava há décadas”, disse. “Aliás, acho que os sebos de Cingapura são os mais organizados do mundo.”
Pois essa biblioteca formidável, que faz os olhos de Delfim Netto se iluminarem, não é mais sua. Ele a doou à Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo, onde entrou em 1948, tornou-se catedrático dez anos depois, fez o doutorado (origem do livro O Problema do Café no Brasil, que virouum clássico) e ainda hoje organiza seminários. Agora, em 1º de maio, ele completará 83 anos de vida. “Não há sentido, na minha idade, em manter uma biblioteca assim”, explicou. “Na USP, espero que ela entusiasme os novos alunos e depois os auxilie nas pesquisas.”
Pelo acordo com a faculdade, a biblioteca será mantida tal e qual está hoje, em Cotia, com a mesma divisão de salas, estantese prateleiras. Até a poltrona e a escrivaninha de Delfim irão para as novas instalações. “O bom é que poderei frequentar a biblioteca”, disse  o ex-ministro.
Antônio Delfim Netto nasceu no Cambuci, bairro de trabalhadores de São Paulo, numa família de imigrantes italianos pobres. Ficou órfão de pai ainda criança e começou a trabalhar aos 14 anos, como contínuo da Gessy, uma fábrica de sabonetes. Estudou sempre em escolas públicas. “Sem a USP, eu não seria nada”, ele acha. “E toda retribuição que eu possa fazer à Faculdade de Economia nunca compensará o que ela me deu.”
Ele foi ministro da ditadura em duas ocasiões (1967–74 e 1979–85), embaixador e deputado em cinco legislaturas. Jamaisdeixou de estudar e ensinar na USP. “O nosso Departamento de Economia é discreto, não faz barulho, mas está entre os melhores do Brasil”, avalia. “E note que, de todos os economistas conhecidos que estudaram lá, nenhum virou banqueiro ou ficou bilionário no mercado financeiro. É uma característica da USP.”
Os outros bons departamentos de economia, na sua avaliação, seriam o da Faculdades Campinas, a Facamp, o da PUC do Rio, o Instituto de Ensino e Pesquisa (o antigo Ibmec, agora Insper) e a Fundação Getulio Vargas. “Cada um tem a sua particularidade. O do João Manoel e odo Belluzzo, na Facamp, estão ajudando o desenvolvimento do interior de São Paulo. A PUC está mais na matemática financeira. O Ibmec, do Claudio Haddad, poderia estar nos Estados Unidos, de tão eficiente. A FGV presta um grande serviço público. E a USP, oras, é a USP.”

A mudez da nudez


RENATO JANINE RIBEIRO - O ESTADO DE S. PAULO
06 Dezembro 2014 | 16h 00

Os corpos das mulheres que saem nuas às ruas já não dizem muito só por estarem nus?

DIEGO VARA/AGÊNCIA RBS
(Obs)cenas. No Parque Moinhos de Vento e na Rua Gal. Alto, Porto Alegre; e no câmpus da UFRN
Tudo que temos são poucas fotos e um vídeo curto. Uma moça, provavelmente estudante, seus 20 anos, corpo bonito, o rosto coberto por uma focinheira, vestindo só uma calcinha, imita um cachorro. Ao se retirar, faz xixi num poste. Especulam uns que fez laboratório, talvez com um psiquiatra. Ou dizem que é trabalho de conclusão de curso em artes cênicas. No vídeo, ela late para um segurança, que não a reprime. Isso ocorreu no câmpus da UFRN, em Natal, no dia 13 de novembro e, embora não tenha bombado na imprensa nacional, está nas redes. A moça não publicou manifesto, mas em seu corpo seminu estão escritos vários protestos. 
O protesto nu se viralizou (na verdade, tirando dois casos, não se sabe se são protestos). Uma microepidemia começou por Porto Alegre. Não houve violência policial, o que é bom. No Sul, uma corredora nua contou ao jornalista que a viu e entrevistou uma história de vida complicada, dura. Depoimentos, só temos o dela e o da manifestante do outro Rio Grande. 
O que me chama a atenção é que, tão logo alguém sai pelado - especialmente se for mulher -, a primeira reação é supor que seja doente mental. Só aceitamos que seja protesto se houver grupos, convocação e texto. Só é político se for racional, se tiver palavras que expliquem para que tiram a roupa. Se for apenas um gesto, e em especial se for de uma mulher isolada, ela é louca. Por isso o episódio nordestino, com seu escrito sobre um corpo, parece mais racional à primeira vista (notem que eu disse “parece”!) do que os gaúchos.
Fui atrás. Amigos com vínculos em Natal me passaram informações. Cheguei a Paula Salazar, a estudante da UFRN que saiu seminua no câmpus (ela enfatiza o “semi”, com razão). Um amigo dela, Pedro Bardini, publicou em seu Facebook uma pasta chamada “Caninga. Natown, 2014. Performance”, com uma profusão de fotos. Essa é a principal fonte para conhecer o que ela fez. Os comentários não surpreendem. A maioria é péssima. Muitos lhe recomendam um macho com membro rijo. Como são homens que nunca vão tê-la, é pura grosseria - não, é confissão de um desejo que, insaciado, fadado a nunca se saciar, tenta abolir a atração que sentem reduzindo-a a um corpo carente. Mulheres, se saem peladas à rua, é porque carecem de um macho. Ah a plenitude do pênis que pode suprir os vazios da feminidade (de propósito uso nesta frase a linguagem do Facebook, que reduz ou elimina vírgulas). 
Mais generosos, ou caridosos, um segundo contingente sugere que só por doença mental alguém (aqui, uma mulher) sai nua à rua. Tratem, portanto, de sua doença mental. Aliás, duas das quatro gaúchas foram atendidas para ver se tinham um problema psicológico sério. Caridade, aqui, não é virtude, é preconceito. Esses não querem castigo, porém gostariam de medicá-las. Mas e se quem sai nu não for doente?
Um terceiro grupo, vil, chama-as de feministas e até de esquerdistas, mas usando as palavras como xingamentos. Eles as pronunciam com ódio. Mais que os movimentos feministas, são eles que politizam o acontecido. Politizar nem sempre é dar um upgrade. Geralmente, sim: quando se politiza, sai-se do confinamento sobre si mesmo, que os gregos consideravam característico do idiota, para se passar à vida social, em particular ao espaço em que o coletivo decide sobre a vida coletiva. É o que chamamos de política: uma coletividade se reunir para decidir seu futuro. 
Por isso a democracia é o apogeu, a realização da política. Mas aqui é o contrário. Os pregadores do ódio ao corpo feminino veem a política como degradação. Para eles, há papéis naturais do masculino e do feminino. Qualquer tentativa de mexer nessas essências naturais, fixas, rígidas é “política” - substituição do permanente, certo, correto, pelo instável, errado, infame. E para eles não há pior política do que essa, que subverte a hierarquia, que coloca o pobre como igual do rico, a mulher do homem, o gay do hétero. 
Ainda há um quarto grupo, pequeno, que se manifesta só nas fotos em que Paula Salazar está sem máscara, já arrancado o instrumento ortopédico que deixava seu rosto meio monstruoso, mais bestial do que humano. Como ela é bonita, esses - que a veem de face nua - a admiram. Voltou a ser mulher, tudo vira normal, business as usual. Conversei com ela. Perguntei se protestou contra a opressão à mulher. Não, protestava contra o autoritarismo da reitora da UFRN. Participou da ocupação da reitoria, onde fez uma dança de derviches, também com o peito nu. Cita Foucault no Face. Tem 24 anos, é casada. É bem diferente da única outra mulher, das que foram a público despidas, a falar. Esta foi Betina Baino, de uma beleza diferente, lutadora de MMA, que na tarde da quinta-feira 6 de novembro correu pelas ruas de Porto Alegre e foi entrevistada por um jornalista. Betina criticou Dilma, mas, sobretudo, reclamou de não conseguir mais lutar MMA. Fez um desabafo, mais espontâneo e menos refletido que o de Paula. “Ainda não sei o que foi”, disse no FB, dias depois. 
São essas as duas únicas vozes que tivemos de um fenômeno que chamou a atenção recentemente e não sabemos se terá ou não futuro. Tudo o mais que se diga delas é especulação - e diz mais sobre quem fala do que sobre elas. Betina desabafou durante três minutos. Falei com Paula bem mais que isso. Mas é enorme o leque de interpretações que surgiu a respeito. A maior parte surfa na hostilidade. Ia dizer “no preconceito”, mas a palavra nem sempre é ruim ou errada; como pouco sabemos o que aconteceu, tendo a voz apenas de duas de cinco, uma das quais ainda não sabe o que deu nela, é inevitável apenas especularmos. Mas me parece curioso que alguns tenham pensado, em Porto Alegre, que seria uma iniciativa publicitária, algumas mulheres correndo nuas para, daí a uns dias, ser lançado um novo produto (o que não sucedeu). 
Esse contraste fascina. Por um lado, a vida nua, sem acréscimo cultural externo ao corpo. O simples corpo. Por outro, um ferver de interpretações, que procura vestir esses corpos com sentidos. Esses sentidos atribuídos pelos espectadores não amam nem respeitam o corpo. Pouco importa, aqui, que eles sejam bonitos ou não. O olhar masculino geralmente admira a nudez feminina, geralmente é atraído por ela, e isso não só quando a mulher é bela. Atos de nudez despertam reações atávicas. Não digo que sejam reações puramente naturais. Nossa psique foi trabalhada por milênios, a ponto de não ser mais puramente natural. (O apelo da sexualidade, na psique e na psicologia, se deve a ter ela uma força enorme de instinto ou de pulsão; se formos procurar o que está mais perto da natureza, diremos certamente que é a sexualidade - e talvez tenhamos razão.) O corpo de Betina parece portar marcas do sofrimento que ela colocou em palavras na sua breve, mas tocante, entrevista. O de Paula, embora o escrito sobre seu corpo e também suas palavras lhe deem um sentido mais racional, mais político, contrasta com uma certa mudez. Ao contrário de Betina, ela não abriu a boca, não enquanto performava, não pelo menos para exprimir a linguagem humana. 
Temos por um lado a exposição bruta, simples, nua de corpos, como que zerando o que possamos dizer deles. O silêncio dos corpos (mas precisariam falar? Já não nos perguntam, já não nos dizem muita coisa, só por estarem nus?). A mudez da nudez. Por outro, temos um amplo superávit de discursos, a maior parte dos quais proclamando o escândalo, a obscenidade do que viram. Proclamando e querendo expulsar, claro. A tal ponto que resta a pergunta: querem mesmo expulsar? Ou são como aqueles que xingam as mulheres que veem nuas em fotografias, mas xingam justamente para continuar olhando, desfrutando, gozando por procuração, substituindo o órgão genital pelo olhar?
Uso aqui a palavra “obsceno” só para descrever. O termo provavelmente vem da soma do latim ob (para, rumo a) e caenum (sujeira), definindo algo sujo, indecente, ofensivo. Mas pode também vir da soma de ob com scenus (cena), referindo o que está fora de cena, o que não se exibe (ou não deveria ser exibido). Quando há mais do que uma etimologia, é bom usar todas. No caso, transgride-se a proibição de exibir algo que é sujo, molesto, agressivo. Ora, em nossa sociedade várias dessas características ruíram. O sexo, o corpo é sujo? Mas vemos a nudez, em sua forma bela, comercializada a todo instante nas várias mídias, das revistas adultas a canais de televisão. O sexo antes do casamento deixou de ser interdito, para se tornar norma. Sujeira onde? Até a Constituição de 1988, para apresentar uma peça de teatro era preciso o aval da censura. Isso acabou. E embora seja difícil entender Betina, dados os ruídos no ambiente, a certa altura ela afirma que mostrar o corpo não tem nada de errado. Errado é o que se faz na vida social e política. É como se vivêssemos hoje o confronto entre duas ideias de obscenidade, uma tradicional, para a qual toda nudez deve ser castigada, e outra nova, que considera obscena a corrupção. 
Mas, para concluir, volto às duas nuas com nome e RG. Há um contraste final, curioso. Paula construiu sua personagem a partir da política, mais universitária, aliás, do que feminista. Mascarou-se de sofrimento, mas esse é uma representação, é algo externo a seu rosto, que, quando ela retira o suporte, está alegre, com a sensação de que fez o que queria. Betina, sem máscara nem maquiagem, visivelmente sofre. O repórter pergunta se tem problemas de saúde, querendo dizer mental, se toma remédios, querendo dizer tarjados. O preconceito roda a mil. Ela sofre, mas isso não quer dizer que esteja doente. Sofrimento mental não é sinônimo de loucura. O sofrimento é tão frequente quanto o Omeprazol. Ora, as reações são significativas. Poucos, dos que comentam, sentem solidariedade, compaixão, palavra que significa sofrer junto com um ser vivo sofrente. Esse, o paradoxo final da nudez pública: ela deixa as pessoas nervosas. Incomoda-as. Mas causa pouca, se alguma, compaixão. Talvez sirva mais para condenar, como faz o Femen, do que para aproximar as pessoas. Mas essa não é uma falha da nudez na rua. É uma falha da rua diante da nudez. 
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Renato Janine Ribeiro, professor titular de Ética, Filosofia Política da USP, é autor, entre outros livros, de A Sociedade Contra o Social: o Alto Custo da Vida Pública no Brasil (Companhia das Letras)