RENATO JANINE RIBEIRO - O ESTADO DE S. PAULO
06 Dezembro 2014 | 16h 00
Os corpos das mulheres que saem nuas às ruas já não dizem muito só por estarem nus?
Tudo que temos são poucas fotos e um vídeo curto. Uma moça, provavelmente estudante, seus 20 anos, corpo bonito, o rosto coberto por uma focinheira, vestindo só uma calcinha, imita um cachorro. Ao se retirar, faz xixi num poste. Especulam uns que fez laboratório, talvez com um psiquiatra. Ou dizem que é trabalho de conclusão de curso em artes cênicas. No vídeo, ela late para um segurança, que não a reprime. Isso ocorreu no câmpus da UFRN, em Natal, no dia 13 de novembro e, embora não tenha bombado na imprensa nacional, está nas redes. A moça não publicou manifesto, mas em seu corpo seminu estão escritos vários protestos.
O protesto nu se viralizou (na verdade, tirando dois casos, não se sabe se são protestos). Uma microepidemia começou por Porto Alegre. Não houve violência policial, o que é bom. No Sul, uma corredora nua contou ao jornalista que a viu e entrevistou uma história de vida complicada, dura. Depoimentos, só temos o dela e o da manifestante do outro Rio Grande.
O que me chama a atenção é que, tão logo alguém sai pelado - especialmente se for mulher -, a primeira reação é supor que seja doente mental. Só aceitamos que seja protesto se houver grupos, convocação e texto. Só é político se for racional, se tiver palavras que expliquem para que tiram a roupa. Se for apenas um gesto, e em especial se for de uma mulher isolada, ela é louca. Por isso o episódio nordestino, com seu escrito sobre um corpo, parece mais racional à primeira vista (notem que eu disse “parece”!) do que os gaúchos.
Fui atrás. Amigos com vínculos em Natal me passaram informações. Cheguei a Paula Salazar, a estudante da UFRN que saiu seminua no câmpus (ela enfatiza o “semi”, com razão). Um amigo dela, Pedro Bardini, publicou em seu Facebook uma pasta chamada “Caninga. Natown, 2014. Performance”, com uma profusão de fotos. Essa é a principal fonte para conhecer o que ela fez. Os comentários não surpreendem. A maioria é péssima. Muitos lhe recomendam um macho com membro rijo. Como são homens que nunca vão tê-la, é pura grosseria - não, é confissão de um desejo que, insaciado, fadado a nunca se saciar, tenta abolir a atração que sentem reduzindo-a a um corpo carente. Mulheres, se saem peladas à rua, é porque carecem de um macho. Ah a plenitude do pênis que pode suprir os vazios da feminidade (de propósito uso nesta frase a linguagem do Facebook, que reduz ou elimina vírgulas).
Mais generosos, ou caridosos, um segundo contingente sugere que só por doença mental alguém (aqui, uma mulher) sai nua à rua. Tratem, portanto, de sua doença mental. Aliás, duas das quatro gaúchas foram atendidas para ver se tinham um problema psicológico sério. Caridade, aqui, não é virtude, é preconceito. Esses não querem castigo, porém gostariam de medicá-las. Mas e se quem sai nu não for doente?
Um terceiro grupo, vil, chama-as de feministas e até de esquerdistas, mas usando as palavras como xingamentos. Eles as pronunciam com ódio. Mais que os movimentos feministas, são eles que politizam o acontecido. Politizar nem sempre é dar um upgrade. Geralmente, sim: quando se politiza, sai-se do confinamento sobre si mesmo, que os gregos consideravam característico do idiota, para se passar à vida social, em particular ao espaço em que o coletivo decide sobre a vida coletiva. É o que chamamos de política: uma coletividade se reunir para decidir seu futuro.
Por isso a democracia é o apogeu, a realização da política. Mas aqui é o contrário. Os pregadores do ódio ao corpo feminino veem a política como degradação. Para eles, há papéis naturais do masculino e do feminino. Qualquer tentativa de mexer nessas essências naturais, fixas, rígidas é “política” - substituição do permanente, certo, correto, pelo instável, errado, infame. E para eles não há pior política do que essa, que subverte a hierarquia, que coloca o pobre como igual do rico, a mulher do homem, o gay do hétero.
Ainda há um quarto grupo, pequeno, que se manifesta só nas fotos em que Paula Salazar está sem máscara, já arrancado o instrumento ortopédico que deixava seu rosto meio monstruoso, mais bestial do que humano. Como ela é bonita, esses - que a veem de face nua - a admiram. Voltou a ser mulher, tudo vira normal, business as usual. Conversei com ela. Perguntei se protestou contra a opressão à mulher. Não, protestava contra o autoritarismo da reitora da UFRN. Participou da ocupação da reitoria, onde fez uma dança de derviches, também com o peito nu. Cita Foucault no Face. Tem 24 anos, é casada. É bem diferente da única outra mulher, das que foram a público despidas, a falar. Esta foi Betina Baino, de uma beleza diferente, lutadora de MMA, que na tarde da quinta-feira 6 de novembro correu pelas ruas de Porto Alegre e foi entrevistada por um jornalista. Betina criticou Dilma, mas, sobretudo, reclamou de não conseguir mais lutar MMA. Fez um desabafo, mais espontâneo e menos refletido que o de Paula. “Ainda não sei o que foi”, disse no FB, dias depois.
São essas as duas únicas vozes que tivemos de um fenômeno que chamou a atenção recentemente e não sabemos se terá ou não futuro. Tudo o mais que se diga delas é especulação - e diz mais sobre quem fala do que sobre elas. Betina desabafou durante três minutos. Falei com Paula bem mais que isso. Mas é enorme o leque de interpretações que surgiu a respeito. A maior parte surfa na hostilidade. Ia dizer “no preconceito”, mas a palavra nem sempre é ruim ou errada; como pouco sabemos o que aconteceu, tendo a voz apenas de duas de cinco, uma das quais ainda não sabe o que deu nela, é inevitável apenas especularmos. Mas me parece curioso que alguns tenham pensado, em Porto Alegre, que seria uma iniciativa publicitária, algumas mulheres correndo nuas para, daí a uns dias, ser lançado um novo produto (o que não sucedeu).
Esse contraste fascina. Por um lado, a vida nua, sem acréscimo cultural externo ao corpo. O simples corpo. Por outro, um ferver de interpretações, que procura vestir esses corpos com sentidos. Esses sentidos atribuídos pelos espectadores não amam nem respeitam o corpo. Pouco importa, aqui, que eles sejam bonitos ou não. O olhar masculino geralmente admira a nudez feminina, geralmente é atraído por ela, e isso não só quando a mulher é bela. Atos de nudez despertam reações atávicas. Não digo que sejam reações puramente naturais. Nossa psique foi trabalhada por milênios, a ponto de não ser mais puramente natural. (O apelo da sexualidade, na psique e na psicologia, se deve a ter ela uma força enorme de instinto ou de pulsão; se formos procurar o que está mais perto da natureza, diremos certamente que é a sexualidade - e talvez tenhamos razão.) O corpo de Betina parece portar marcas do sofrimento que ela colocou em palavras na sua breve, mas tocante, entrevista. O de Paula, embora o escrito sobre seu corpo e também suas palavras lhe deem um sentido mais racional, mais político, contrasta com uma certa mudez. Ao contrário de Betina, ela não abriu a boca, não enquanto performava, não pelo menos para exprimir a linguagem humana.
Temos por um lado a exposição bruta, simples, nua de corpos, como que zerando o que possamos dizer deles. O silêncio dos corpos (mas precisariam falar? Já não nos perguntam, já não nos dizem muita coisa, só por estarem nus?). A mudez da nudez. Por outro, temos um amplo superávit de discursos, a maior parte dos quais proclamando o escândalo, a obscenidade do que viram. Proclamando e querendo expulsar, claro. A tal ponto que resta a pergunta: querem mesmo expulsar? Ou são como aqueles que xingam as mulheres que veem nuas em fotografias, mas xingam justamente para continuar olhando, desfrutando, gozando por procuração, substituindo o órgão genital pelo olhar?
Uso aqui a palavra “obsceno” só para descrever. O termo provavelmente vem da soma do latim ob (para, rumo a) e caenum (sujeira), definindo algo sujo, indecente, ofensivo. Mas pode também vir da soma de ob com scenus (cena), referindo o que está fora de cena, o que não se exibe (ou não deveria ser exibido). Quando há mais do que uma etimologia, é bom usar todas. No caso, transgride-se a proibição de exibir algo que é sujo, molesto, agressivo. Ora, em nossa sociedade várias dessas características ruíram. O sexo, o corpo é sujo? Mas vemos a nudez, em sua forma bela, comercializada a todo instante nas várias mídias, das revistas adultas a canais de televisão. O sexo antes do casamento deixou de ser interdito, para se tornar norma. Sujeira onde? Até a Constituição de 1988, para apresentar uma peça de teatro era preciso o aval da censura. Isso acabou. E embora seja difícil entender Betina, dados os ruídos no ambiente, a certa altura ela afirma que mostrar o corpo não tem nada de errado. Errado é o que se faz na vida social e política. É como se vivêssemos hoje o confronto entre duas ideias de obscenidade, uma tradicional, para a qual toda nudez deve ser castigada, e outra nova, que considera obscena a corrupção.
Mas, para concluir, volto às duas nuas com nome e RG. Há um contraste final, curioso. Paula construiu sua personagem a partir da política, mais universitária, aliás, do que feminista. Mascarou-se de sofrimento, mas esse é uma representação, é algo externo a seu rosto, que, quando ela retira o suporte, está alegre, com a sensação de que fez o que queria. Betina, sem máscara nem maquiagem, visivelmente sofre. O repórter pergunta se tem problemas de saúde, querendo dizer mental, se toma remédios, querendo dizer tarjados. O preconceito roda a mil. Ela sofre, mas isso não quer dizer que esteja doente. Sofrimento mental não é sinônimo de loucura. O sofrimento é tão frequente quanto o Omeprazol. Ora, as reações são significativas. Poucos, dos que comentam, sentem solidariedade, compaixão, palavra que significa sofrer junto com um ser vivo sofrente. Esse, o paradoxo final da nudez pública: ela deixa as pessoas nervosas. Incomoda-as. Mas causa pouca, se alguma, compaixão. Talvez sirva mais para condenar, como faz o Femen, do que para aproximar as pessoas. Mas essa não é uma falha da nudez na rua. É uma falha da rua diante da nudez.
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Renato Janine Ribeiro, professor titular de Ética, Filosofia Política da USP, é autor, entre outros livros, de A Sociedade Contra o Social: o Alto Custo da Vida Pública no Brasil (Companhia das Letras)