domingo, 13 de abril de 2014

O Ilaudo é F.


De como o ex-camelô de Itapipoca domou um canto selvagem do centrão de São Paulo

12 de abril de 2014 | 16h 27

Christian Carvalho Cruz - O Estado de S. Paulo
Tirando fornicação, flor e "fui fazendo, patrãozinho", o Ilaudo não gosta de quase nada que começa com a letra F. Festa, funk, futebol, fumo, Facebook, ficar esperando cair do céu, fiscal folgado da Prefeitura, nada disso. O Ilaudo gosta de limpeza, arrumação e, mais recentemente, de girafas. Mas paixão mesmo, dessas de não conseguir ficar longe, ele sente por um pedaço barulhento e inclemente da região central de São Paulo. É a ponta daquele V formado pela confluência da Avenida Tiradentes com a Rua Brigadeiro Tobias, uns 300 m² de zona morta por onde a gente pode subir ou descer a Passarela da Rua das Noivas, pertinho da Estação da Luz. Quer dizer, pode subir ou descer de um ano pra cá, depois que o Ilaudo tomou conta, assim meio de fininho, sem avisar ou pedir permissão. "Fui fazendo, patrãozinho." Antes disso, outras coisas começadas com F deixavam o local com ares de Faixa de Gaza: feira do rolo (o famoso escambo de celulares roubados), fezes humanas e até furo de faca. Um fuzuê desgraçado em que ninguém dava jeito, fosse na velha ou na Nova Luz.
Mas onde está a beleza na cidade dos shoppings, Borba Gato e Minhocão? - Tiago Queiroz/Estadão
Tiago Queiroz/Estadão
Mas onde está a beleza na cidade dos shoppings, Borba Gato e Minhocão?
Interessado em alugar o prédio contíguo e ampliar seus domínios econômicos, o Ilaudo – de batismo Sebastião Ilaudo de Sousa Braga – resolveu dar cabo daquele furdúncio. O imóvel, uma linguiça de 22 metros de comprimento por 6 de largura, com três andares e seis salas comerciais, estava fechado havia cinco anos. Os proprietários pediam R$ 3 milhões pra se livrar dele. Comprar o Ilaudo não podia, mas alugar para sublocar as salas, quem sabe. Ele estava ficando bom nisso. Chegado do Ceará na gestão Paulo Maluf (o Ilaudo conta o tempo assim, de prefeito em prefeito), ele começou como camelô. Tinha 19 anos, uma banca de cintos, meias e cuecas na Rua Mauá e o objetivo de abrir uma loja de verdade. "Eu não queria capinar a vida toda, que é o que meu pai fazia, minha mãe fazia, meus 11 irmãos faziam, todo mundo fazia no nosso sítio em Itapipoca. Eu queria ser comerciante. E comércio tem que ser em São Paulo." Na gestão Marta Suplicy, ele já tinha conseguido poupar o suficiente para adiantar três meses de aluguel (sem fiador, só assim, sabe como é) e montar seu primeiro negócio formal – uma loja de bolsas e malas na mesma Rua Mauá, no térreo do antigo Hotel Federal Paulista, àquela altura já transformado em cortiço-pensão, a fina flor da moradia low cost.
Era só uma portinha de 1,5 metro de frente, mas serviu para aumentar o faturamento e, mais importante, a fama de inquilino bom pagador do Ilaudo. Outros proprietários passaram a querer alugar pra ele. E ele a realugar pra terceiros. Cinco prefeitos depois, já são 17 pontos comerciais nesse jeito ilaudiano de ganhar dinheiro, incluindo uma loja alugada pra própria mulher, a Sueny, e outra pro próprio filho, o Ilaudo Júnior. Se Ilaudo paga, Ilaudo cobra – são apenas negócios. "Pago uns R$ 50 mil de aluguel por mês, e recebo uns R$ 70 mil. Mas é valor por cima, não sou bom de exatidão. Meu negócio é ir fazendo, patrãozinho."
Pra alugar o predinho da passarela o Ilaudo teve que fazer um tanto mais. Aquilo só daria dinheiro se as pessoas voltassem a andar por ali e, de preferência, devagar e não correndo, segurando a bolsa ou tapando o nariz. "Primeiro paguei 200 contos pro casal de mendigos que morava aí ir embora", diz o Ilaudo, apontando com o queixo o terreno que se espraia da rampa em espiral da passarela até a linha do trem. Faziam de tudo lá, de fogueira pra queimar fio roubado a fuc-fuc-nheco-nheco. "Depois gradeei tudinho e levantei um muro onde a grade não alcançou." Então reinstalou a iluminação original da passarela: no total, 13 lâmpadas e luminárias, mais umas gaiolas de proteção para dificultar o festival de afanação. Hoje, a 13ª lâmpada serve de marco territorial pro Ilaudo. Ele adentra a passarela e, olhando pra cima, vai contando: uma, duas, três, quatro... Na última, suspira feliz e fala: "Até aqui é meu". Tão dele que ultimamente mandou trazer umas plantas e, naquela terra antes seca e fedida debaixo da passarela, fez nascer um jardim que ele só parou de regar todos os dias por causa da atual escassez de água que uns e outros pros lados do Morumbi fingem não ver.
Perfeccionista, porém, o Ilaudo pensou que pra ficar o fino o espaço carecia de enfeite. Pois ele encontrou dois, logo depois do carnaval, jogados na calçada da Estação da Luz. Convocou uns cabras e carregaram o par de girafas de fibra, em tamanho quase natural, para o neojardim da passarela. "Era resto de alegoria. Ficaram lá três dias e ninguém veio buscar, nem o lixeiro, então botei as bicha de pé. Agora todo mundo tira foto. Não ficou uma beleza?" Numa cidade que tem estátua do Borba Gato, Minhocão e shopping center com forma de transatlântico na beira do Rio Tietê, quem somos nós pra avaliar a feiura das girafas do Ilaudo? E lá estão elas, firmes e empertigadas, quase rindo do trânsito sempre parado na Tiradentes, dando um quê fantasioso a esta ferrada metrópole fatigada. Pra completar, o Ilaudo ainda as rodeou de árvores frutíferas. Já colheu e comeu goiaba, e agora espera pelas laranjas, os limões, as mexericas e as romãs.
É fácil ver o resultado do esforço do Ilaudo. Atravesse a passarela pro lado da Rua Florêncio de Abreu. Ali há uma banca de jornal, uma loja de vestidos de noiva, um ponto de táxi e uma lanchonete. Mas não tem um Ilaudo, de modo que o pedaço continua meio fodido. O lixo é o de menos. Os mal-encarados vendendo celulares, baterias e até sapatos usados, também. O pior é a fedentina, na opinião do Antonio do Nascimento, jornaleiro. "É tanto cocô de gente que, quando eu abro a banca, só torço pro vento soprar pra outro canto. Se eu tivesse dinheiro fazia o que o Ilaudo fez." Já o taxista Robson de Carvalho jura que não é desfeita, mas considera as girafas do Ilaudo um horror. "Pra quem olha daqui elas tapam a Estação, uma das poucas vistas bonitas do bairro. Eu colocaria elas no Jardim da Luz. Lá tem um monte de árvore, meio selva, é mais adequado." E o português da lanchonete, o Américo Pereira da Costa, há 53 anos no pedaço, é prático – está lá a caneta equilibrada na orelha pra provar. "Veja bem, eu já pago meus impostos, não tenho que cuidar do que não é meu. Do meu eu cuido. Pago um dinheiro a um policial que vem todos os dias vigiar enquanto fecho o bar à noitinha. Daí até a manhã seguinte, fica ao deus-dará." Vai ver é por isso que a estátua da santa que ornamenta a fachada vizinha está presa com cabos de aço à parede.
Do lado de cá, os fantasmas se foram. No pós-Ilaudo, até o proprietário do predinho voltou a ocupar a sala do último andar. E está feliz que só. "Papai, que era imigrante romeno, comprou o imóvel em 1951. Morávamos em cima e embaixo era repleto de lojas. Era bem maior, mas foi sendo derrubado por causa das obras da avenida e do metrô", conta o Luiz Gorodetcki, de 74 anos, representante comercial do ramo de tecidos. Ele cobra R$ 8,5 mil de aluguel por mês do Ilaudo, "e ele nunca atrasou um dia sequer". Aí o Ilaudo subloca o térreo pra uma pastelaria, uma sorveteria e uma lojinha de miudezas, e o primeiro andar prum restaurante a quilo. Arrecada R$ 12 mil, lucro de R$ 4 mil, não tem falcatrua. O calçadão em frente ganhou mesinhas de plástico e é comum ver famílias vindas das compras na 25 de Março lanchando por ali. E tudo é tão limpo que não tem formiga nem pomba bicando farelo. O imóvel continua à venda, mas o Luiz diz que agora, com as benfeitorias do Ilaudo, por menos de R$ 5,5 milhões nem abre conversa. "Esse rapaz é um tesouro", ele diz baixinho. "Trabalhador, dono de boas intenções e bom coração. Daria um grande vereador." O Ilaudo ri encabulado e sacode a cabeça. "Longe de mim, patrãozinho."
A verdade é que o Ilaudo, com o seu "fui fazendo", conquistou uma rede de solidariedade na região, particularmente entre os colegas comerciantes da Rua Mauá. Dizem por lá que o Ilaudo é sujeito homi. E isso não tem a ver com o fato de ele ser macho de usar calça branca agarrada e sapato bico fino preto e pintar as unhas com esmalte incolor. Tem a ver com o fato de poderem contar com ele. "Se um em cada três de nós fosse igual o Ilaudo, o mundo tava salvo", diz o Francisco Lemos, eletricista da rua. Igual a ele tem o Alemão da banquinha de relógios, que dá ração pros cinco vira-latas e um pit bull que o Ilaudo amocozou junto das girafas. Ou o Neguinho do Apoio, que, de porrete na mão e sentimento de PM na alma, patrulha a área contra ataques de trombadinhas e pichadores. Aquele é o mundo do Ilaudo. Aos 41 anos e 22 de São Paulo, ele nunca botou os pés na Avenida Paulista, na Oscar Freire ou no Parque Ibirapuera. Tem fetiche pelo Museu da Língua Portuguesa, mas nunca ultrapassou o portão. "Não dá tempo. Preciso trabalhar e, nos últimos tempos, cuidar da passarela", explica. Quem não gosta muito disso é a Sueny, mulher do Ilaudo há oito anos, mãe do filho mais novo dele, o Felipinho, de 20 dias. A família mora numa quitinete na Rua General Osório, onde o Ilaudo só pode ser encontrado das 9 da noite, quando chega, janta, se banha e vai pra cama ao final do Jornal Nacional, às 6 da manhã, quando acorda, toma um café e sai. "Às vezes digo pra ele: ‘Ô, paizinho, leve logo o colchão pra passarela, porque só falta tu dormir lá’", conta a Sueny, fanfarrona, às gargalhadas.
E sabe que Ilaudo até já pensou nisso? Principalmente depois que numa madrugada recente quatro camaradas estacionaram um caminhãozinho no calçadão e, se dizendo os donos das girafas, as levariam embora. Alertado por celular pelo Bigode, o vigia que ele contratou a R$ 1.000 por mês pra cuidar da passarela à noite, o Ilaudo correu até lá. "Não liberei as girafas, não. Pedi prova de que eram os proprietários. Foto, recibo... Não apresentaram nada, não liberei. No dia seguinte chumbei as bicha no chão." Situação parecida já tinha ocorrido quando um fiscal da Prefeitura chegou dizendo que tudo aquilo era irregular – grade, muro, jardim, girafa – e que o Ilaudo ia ter que destruir. "Destruo sim, patrãozinho. Mas o senhor me deixe nome completo e número da funcional. Porque quando o lugar voltar a ser o inferno que era e os pessoal reclamar, eu vou precisar dizer quem foi o responsável." O fiscal achou por bem não fuzilar a própria reputação e foi-se embora.
A manutenção da "passarela", que é como o Ilaudo chama todo o complexo, lhe custa R$ 2.000 por mês. Fraco nas exatidão, como diz, mas forte nas invenção, ele construiu um pequeno puxadinho pegado à avenida e alugou como salão de beleza. Pode isso, Ilaudo? "Fui fazendo, né, patrãozinho? A causa é boa", ele ri. Do aluguel do salão, R$ 1.500, ele tira parte do custo da passarela e inteira do próprio bolso.
Na última quarta-feira, apresentei o conto de fadas do Ilaudo ao subprefeito da Sé, o Alcides Amazonas. Ele só conhecia as girafas de vista, mas, há 15 dias no cargo, não fazia ideia se ali rolava forró ou funeral. Ficou feliz de ouvir a história toda. Disse que o Ilaudo é um exemplo de cidadão. Nos oito distritos sob a administração do Alcides circulam 3 milhões de pessoas por dia, há 14 estações de metrô e 431 mil habitantes. Meio furibundo, ele afirmou que acha triste ter que varrer a Praça da Sé dez vezes por dia e mais triste ainda que só 23 das 182 praças e áreas verdes da região sejam adotadas formalmente por empresas, naquele convênio em que se pode cravar uma plaquinha de propaganda sobre a grama. No Bom Retiro, distrito do Ilaudo, nenhuma das 18 praças e áreas verdes é adotada. "É claro que é preciso seguir alguns critérios para se fazer isso. De qualquer maneira, aprovo a iniciativa do Ilaudo. Vou fazer uma visita, convidá-lo a formalizar a situação na passarela e lhe dar as felicitações pela consciência cidadã." Felicitação começa com F, mas o Ilaudo diz que está aguardando com toda a franqueza do mundo.

Silicone & filosofunk


Não precisava ser Mozart, mas tinha que escolher 'Beijinho no Ombro' para uma prova de filosofia?

12 de abril de 2014 | 16h 01

Sérgio Augusto
Não foi bem um factoide, pois de fato aconteceu, mas a palavra hype bem se aplica ao destaque que na mídia lhe deram.
Gostosa chic? Agora a funkeira considera assumir uma forma menos calipígia - Adriano Damas
Adriano Damas
Gostosa chic? Agora a funkeira considera assumir uma forma menos calipígia
Há dias, o professor de filosofia de uma escola de ensino médio do Distrito Federal não só enfiou numa prova a musa do funk carioca Valesca Popozuda como referiu-se à cantora como uma "grande pensadora contemporânea". O vazamento do que em princípio parecia uma inconsequente pegadinha escolar incendiou as redes sociais, gerando protestos em cadeia contra o professor e inflamadas críticas à qualidade do ensino no País e à inanidade das músicas da esteatopígia funkeira. Além de desproporcional, o alarido motivou uma sucessão de equívocos, típica dos debates vai da valsa estrumados pela internet.
Nosso ensino é sabidamente fuleiro; é possível que Antônio Kubitschek, o pivô da celeuma, não seja uma sumidade, mas uma pegadinha só não o desqualifica como professor. Se é que podemos chamar de pegadinha a pergunta que ele propôs aos seus alunos na Escola de Ensino Médio 3 de Taguatinga:
"Segundo a grande pensadora contemporânea Valesca Popozuda, se bater de frente: 1) é só tiro, porrada e bomba; 2) é só beijinho no ombro; 3) é recalque; 4) é vida longa".
(A resposta correta é a primeira. Quem não conhecia a letra do funk Beijinho no Ombro, sucesso da ex-estrela da Gaiola das Popozudas, quebrou a cara.)
Detalhe importante: essa era a 11ª das 12 questões da prova bimestral de filosofia preparada pelo professor Kubitschek. As demais, segundo o testemunho de um de seus alunos, Gabriel Guilherme, versavam sobre ética, moral e outras questões genuinamente filosóficas, derivadas de assuntos abordados em aula e na literatura didática indicada no curso. Ou seja, ninguém, presumo, foi reprovado por desconhecer o repertório musical da Popozuda. Eu mesmo, ex-estudante de filosofia, só no araque teria marcado a resposta correta. Conheço Sócrates, Platão & Cia., mas em funk sou um ignorantaço. Aprendi a cantar Woke up this Morning de tanto ouvi-lo nos créditos da Família Soprano, mas devo estar confundindo funk com hip hop.
Como cantora e compositora, Valesca Reis Santos, 35 anos de idade e 106 cm de balaio, não vale os 550 ml de silicone que injetou em cada nádega para fazer jus ao apelido e construir uma imagem diferenciada. "Qualquer problema com ele [o avantajado buzanfã] afeta diretamente minha carreira", justificou-se ao segurá-lo por R$ 5 milhões, alguns anos atrás; valor a ser zerado caso ela leve adiante a ideia de retirar a prótese e assumir uma nova estampa, menos opulenta, calipígia, e menos brega, conforme anunciou no meio da semana. Menos brega vai ser difícil.
Suas músicas – alguns títulos: Late que eu Tô Passando, Agora eu Sou Solteira, Agora eu Virei Puta, Quero te Dar – são de uma indigência atroz, cheias de estribilhos monossilábicos (se, se, se, eu, eu, eu, só, só, só, dá, dá, dá, tô, tô, tô), típicas da gagueira funk, e acafajestadas provocações ("late, late", "fica de quatro"), típicas de quem se orgulha de encarnar o papel de "cachorrona".
Gozadora, sim; pensadora, é pilhéria.
O professor Kubitschek nega que estivesse caçoando dela, que sua única intenção era provocar entre os alunos "uma discussão sobre a formação de valores na sociedade" e pensar "no papel da imprensa que gosta de sensacionalismo" e só vai à escola "quando o assunto é ruim". Se seus pupilos demonstraram conhecer mais o funk de Valesca do que a ética socrática e outras questões filosóficas abordadas no exame, a inversão de valores na sociedade requer mesmo uma atenção especial do professor e redobrada vigilância da imprensa. Justiça se faça: quem desta vez armou o auê foi o Facebook, foi o Twitter, não a mídia impressa, que apenas correu atrás da repercussão.
Num bom exame de filosofia não há lugar para múltiplas escolhas. Reflexão, a matéria-prima da filosofia, não combina com gincana ou jogos de salão. A restrição é válida até para perguntas mais, digamos, didaticamente relevantes. Como esta, por exemplo: "Segundo o grande pensador Hegel, as ideias que revolucionam o mundo avançam: 1) sempre celeremente; 2) atrás dos canhões; 3) impregnadas de ódio; 4) a passo miúdo".
No entanto, permitido o intermezzo galhofeiro, por que não dar uma chance a outro tipo de música? Não precisava ser Mozart, nem ter alguma conotação filosófica (como a marchinha "existencialista" Chiquita Bacana), mas escolher Beijinho no Ombro foi, como diria Valesca, de f(*%#$@*)oder.
A própria gluteofilosofunk achou a polêmica "uma bobagem". E foi. Valesca também acertou ao levantar a hipótese de que nada teria acontecido se o professor Kubitschek tivesse escolhido "um trecho de qualquer música da MPB ou até mesmo de qualquer outro gênero musical". Mas errou ao calcular que começando a ler Machado de Assis, como prometeu fazer, poderá tornar-se um dia "uma pensadora de elite" – sem silicone nas lândrias, esbelta, menos espalhafatosamente vestida. Para quê? Ainda se fosse para desafiar Marilena Chauí a cantar Agora eu Virei Funkeira.
P.S. A resposta certa ao teste do Hegel é a quarta.

‘Gasto público deveria ser limitado por uma lei’, diz Armínio Fraga


Na avaliação do ex-presidente do Banco Central, medida abriria espaço para a reforma tributária

13 de abril de 2014 | 3h 00

Alexa Salomão e Ricardo Grinbaum - O Estado de S. Paulo
Armínio Fraga - Sérgio Castro/Estadão
Sérgio Castro/Estadão
Armínio Fraga
Há poucas semanas, o senador Aécio Neves, candidato dado como certo para disputar a presidência pelo PSDB, oficializou a escolha do economista Armínio Fraga para o posto de coordenador econômico de sua campanha. Nesta série de entrevistas que ouve economistas integrados ao debate político e, não raro, ligados aos partidos, Fraga é o mais engajado. Muitos já o consideram ministro da Fazenda, caso o PSDB ganhe a eleição. Ex-presidente do Banco Central, Fraga diz que ainda não se aprofundou no estudo das propostas, mas o esboço tem pilares claros: fortalecer a política fiscal, ajustar a inflação para o centro da meta, desengavetar a reforma tributária, entre outras medidas que podem exigir ajustes nem sempre populares. Mas ele acredita que o importante é antecipar o que deve ser feito, sem "populismo" eleitoral. "O custo de tomar medidas impopulares é muito menor do que o de não tomar", diz na entrevista que segue.

Como o sr. vê a economia hoje?

Estou vendo um quadro que se quantifica com poucos números. Um crescimento baixo, já entrando pela quarto ano, e a sinalização de que o ano que vem também pode ser difícil por causa dos problemas que estão se acumulando. Ao mesmo tempo, há uma inflação alta, em torno de 6%, já há bastante tempo, mas reprimida. A inflação real anda mais alta. Talvez entre 7% e 8%. Esse não é um quadro bom. Há também o fato de que o déficit em conta corrente do Brasil caminha para 4% do PIB no momento em que os Estados Unidos segue para a normalização da taxa de juros e, eventualmente, a China deve desacelerar. Isso também é uma questão, especialmente porque a taxa de investimento do País não está aumentando. Agora está acontecendo um movimento no mercado - que eu diria ser técnico, com recursos mais de curto prazo, indo para um lado ou para outro, mas isso não deve trazer um grande conforto. O quadro geral ainda não é tranquilo lá fora. Olhando aqui para dentro no Brasil, hoje o governo concede 60% do crédito, que incorpora ainda repasses do BNDES. Há não muitos anos eram 40%. É um modelo testado por nós, testado por vários outros países que tende a não entregar o resultado que se quer - tanto do ponto de vista de produtividade, da qualidade das decisões de crédito e financiamento que são tomadas, quanto do ponto de vista do risco. O exemplo radical são os Estados Unidos com as grandes do mercado de hipotecas, Fannie Mae e Freddie Mac (empresas privadas, mas com propósito público, que eram implicitamente garantidas pelo governo), que tiveram uma participação fundamental na bolha - uma senhora bolha. Mesmo nos países mais maduros, essas lições permanecem válidas. Há outros temas, de caráter mais setorial. Energia está no topo da lista. Estamos correndo um risco muito grande nessa área. Os dados, infelizmente, vêm piorando. É grave a questão. O setor de petróleo é outro bem conhecido. À Petrobrás foi designado o papel de grande locomotiva do setor, mas, ao mesmo tempo, o governo vem asfixiando o fluxo de caixa da empresa. Para não falarmos de outras intervenções, como o mix de política industrial, política setorial também. Enfim, que não vem dando resultado. Talvez fosse até previsível. Em paralelo, estamos vivendo a crise no setor de etanol - o que é uma tristeza. O setor tem tudo para ser um líder global. Esse é um setor menos antipático ao meio ambiente do que o do petróleo, que o dos combustíveis fósseis. Estamos na situação singular de subsidiar o setor de combustíveis fósseis - algo que vai na contra mão da recomendação técnica. A determinação é taxar e não subsidiar, porque esse setor produz um efeito negativo para a sociedade. Esse é o típico caso em que se recomenda fazer o oposto do que estamos fazendo. A infraestrutura também é uma área que apresenta muitos desafios. Nesse caso, a visão é que temos uma moeda com dois lados. Por um lado, a infraestrutura virou um gargalo seriíssimo em praticamente todas as suas dimensões - e, portanto, é uma barreira ao crescimento. Mas ela deveria ser uma fantástica oportunidade. Eu acho que se os futuros governos acertarem a mão nas questões regulatórias e em outras que influenciam esse setor, eu penso que ele pode virar ao nosso favor. Mas, nesse momento, é um problema. O resumo é o seguinte, pensando de uma maneira mais esquemática: a minha leitura é que hoje nós temos uma macroeconomia que está perdendo as âncoras. A área fiscal perde credibilidade, o chamado tripé certamente está bem fragilizado. A microeconomia, que deveria funcionar mais livre, apostando na concorrência, sofre por estar muito amarrada - e amarrada na parte que cabe ao governo. Portanto, temos dificuldades em buscar mais produtividade. Subindo ainda mais um nível nesse esquema, penso que isso tudo espelha uma grande crise no Estado - um Estado que vem continuamente crescendo, mas não tem sucesso em entregar aquilo que se espera dele. A qualidade da educação avança lentamente. A população se queixa muito dos serviços de saúde. Hoje um tema absolutamente vivo e importante é o da segurança. No geral, seria preciso atacar essas questões. Claro que ninguém ainda inventou uma fórmula para fazer transplante de Estado - essa é uma questão de prática. São os governos que vão, aos poucos, melhorando ou piorando as instituições de um país - e o governo precisa cuidar disso melhor. Não há exemplo de país que tenha se desenvolvido sem um Estado bom. Pode ser pequeno ou médio. Eu sou cético em relação a ideia de que um País como nosso pode e se desenvolver com um Estado grande demais. Um país precisa crescer, precisa distribuir também, com certeza, mas eu não vejo o mundo social como um jogo de soma zero. É preciso balancear as coisas. Mas eu vejo o nosso modelo falhando, tanto pelo lado da distribuição, que ainda é muito ruim, como pelo lado do crescimento. Diga-se de passagem, não acho que os dois sejam incompatíveis. Ao contrário. Mas é preciso estruturar o funcionamento do Estado para que ele atinja esses objetivos - e nesse momento, eles não estão sendo atingidos. 


O que, na sua avaliação, pode acontecer por causa dos problemas que descreveu?

Eu vejo várias dimensões, como já mencionei. Algumas delas mais dramáticas, outras menos. Eu colocaria no topo da lista hoje a questão da energia. Na medida que a água atingir um certo nível - e já estamos quase lá - provavelmente será preciso organizar um pouco as regras do setor. A política de subsidiar ou reduzir de maneira artificial o custo da energia aponta na direção de mais escassez lá na frente. Não ajuda. Há que se tomar muito cuidado. Se nós tivermos o azar de as chuvas continuarem fracas, será preciso tomar providências o quanto antes. Isso é delicado porque o tema é facilmente misturado com a política - mas é inevitável que seja assim. Faltou planejamento. Esse setor deveria trabalhar com flexibilidade para aguentar não um ano de seca, mas três. Essa era a regra dos especialistas. A energia é o caso em que poderia haver um problema maior - os outros casos não são tão dramáticos, mas são igualmente sérios. O governo vem esticando a corda em várias áreas da chamada macroeconomia. Chega um ponto em que o cobertor fica curto. Eu penso que chegamos a esse ponto. O caso da Petrobrás é um exemplo. Descapitalizaram a empresa. O governo precisa arrumar recursos de outra maneira. Isso gera subsídios. No setor elétrico, por exemplo, os custos elevados de sustentar esse modelo, as estimativas variam, mas os consumidores já estão sentindo o custo das termoelétricas. É grave. O custo é grande. Então: de um lado a inflação preocupa, do outro lado, o impacto fiscal preocupa. Assim, há uma sensação geral de perda de confiança que vem paralisando bastante o investimento. Esse é um caminho mais lento em direção ao futuro - e lento numa direção ruim. Estamos em um ano de eleição. Tipicamente, em anos de eleição, os governos são mais flexíveis na condução das políticas. Aconteceu em 2010. Só que, neste ano, o governo já entra com dificuldades. O saldo do primário já vem sendo atingido com receitas não recorrentes e alguns artifícios de natureza contábil, mas é preciso dar uma resposta mais clara, até para que, mais adiante, seja possível retomar a trajetória de queda da taxa de juros, que voltou a níveis muito elevados. Essa, ao meu ver, é uma boa forma de se pensar o que precisamos num regime macroeconômico. Eu venho dizendo, já há algum tempo, que o Brasil tinha que ter como objetivo juros de BNDES para todo mundo. O Pérsio Arida (um dos economistas que idealizou o Plano Real), numa palestra recente, sugeriu que o conjunto das políticas macroeconômicas se voltasse para atingir esses objetivos também. Ou seja: ter juros mais normais no Brasil. Esse é um quadro que sugere o esgotamento de um modelo. Já vivemos isso na nossa história. Modelos se esgotam. Isso é percebido por analistas, mas, normalmente, se encontra muita dificuldade na hora de mudar. Os modelos, por piores que sejam, têm sempre ganhadores - e os ganhadores se agarram aos modelos e procuram evitar as mudanças. É uma questão de economia política. Isso aconteceu conosco na década de 70, quando o Brasil procurou esticar o modelo que já não era capaz de entregar resultados. Deu no que deu. Naquela época foram crises de balanço de pagamento, inflação e tudo mais. Não quero dizer que a situação é igual. Mas é fato que o Brasil hoje está vulnerável e precisa mudar. Essa segunda dimensão de crise é mais difusa porque são vários fatores agindo ao mesmo tempo. E ainda temos a possibilidade de 2015 ser ainda um ano com baixo crescimento. Há tensões políticas e sociais. São quadros complexos, mas que tem no fundo essa linha - é preciso mudar.

Levando em conta essas questões de curto prazo, o que o governo precisa fazer na largada em 2015 para resolver os problemas?

Cabe uma resposta bem ampla - talvez mais ampla do que possamos detalhar aqui. Eu começaria com o lado macroeconômico. Começaria com um reforço muito transparente das bases do tripé. Deveríamos ter metas claras e transparentes para a contabilidade do saldo primário. As metas deveriam ser plurianuais. Haveria também um comprometimento com a normalização dessa situação de inflação reprimida e, ao mesmo tempo, a busca de convergência para a meta. Se as duas ações são coerentes, elas se reforçam. Nos últimos anos, o Brasil viveu momentos difíceis em que a política fiscal era expansionista, a política de crédito público - que é muito relevante aqui no Brasil - era também expansionista e o Banco Central tentava, do seu lado, enxugar a demanda e segurar a inflação. Eu penso que esse reforço traria um grau de coerência. Racionalizar a atuação dos bancos públicos faria parte dessa equação. Do lado macro, isso ajudaria a reduzir o prêmio de risco que o Brasil paga. Quando o Brasil paga mais, todas as empresas que estão aqui pagam mais, todas as pessoas que vivem aqui pagam mais também. É algo muito direto. No lado que nós podemos chamar de micro, eu penso que há necessidade de abrir mais frentes. Na infraestrutura, ao meu ver, seria necessário um trabalho detalhado em cada área, repensando o que vem sendo feito, procurando estimular o debate e o entendimento sobre porque as coisas não estão acontecendo. Penso que há dimensões que são de arquitetura - do desenho mesmo. Mas tem também o lado da execução. É preciso repensar o modelo com o setor privado em diferentes áreas. Em vários casos, pode caber privatização. A agenda da infraestrutura é muito ampla - inclui portos, aeroportos, ferrovias, rodovias, energia, telecomunicações, saneamento. Inclui praticamente tudo da nossa infraestrutura. Mas existem vários outros temas. O Brasil precisa, urgentemente, pensar numa reforma tributária que simplifique o sistema. Isso envolveria, essencialmente num primeiro momento, todo o aparato de tributação indireta. ICMS. IPI. Organizar e simplificar seria muito bom. Cabe mencionar que, ao meu ver, o crescimento da carga tributária precisa ser limitado. Para isso, volto um pouquinho ao lado macro - o Brasil precisa também adotar um limite para relação gasto público e PIB.

Por lei?
Por lei ou por decisão de governo, num primeiro momento. Mas é preciso trabalhar para isso. Hoje, para um País de renda média, nos temos uma carga tributária muito elevada. Isso é contraproducente. Isso está dentro daquela ideia de que a economia precisa continuar trabalhando para melhorar a distribuição de renda desse País - que é terrível ainda - mas, ao mesmo tempo, precisa também criar condições para que a taxa de investimento também aumente, para que o País seja mais produtivo. São muitos os assuntos nesse mundo que chamo de micro. É muito trabalhoso. Mas não creio que seja um bicho de sete cabeças. Dá para fazer se tivermos uma agenda e também pessoas capazes ocupando posições chaves. É um desafio enorme de RH também.

Qual seria o teto de crescimento do gasto público?

Os gastos teriam que crescer igual ou abaixo do PIB. E na trajetória que está os gastos crescem mais que o PIB...
Há muito tempo - e isso é natural. A sociedade tem demandas. Por mais que tenha crescido e melhorado muito nos últimos 20 anos, o Brasil ainda é um País carente. Mas é fato que se você fizer uma pesquisa vai identificar que a sociedade quer tudo. Mas isso é uma grande ilusão. É preciso pensar a coisa de uma forma dinâmica. Instantaneamente, você pode até tentar alocar mais. Mas olhando a trajetória para frente, esse não é o melhor modelo. É um trabalho difícil, mas politicamente importante. Precisa ser feito com transparência. É típico em momentos de eleição a gente ouvir propostas em que a conta não fecha. Dizem: eu quero 10% para cá, outros 10% lá, mais 10% aqui. Você vai fazer a conta e não fecha. E vem: vou ter de aumentar a carga tributária em tantos pontos do PIB. Sinceramente, para um País como o nosso, é difícil imaginar como isso possa acontecer. É um tema difícil. Eu não sou político. Vejo apenas a necessidade de um debate honesto. Não populista.

Qual seria o tamanho do esforço fiscal?

Acho que será preciso fazer um levantamento da situação. Não dá para arriscar um número agora. Mas acho que o Brasil precisa de uma meta positiva para o saldo primário, talvez maior um pouco do que ela é hoje, nem que seja um tempo. E essa meta deve ser plurianual. Essa parte é menos difícil. O tema do crescimento do gasto é complexo. Não podemos nos iludir. Mas esse tem que ser um objetivo a perseguir com rigor e, se for necessário, com a proposição de reformas também. Não tenho um programa pronto aqui para discutir.

Em que campos as reformas?

Eu penso que em todas as dimensões do gasto. Antes de tudo, é preciso mapear para, depois, tomar as decisões. Hoje eu presto uma assessoria ao senador. Estudo e acompanho o que acontece no Brasil, mas continuo dedicando uma parte do meu tempo à minha empresa. Mais adiante, se ocorrer uma mudança, e eu participar, com a eleição do senador Aécio, seria o caso de eu e muitos outros refinarmos essas questões. Mas elas estão na categoria de questões polêmicas que se prestam ao populismo que, ao meu ver, não agregam nada à qualidade da discussão e ao próprio eleitor. Eu estou sendo um pouco cuidadoso porque acho que é impossível negar a importância disso. Mas ir além é perigoso.

O próprio Aécio falou que está disposto a tomar medidas impopulares...

Sim, falou. Mas o que ele não falou - e eu não tenho procuração para falar por ele - é que o custo de tomar as medidas por ventura impopulares é muito menor do que o de não tomar. As pessoas têm de cair na real.



Na prática, como é possível reduzir o gasto público com tanta demanda reprimida?


É questão de dar ao orçamento a importância que ele merece num ambiente democrático. É preciso incluir tudo no orçamento - todos os subsídios - e discutir o que dá para fazer e o que não dá para fazer. A sociedade quer ou não aumentar a carga tributária? Que custos e benefícios isso traria? A questão é decidir. Não é possível transformar o Brasil instantaneamente numa Suíça ou num Estados Unidos. Dá para chegar lá, mas demora um pouco e de trabalho.

A como fica a distribuição de renda? Uma das críticas é que isso implicaria cortes em programas sociais...

Não creio. Se você olhar os números vai ver que o bolsa família não consome tanto dinheiro assim para o tamanho do resultado que gera. Acho que precisamos discutir o que fazer além do bolsa família. O próprio senador Aécio Neves tem feito propostas nessas direção - inclusive pensa em transformar em lei. Seria ótimo para deixar claro à população que esse é um tema importante. Mas precisamos ir além. As pessoas querem ter qualidade vida, mesmo quando têm uma vida difícil. Mais do que isso - querem trabalhar, querem que seus filhos se qualifiquem para ter uma vida digna. Temos que usar o bolsa família como uma base. Todos os candidatos sabem disso. Às vezes fazem ameaças: dizem que vão acabar com o bolsa família. Isso é um absurdo. É uma mentira. É preciso analisar melhor para onde o dinheiro público está indo. O Gustavo Franco fala com frequência que há no Brasil o bolsa empresário. Ele coloca isso de uma maneira muito gráfica, muito boa. Isso precisa ser discutido. Sempre. Agora, antes da eleição, e depois também. É uma carência no debate: para onde vai o dinheiro? Qual o impacto distributivo de tudo isso? É um ótimo tema para encarar de frente.

E de onde o sr. acredita que viria o crescimento econômico?

Esse é outro ponto bom. É uma bela pergunta: de onde vem o crescimento? É como aquela pergunta das criancinhas: de onde vem os bebês? Certamente, o crescimento não vem com as cegonhas. O crescimento vem de mais investimento em capital, em educação e de mais produtividade em geral. Ou seja: vem de uma economia que funcione melhor. E quem é o grande participante da economia? O Estado. Então é preciso que o Estado também faça a sua parte. Mas isso não querer dizer que seja preciso aumentar o gasto público. Aumentar o gasto pode gerar demanda no curto prazo. Mas demanda não basta. É preciso resposta da oferta: mais produção, mas emprego, mais investimento. O crescimento depende do casamento entre demanda e oferta. Hoje fica claro que o governo fez uma aposta hiper keynesiana na demanda. De novo, eu insisto: claro que deve haver demanda. Nenhum empresário vai investir se não acreditar que vão comprar os produtos deles. Mas precisa haver oferta - e é isso que está falando no Brasil. Não falta demanda. A demanda continua lá.

Estabilizando o Brasil, quando o crescimento poderia ser mais robusto?

Rápido. Um ano. Dizer em quanto é chutar um pouco, mas um País que tem uma renda per capita inferior em 20% a renda per capita dos mais ricos deveria poder crescer durante vários anos a 4%, 5% ao ano, mesmo com a demografia piorando. Temos que nos lembrar que a taxa de crescimento da força de trabalho caminho para zero ao longo de relativamente pouco tempo. No passado, só daí vinham uns 3 pontos porcentuais de crescimento. Essa nova realidade sugere que um crescimento sustentável de 4 a 5% seria excepcional. E acho também que a China vai cair para algo assim. Havia um certo sonho aqui de que o Brasil poderia crescer 10% ao ano - mas é bem mais difícil. Nem sei se é viável numa sociedade como a nossa, que tem uma preocupação muito grande e correta com o social. A China tem uma preocupação com o emprego, mas só um regime autoritário poderia fazer o que eles fizeram: reproduzir um modelo de desenvolvimento sem rede de proteção social - algo altamente indesejável do meu ponto de vista. Mas aqui no Brasil há uma certa inveja do que eles fizeram. Eu não teria inveja, não. Acho que estamos bem. É só arrumar a casa.

O sr. mencionou privatizações. Há setores em mente?

Nenhum especificamente. Mas penso que todos os da infraestrutura se oferecem bem para esse caminho - o que o governo chama de concessões. É a mesma coisa. Eu não tenho medo de usar a palavra que acho correta. Mas praticamente todos da infraestrutura cabem em regimes de concessão, em parcerias público privadas, sem perda de controle do regramento que cabe ao Estado em vários desse setores. Não creio que isso seja incompatível com esse desenho. Como esse desenho é do presidente Fernando Henrique, ficou hibernando um tempo, e agora voltou. É ótimo que tenha voltado.

No evento de aniversário do Real, o ex-presidente Fernando Henrique disse que o Plano Real é o início de um processo que foi interrompido. O espírito é retomar àquele processo?

É preciso ter na cabeça a sequência do que aconteceu. O Plano Real tirou o País do caos. Não havia chance para nós na bagunça da hiperinflação. Depois veio a reforma do Estado. O Estado no Brasil fazia coisas demais. Estava envolvido em siderurgia, fertilizantes, tinha presença maciça no setor financeiro, com bancos estaduais. Nada daquilo vinha dando certo. Houve essa guinada e, na época, a decisão de Fernando Henrique foi focar em saúde e educação especificamente. Nas outras, ter uma presença indireta - sempre que possível, acreditando na concorrência. Eu penso que não há nada mais saudável do que a concorrência. Os empresários não querem moleza. Querem um ambiente previsível, limpo, para concorrer, inovar, investir e assim por diante. Hoje eles são meio reféns da situação e isso não é o ideal. Depois da guinada, as coisas foram evoluindo. Houve a chegada do PT ao poder - num primeiro momento, uma excelente surpresa. Agora, de uma certa maneira, estamos retrocedendo. O presidente Fernando Henrique, naquela comemoração, fez menção a um ponto claro, como aliás é do feitio dele, sobre a atuação do governo. Usando minhas palavras, mas colocando mais o ou menos o que ele disse: a fase de uma presença e de atuação do governo em vários desses pontos, saúde e educação, por exemplo, já alcançou quantitativamente um tamanho bom. Mas agora chegou a fase da qualidade. O Estado precisa melhorar a qualidade dos serviços que entrega para a população. Além desses dois, o tema da segurança é um dos mais importantes e o tema da regulação, idem. Tem muita coisa a ser feita do ponto de vista qualitativo. Foi o que ele colocou lá e eu penso que é uma boa maneira de definir o que é preciso fazer.

O que fazer com a política do salário mínimo, que começa a ser revista no início de 2015?

É outro tema que precisa ser discutido. O salário mínimo cresceu muito ao longo dos anos. É uma questão de fazer conta. Mesmo as grandes lideranças sindicais reconhecem que, não apenas o salário mínimo, mas o salário em geral, precisa guardar alguma proporção com a produtividade, sob pena de, em algum momento, engessar o mercado de trabalho. A política do salário mínimo tem tido impactos relevantes. É um tema muito complexo e polêmico. Não tenho uma receita pronta. Estou prestando uma assessoria ao senador Aécio Neves, mas não estou entrando neste nível de detalhe. Outras perguntas que chegam com frequência é sobre como fazer a reforma tributária, o que fazer com as desonerações, o que fazer com os preços congelados - vão liberar de uma vez, vão fazer gradualmente? São questões da maior importância. Quem assumir o governo vai ter de pensar em tudo isso. Mas o tema é polêmico. Eu gosto muito de analisar as coisas antes de emitir uma opinião. É opinião antiga, de gente que faz conta, que o vínculo do salário mínimo com a previdência tem um custo. Como ocorre em todos os outros temas, é preciso pensar em custos e benefícios. Nesse ponto, entramos no terreno da política, onde não me sinto à vontade para entrar, especialmente neste momento. É fácil ser mal interpretado.

O sr. mencionou que o importante é ter um ambiente favorável aos negócios. Estão pensando também na reforma trabalhista?

É outro tema. Não tenho dedicado muito tempo a essa área. Todo economista que fala de reforma no Brasil cita as reformas tributária, trabalhista, previdenciária. São temas antigos. Eu não teria uma proposta. O Brasil, bem ou mal, está com o desemprego baixo. Talvez não seja um tema tão urgente quanto o da reforma tributária.

E além da reforma tributária, há outra reforma prioritária?

Sim. Toda a política externa do Brasil precisa ser repensada. Essa estranha predileção por parcerias e aproximações com regimes autoritários, como Cuba e outros exóticos, não tem trazido nenhum benefício ao Brasil. Não quero dizer que o Brasil não precisa ter um diálogo com todo mundo, com a Venezuela, por exemplo. Mas o Brasil precisa se engatar nas grandes locomotivas mundiais. Esse é um ponto muito importante. Já não é de hoje que vejo com muita preocupação a posição do Brasil no ranking do Banco Mundial chamado Doing Business. É um ranking de ambiente de negócios e o Brasil está lá embaixo na classificação. Não me lembro exatamente a posição, mas sei que ele está lá atrás. Eu penso que o Brasil poderia tratar de todas essas dimensões.

Em termos de política externa, o que deveria ser feito?

Como a maioria dos economistas, tenho muita simpatia por acordos multilaterais. Mas esse front não tem avançado. Quem sabe agora, com o embaixador Roberto Azevêdo (diplomata brasileiro, diretor-geral da Organização Mundial do Comércio, a OMC), as coisas comecem a andar. Ele começou muito bem. Mas é uma tarefa muito difícil. O Brasil precisa estar preparado para entrar nela e ter, claro, do outro lado, uma costura igualmente aberta. A própria postura dos Estados Unidos tem sido difícil em temas como o setor agrícola e o antidumping. Esse é um caminho. Mas, na prática, em paralelo à OMC, a maioria dos países tem feito acordos bilaterais e regionais. O Brasil precisa avançar nesse direção. Primeiro, imagino, com a Europa, que já está pipeline (expressão em inglês que significa roteiro) há algum tempo. Eventualmente, poderíamos pensar algo com Estados Unidos e China. Talvez seja necessário repensar o Mercosul também. Especialistas acreditam que o Brasil, a essa altura, poderia transformar a união aduaneira num tratado de livre comércio. Tenho simpatia pela ideia.

O sr. é a favor da autonomia do Banco Central?

Sou. E sou porque, na prática, é o que os governos tendem a fazer na maior parte do mundo. Eu gosto de usar a nomenclatura "autonomia operacional". Ou seja: a definição das metas ficaria com o governo e, claro, deveriam ser metas de longo prazo para não ficarem expostas aos ventos do círculo político. Mas o governo preservaria esse direito. Isso significa ter mandatos para os dirigentes do Banco Central. Claro que se houvesse problemas na atuação, se não estiverem cumprindo os seus objetivos, o governo, no limite, poderia pedir ao Senado a remoção de quem for, inclusive do presidente. Esse é um sistema bem testado e requer um Banco Central transparente. Mas, hoje, ninguém questiona isso. Eu passei pelo Banco Central e posso garantir: uma das grandes vantagens do modelo de metas da inflação é justamente a interação com os analistas, os economistas, os consultores que trabalham, no fundo, de graça para o Banco Central. O Banco Central apresenta suas ideias, explica o porque de suas ações e recebe as críticas, que são extremamente úteis. Funciona bem. Claro que precisa ser um sistema flexível, no sentido de o Banco Central poder e dever trabalhar para suavizar o ciclo econômico - é uma função clássica - e ser o guardião da estabilidade financeira. Esse seria o desenho. Eu creio que isso deva ser transformado em lei.

Na sua passagem pelo Banco Central, em 1999, o sistema de metas de inflação serviu como uma âncora. Nesse momento de transição, que o sr. descreve como difícil, o sistema de metas pode ser um âncora ou será preciso outra política?

O sistema de metas de inflação é muito bom, mas sozinho não chega lá - é preciso uma âncora fiscal. Foi o que aconteceu naquela época. Lembro muito bem do esforço fiscal, naquele momento muito maior e, em paralelo ao esforço de aumentar o saldo primário, houve também todo um trabalho que desembocou na Lei de Responsabilidade Fiscal. Nós que estávamos no governo na época já procurávamos cumprir. O projeto já havia sido apresentado e aquilo era uma bússola para o nosso trabalho. Sem o fiscal, o sistema de metas teria fracassado. Eu penso que a situação hoje é idêntica nesse sentido. O momento naquela época era mais turbulento, porque havia medo que a inflação voltasse a níveis elevados. Primeiro, as expectativas no início de 1999 eram muito dispersas, depois, muito elevadas, entre 20% e 50%. Nós tínhamos saídos de um ambiente hiperinflacionário, a duras penas. Antes do Plano Real, vários planos foram testados e deram errado. Havia um receito naquele momento: será que vai ser mais um caso como os outros? Felizmente, não foi. Mas foi preciso um esforço fiscal que, aliás, foi anunciado pelo presidente antes da eleição - isso é muito importante. Ele teve a coragem e o bom senso de pactuar isso com a sociedade e, depois, pôde fazer as coisas com toda a tranquilidade. De novo, eu repito o que disse para a situação de hoje: o custo para o ajuste é muito menor que o custo do não ajuste. Naquela época, as projeções para o crescimento do PIB eram menos 4% em janeiro de 1999. Depois, acabou sendo ligeiramente positivo - uma diferença de 4%. Eu sou a favor que as providências sejam tomadas.

Nessa reorganização, como ficam os repasses dos bancos públicos, como BNDES?

Esse é um daqueles temas. Eu penso que o trabalho dos bancos públicos carece de mais análise e transparência. Não existem estudos sobre o que o BNDES vem fazendo há décadas. Eu até conheço o trabalho do BNDES e creio que um estudo seria bastante interessante. Mas o BNDES vem se agigantando, fazendo empréstimos a taxas muito baixas, sem, ao meu ver, uma análise do impacto social desses programas, até para que se possa decidir se vale a pena continuar ou não. Carece de transparência. Minha impressão é que vai ser preciso fazer essa análise - e o papel do BNDES, a médio prazo, será menor. Não há muita dúvida. É preciso dizer que a maioria das atividades não precisa de subsídio. Eu já disse isso. Os empresários precisam ter um ambiente bom para trabalhar, mas não há necessidade de subsidiar. Até acho que os subsídios põem pressão na taxa de juros para o não favorecidos.

Qual seria o papel da indústria?

O papel da indústria é muito importante. É inegável que a nossa indústria vive um momento difícil. O ataque nessa questão precisa ser feito em várias frentes. Toda essa questão do Custo Brasil, da infraestrutura, da questão tributária faz parte da resposta, bem como a integração do País às cadeias globais. Eu penso que as lideranças empresariais - hoje muito bem representadas por pessoas como Pedro Passos (sócio da Natura e Presidente do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial), que vêm revolucionando a maneira de pensar o setor - têm uma visão mais holística da coisa. Mas é inegável, também, que a evolução natural do desenvolvimento leva o setor de serviços a ficar maior do que o da indústria. Não há problema nisso. Às vezes, as pessoas pensam que só é bom o que elas podem pegar, mas não é assim. Só para citar um exemplo: há os serviços de saúde. Tem coisa mais importante do que a saúde? Vai ser natural: com o tempo, o setor de serviços vai ganhar mais espaço. O turismo, o entretenimento, a saúde, a educação. Mas está claro que a indústria precisa de uma atenção. Tem cura. O Brasil é grande. Não tenho medo nessa área, mas vejo muitas dificuldades.

O sr. viveu duas transições na prática - a de 1998 para 1999 e depois o final do governo de Fernando Henrique para o de Lula. Agora está no meio do debate de uma eventual transição. Há comparações entre os diferentes momentos?

Eu vivi outra transição. Fui diretor do Banco Central em 1991 e 1992. Fiz parte da segunda equipe econômica do governo Collor (ex-presidente Fernando Collor de Mello) para criar as condições de estabilização. Foi uma tremenda encrenca aquela época. Eu acho que faz parte do processo de amadurecimento. Se eu puder colaborar, estou disposto. Desde que haja - e no caso do meu relacionamento com o senador Aécio há - um alinhamento muito grande de visões de sociedade, de governo. É uma visão genuinamente progressista e eficiente, que tem capacidade de entregar resultado. Eu fiquei muito contente quando ele me procurou.

E faz quanto tempo?

Eu o conheço há mais de 20 anos. Não foi uma coisa da noite para o dia. Mas a conversa começou em janeiro de 2013 e se aprofundou nos últimos meses. De novo: eu estou mais na estratégia do que na prática. Não faço parte da campanha. No momento, eu não posso e não é isso que ele espera de mim. Mas, eventualmente, se ele tiver sucesso - e eu acredito que terá - eu estou a disposição.

Como sr. está vendo o cenário eleitoral?

Muita água ainda vai correr. Há um clara insatisfação com o que se tem hoje. Há espaço para a mudança. Eu espero que isso aconteça - não vou esconder as minhas preferências que são óbvias a essa altura -, mas penso que seria bom, de qualquer maneira, que aconteça. Eu acredito no debate que acontece pela imprensa, mais no caderno econômico do que no de política, aqui no Brasil. O debate econômico é muito bom. Eu leio os jornais de outros países. O Brasil tem densidade nessa discussão. É preciso que essa densidade seja de alguma utilidade também para o debate político. Isso tudo pode ser muito bom, mesmo que seja o ano em que os governos costumam esticar um pouco acorda para se reelegerem.