segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Crônica de uma morte anunciada - JOSÉ GOLDEMBERG

O Estado de S.Paulo - 17/02


O que está acontecendo com o sistema que produz eletricidade no Brasil lembra bem o maravilhoso romance de Gabriel García Márquez que conta a história de um assassinato premeditado. Acusado por Angela Vicario de tê-la desonrado, o jovem Santiago Nasar é morto a facadas pelos irmãos dela. Toda a localidade fica sabendo com antecedência da vingança premeditada, mas nada salva Santiago do seu trágico destino, anunciado logo na primeira linha do romance.

Mais de 80% da energia elétrica gerada no Brasil se origina em usinas hidrelétricas, nas quais a força das águas movimenta as máquinas que produzem a eletricidade. Elas dependem, portanto, de chuvas regulares e de reservatórios que acumulem a água para ser usada nos meses (ou anos) em que chove menos.

Reservatórios, às vezes, inundam terras férteis ou áreas cobertas com florestas. É preciso que as empresas que constroem as hidrelétricas reassentem a população afetada - alguns milhares de pessoas em geral - e reduzam ao mínimo os impactos ambientais decorrentes da formação dos reservatórios. Há muitos casos em que isso foi feito com sucesso, como em Itaipu. Em outros, como Balbina, os cuidados devidos não foram tomados em tempo.

Sucede que desde 1985, nas usinas hidrelétricas construídas no País, os reservatórios de água foram negligenciados, tornando-se cada vez menores. A razão para tal foi a falta de visão e coragem de sucessivos governos para enfrentar os problemas tanto sociais como ambientais, que não eram considerados prioritários.

Os inconvenientes decorrentes da formação de reservatórios são, de modo geral, compensados pelas vantagens de dispor de eletricidade a milhares de quilômetros de distância do local onde as usinas hidrelétricas estão localizadas, atendendo às necessidades de milhões de habitantes nas grandes cidades.

Há aqui a necessidade de comparar custos e benefícios e como tratar os problemas dos que são prejudicados com as vantagens dos que são beneficiados. Essa é a função do poder público.

A gravidade do problema de negligenciar a formação de reservatórios ficou evidente em 2001, quando chuvas mais fracas quase levaram ao racionamento de energia elétrica, fato amplamente explorado nas eleições de 2002, que levaram o então candidato a presidente Lula e o PT ao poder. Daí a analogia com o romance de Gabriel García Márquez: o mesmo problema poderia voltar a ocorrer - como se fosse uma morte anunciada - se não fossem tomadas medidas adequadas. Os ministros de Energia de Fernando Henrique Cardoso poderiam alegar ignorância, mas não os de Lula e Dilma Rousseff.

No governo Lula o problema dos reservatórios não foi enfrentado - como, de modo geral, todos os problemas de infraestrutura do País - e a solução adotada a partir de 2001 foi gerar eletricidade com gás natural para complementar a geração das usinas hidrelétricas em períodos secos. Essa é uma solução transitória e muito cara, como sabem muito bem os técnicos do setor, por causa do elevadíssimo custo do gás natural no Brasil, razão pela qual usinas a gás podem ser usadas emergencialmente, mas não o tempo todo.

Para piorar a situação, o atual governo tomou em 2012 uma medida claramente demagógica, por meio da Medida Provisória (MP) 579: a de reduzir o custo da contra de luz em 20%. Essa medida foi apresentada como uma espécie de "bolsa eletricidade" para ajudar os mais pobres, mas beneficiou também amplamente os grandes consumidores de energia elétrica no setor eletrointensivo da indústria.

Nesse processo as empresas geradoras de eletricidade - na maioria estatais, uma vez que a privatização promovida pelo governo Fernando Henrique se restringiu basicamente às distribuidoras - foram levadas quase à bancarrota e perderam a capacidade de fazer novos investimentos. Além disso, a confiança dos possíveis novos investidores foi seriamente abalada pelas mudanças regulatórias intempestivas.

O resultado não poderia ser outro, como foi o assassinato de Santiago Nasar amplamente anunciado com antecedência. Bastou chover menos em 2014 para vivermos sob ameaça de racionamento, que exigiu o acionamento de todas as usinas geradoras a gás natural, o que elevou o custo da eletricidade a cerca de quatro vezes o seu custo usual. Até o ano passado o Tesouro pagou a diferença, isto é, todos os brasileiros - mesmo os que não consomem eletricidade - pagaram por ela. Os custos já são de dezenas de bilhões de reais e se não houver novo socorro do governo às distribuidoras as contas de luz poderão subir 20% em 2014, anulando os efeitos da MP 579.

É cedo ainda para dizer se chegaremos a um racionamento de energia elétrica. Mas é evidente que a situação atual não pode continuar.

Há muitos anos se costumavam chamar as ações das empresas de eletricidade do País de "ações das viúvas". Isso porque, apesar de renderem pouco, eram seguras, dando às "viúvas" a estabilidade financeira de que necessitavam. Essa confiabilidade foi destruída com as medidas atabalhoadas tomadas pelo governo em 2012, ao reduzir as tarifas em troca da antecipação da renovação das concessões.

Não são manobras eleitoreiras de curto prazo que vão resolver o problema. A atuação do Ministério de Minas e Energia precisa de uma reavaliação: é necessário um planejamento de longo prazo que devolva segurança aos investidores.

Se não houver racionamento de eletricidade em 2014, haverá ainda algum tempo para a tomada de decisões estruturais corajosas a fim de reorganizar o setor elétrico. Com isso se poderia adiar a "morte anunciada" que é o racionamento, o qual acabará por desorganizar ainda mais o já desorganizado setor de energia do País.

Hobbes nas ruas - LUIZ FELIPE PONDÉ

FOLHA DE SP - 17/02

Gente comum quer uma vida pautada por rotinas de trabalho, escola, lazer e consumo


Dias atrás, o Brasil se chocou com cenas de violência nas ruas. Pessoas comuns batendo em supostos (ou comprovados) bandidos. Policiais tendo que protegê-los da fúria da gente comum.

De um lado, uma jornalista faz comentários arriscados na TV, do outro, setores da intelligentsia pedem providências do Ministério Público contra a jornalista, botando ainda mais lenha na fogueira da atmosfera de ódio e ressentimento que toma conta, lentamente, da alta, média e baixa culturas nacionais.

Não se pode defender o espancamento na rua, mesmo sendo bandido. Só o Estado detém o monopólio legítimo da violência. Mas é esta mesma intelligentsia (tribunais, universidades, mídia, escolas, ONGs) que vem sistematicamente erodindo esse monopólio legítimo da violência que pertence à polícia. Claro que os erros desta precisam ser sanados, mas a sociedade não faz nada para melhorar o tratamento institucional dado à polícia, e sem ela, sim, a gente comum vai espancar supostos (ou comprovados) bandidos na rua. E vai piorar.

O espancamento de supostos (ou comprovados) bandidos na rua é parte do fenômeno de massa que os inteligentinhos chamam de "jornadas de junho", num esforço de reviver a ejaculação precoce que foi o Maio de 68 na França, aquela revolução de mimados.

Lembremos que quando as manifestações do ano passado atingiram o nível de massa, os inteligentinhos começaram a gritar dizendo que o movimento (deles!) tinha sido sequestrado por setores "conservadores" da sociedade. Para eles, "conservador" é todo mundo que não os obedece e não os teme, mesmo que seja apenas para parar a Paulista.

Se no ano passado vimos uma inesperada crise na representação política, agora assistimos a um crescente rompimento do contrato social. E quem está na rua é o homem descrito pelo intelectual honesto que foi Hobbes, e não o pseudo-homem dos "delírios do caminhante solitário" e vaidoso Rousseau.

Já falei algumas vezes nesta coluna do que podemos chamar de psicologia da gente comum. Esta gente que a intelligentsia, na verdade, despreza, apesar de posar de defensora da gente comum. Digamos a verdade. Nossa contradição aparece quando, por exemplo, algumas pessoas começam a gritar contra gente mal-educada e sem compostura frequentando aeroportos, e os "defensores dos menos privilegiados" saem ao ataque da burguesia chocadinha reclamona.

Infelizmente, a intelligentsia não percebe que tanto a burguesia chocadinha quanto os mais pobres fazem parte da mesma categoria de gente comum. Perdemos, nós da intelligentsia, a capacidade de enxergar essa gente comum, porque vivemos em nossa "casinha" correndo atrás da produtividade inócua da Sua Excelência Capes ou delirando com seres humanos que não existem.

E qual é a psicologia de gente comum? Gente comum é duramente meritocrática: quem não trabalha é vagabundo. Não quer ser assaltada quando vai para o trabalho ou para casa (e se for, quer ver o ladrão se ferrar feio!), quer também casa própria, metrô e ônibus que andem, comprar um carro logo que for possível, hospital sem muita fila, comer pizza no domingo, transar por cinco minutos quando não estiver muito estressada, ir para praia, ganhar cada vez mais, ir ao cinema mais perto de casa, ir ao salão de beleza, ver os filhos crescerem, tomar cerveja, e se der, ler alguma coisa além de ver TV.

E, digamos: pagam impostos e tem todo o direito de viver assim (menos de bater em gente na rua). Mas vão bater em supostos (ou comprovados) ladrões cada vez mais porque estão sentindo que a sociedade não está nem aí para eles.

Quando a chamada classe D alcançar os níveis do consumo da classe C, vão querer a mesma coisa. Uma vida pautada por rotinas de trabalho, escola, lazer, consumo e férias. E quem ficar no caminho vai apanhar. Esta é única "consciência social" que existe.

Quando essa massa de gente que está de saco cheio de ser pisada no trem, de pagar imposto e não poder andar com seu carro nas ruas, de ver sua filha com medo, agir, o homem de Hobbes fará sua "revolução". A vida será doída, violenta e breve.

A necessidade do supérfluo. Ou: Em defesa do luxo e do conforto material

Blogs e Colunistas
28/12/2013
 às 9:57 \ Ciência e TecnologiaCultura


Muitos, nessa época do ano, atacam o lado comercial do Natal. Logo depois, tivemos o culto do pobrismo com o episódio das sandálias do presidente uruguaio Mujica. Várias pessoas estão condenando o luxo, a demanda por bens e serviços que não “necessitamos”, como se o minimalismo fosse o único estilo decente de se viver. Discordo totalmente.
A imensa maioria que assim faz vive no conforto ocidental, com acesso a remédios avançados graças aos bilhões investidos por laboratórios em busca de lucro, utilizando computadores modernos, internet rápida e tudo mais que só é possível em sociedades que não se limitam ao “necessário” ou básico.
E por isso resolvi resgatar esse meu texto que fala exatamente sobre a “necessidade” do supérfluo. O filósofo David Hume escreveu sobre a importância do luxo para a prosperidade de uma sociedade. Abaixo, segue o ponto de vista de Ortega y Gasset sobre o avanço da técnica na busca de nosso conforto e de Roberto Campos, que vai na mesma linha.
A necessidade do supérfluo
“Pelo necessário, o homem é capaz de matar; pelo supérfluo, é capaz de morrer.” (Carlos Lacerda)
Um curso desenvolvido em 1933 pelo pensador espanhol Ortega y Gasset acabou virando livro, sob o título Meditação Sobre a Técnica. Nele, o escritor fala sobre o sentido da vida humana e o papel que a técnica exerce nesse contexto. Para Gasset, “é notório que no homem os instintos estão quase apagados, pois o homem não vive, definitivamente, por seus instintos, mas se governa mediante outras faculdades, como a reflexão e a vontade, que operam acima dos sentidos”. O instinto mesmo de sobrevivência, por exemplo, seria negado quando os homens escolhem morrer. O homem vive porque quer. A necessidade de viver não lhe é imposta à força.
O animal está sempre preso às suas necessidades vitais, e sua existência “não é mais do que o sistema dessas necessidades elementares a que chamamos orgânicas ou biológicas e o sistema de atos que as satisfazem”. Mas a vida humana é bem mais que isso. A biologia ocupa-se de uma classe de fenômenos: os orgânicos. Mas a vida humana é aquilo que fazemos e o que nos acontece; é “pensar ou sonhar e comover-se”. Nossa vida é o que fazemos porque nos damos conta de que o fazemos. Para Gasset, “viver é um não contentar-se em ser, mas compreender e ver que se é um incessante descobrimento que fazemos de nós mesmos e do mundo que nos rodeia”. O homem não é a sua circunstância, ele apenas está submerso nela e pode ocupar-se de coisas que não sejam atender diretamente os imperativos ou necessidades de sua circunstância.
Os atos dos homens, portanto, modificam ou reformam a circunstância ou natureza. Nela passa a existir o que não existia antes. São esses os atos técnicos, e o conjunto deles é a técnica, ou seja, a “reforma que o homem impõe à natureza em vista da satisfação de suas necessidades”. A técnica é, pois, a “reação enérgica contra a natureza ou circunstância”. A vida é imprevista, e antes de nascer, nada nos é perguntado sobre ela. Em que circunstâncias vamos viver não é sabido, e encontramo-nos tendo que nadar numa circunstância, inexoravelmente indeterminada. “Viver é como uma situação que tenha de ser enfrentada, num mundo indeterminado”. É um problema que temos que resolver, e cuja solução não se pode transferir a nenhum outro ser. A técnica é o contrário da adaptação do sujeito ao meio; é a adaptação do meio ao sujeito.
O homem não busca apenas atender as necessidades básicas da sobrevivência. O conceito de “necessidade humana” engloba, desde o homem primitivo, tanto o objetivamente necessário quanto o supérfluo. Como diz Gasset, “o empenho do homem em viver, em estar no mundo, é inseparável de seu empenho em estar bem”. O bem-estar, e não o estar é a necessidade fundamental do homem. Como conclusão desse raciocínio, o homem é um animal para o qual só o supérfluo é necessário. A técnica, nesse sentido, é a produção do supérfluo. O animal, diferente do homem, contenta-se em viver com o mínimo necessário para o simples existir. Já o homem quer muito mais que isso. Seu bem-estar é sua meta, e se trata de um ponto de chegada sempre móvel, ilimitadamente variável.
A questão importante é que a técnica não é por si só, boa ou ruim. Ela diminui, às vezes quase elimina o esforço imposto ao homem pela circunstância, mas se o homem fica isento de tarefas impostas pela natureza, surge a pergunta de o que ele vai fazer, com que vai ocupar sua vida. A superação da vida animal libera o homem para se dedicar a vários afazeres não biológicos, que não são impostos pela natureza. O homem mesmo inventa tais afazeres. Se o homem não cuida muito de aproveitar suas horas da melhor forma possível, sua vida será a estrangulação constante de si mesmo.
Como diz o escritor, “o mais trágico do homem é o mais glorioso, pois ele tem obrigação de escolher e, portanto, queira ou não, tem que levar a efeito sua liberdade”. O mundo ao redor do homem é uma intricada rede, tanto de facilidades como de dificuldades. A existência do homem não é um estar passivo. Ele tem de lutar constantemente contra as dificuldades que o entorno lhe oferece. Viktor Fankl resumiu bem o livre-arbítrio do homem cercado pelos limites do meio: “Entre o estímulo e a resposta, o homem tem a liberdade de escolha”.
Gasset afirma: “Precisamente porque o ser do homem não lhe é dado, mas é em princípio pura possibilidade imaginária, a espécie humana é de uma instabilidade e variabilidade não comparáveis às espécies animais”. E conclui que, em suma, “os homens são enormemente desiguais, contrariamente ao que afirmavam os igualitaristas”. Cada homem tem que fazer sua própria vida, já que esta não lhe é algo dado e pronto. “Viver é descobrir os meios para realizar o programa que se é”, explica Gasset. Logo, o sentido e a causa da técnica estão fora dela, “no emprego que o homem dá às energias que lhe sobram, energias economizadas pela técnica”. A missão inicial da técnica seria esta então: dar liberdade ao homem para ele poder entregar-se a si mesmo. As preferências são subjetivas e cada um terá que escolher o que quer para si.
Comparando Esparta com Atenas, vemos que a primeira se concentrava mais no essencial, sendo austera e igualitária, enquanto a última cultivava a beleza do espírito e das formas. Roberto Campos resume que Esparta seria a civilização do necessário, enquanto Atenas a do supérfluo. O esforço militar disciplinado dos espartanos não deixou vestígios agradáveis e marcou bem menos o ocidente que sua rival mais frívola. De fato, há uma tendência, possível através da técnica, em tornar fim o que antes era um simples meio. Se antes comer era quase um ato somente para a sobrevivência, hoje temos a arte da culinária. Se beber era para matar a sede, hoje temos vários enólogos discursando sobre os prazeres de um bom vinho. Se as roupas visavam à proteção do clima, hoje temos o mundo da moda.
O homem sempre buscou mais que atender as mínimas necessidades da vida. A técnica consciente é seu grande aliado nessa trajetória. “Contudo”, lembra Gasset, “a vida humana não é só luta com a matéria, mas também luta do homem com sua alma”. Ter isso em mente é fundamental quando vemos o grande vazio que muitos homens sentem mesmo num mundo de técnica extremamente avançada. A redução do desconforto material, possível pelo progresso da técnica, é espetacular e algo desejável. Mas não é tudo na vida humana.     
Só lembrando aos esquerdistas, e isso inclui o Sakamoto: ter um Apple é um LUXO! Menos hipocrisia, gente…