segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

A necessidade do supérfluo. Ou: Em defesa do luxo e do conforto material

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28/12/2013
 às 9:57 \ Ciência e TecnologiaCultura


Muitos, nessa época do ano, atacam o lado comercial do Natal. Logo depois, tivemos o culto do pobrismo com o episódio das sandálias do presidente uruguaio Mujica. Várias pessoas estão condenando o luxo, a demanda por bens e serviços que não “necessitamos”, como se o minimalismo fosse o único estilo decente de se viver. Discordo totalmente.
A imensa maioria que assim faz vive no conforto ocidental, com acesso a remédios avançados graças aos bilhões investidos por laboratórios em busca de lucro, utilizando computadores modernos, internet rápida e tudo mais que só é possível em sociedades que não se limitam ao “necessário” ou básico.
E por isso resolvi resgatar esse meu texto que fala exatamente sobre a “necessidade” do supérfluo. O filósofo David Hume escreveu sobre a importância do luxo para a prosperidade de uma sociedade. Abaixo, segue o ponto de vista de Ortega y Gasset sobre o avanço da técnica na busca de nosso conforto e de Roberto Campos, que vai na mesma linha.
A necessidade do supérfluo
“Pelo necessário, o homem é capaz de matar; pelo supérfluo, é capaz de morrer.” (Carlos Lacerda)
Um curso desenvolvido em 1933 pelo pensador espanhol Ortega y Gasset acabou virando livro, sob o título Meditação Sobre a Técnica. Nele, o escritor fala sobre o sentido da vida humana e o papel que a técnica exerce nesse contexto. Para Gasset, “é notório que no homem os instintos estão quase apagados, pois o homem não vive, definitivamente, por seus instintos, mas se governa mediante outras faculdades, como a reflexão e a vontade, que operam acima dos sentidos”. O instinto mesmo de sobrevivência, por exemplo, seria negado quando os homens escolhem morrer. O homem vive porque quer. A necessidade de viver não lhe é imposta à força.
O animal está sempre preso às suas necessidades vitais, e sua existência “não é mais do que o sistema dessas necessidades elementares a que chamamos orgânicas ou biológicas e o sistema de atos que as satisfazem”. Mas a vida humana é bem mais que isso. A biologia ocupa-se de uma classe de fenômenos: os orgânicos. Mas a vida humana é aquilo que fazemos e o que nos acontece; é “pensar ou sonhar e comover-se”. Nossa vida é o que fazemos porque nos damos conta de que o fazemos. Para Gasset, “viver é um não contentar-se em ser, mas compreender e ver que se é um incessante descobrimento que fazemos de nós mesmos e do mundo que nos rodeia”. O homem não é a sua circunstância, ele apenas está submerso nela e pode ocupar-se de coisas que não sejam atender diretamente os imperativos ou necessidades de sua circunstância.
Os atos dos homens, portanto, modificam ou reformam a circunstância ou natureza. Nela passa a existir o que não existia antes. São esses os atos técnicos, e o conjunto deles é a técnica, ou seja, a “reforma que o homem impõe à natureza em vista da satisfação de suas necessidades”. A técnica é, pois, a “reação enérgica contra a natureza ou circunstância”. A vida é imprevista, e antes de nascer, nada nos é perguntado sobre ela. Em que circunstâncias vamos viver não é sabido, e encontramo-nos tendo que nadar numa circunstância, inexoravelmente indeterminada. “Viver é como uma situação que tenha de ser enfrentada, num mundo indeterminado”. É um problema que temos que resolver, e cuja solução não se pode transferir a nenhum outro ser. A técnica é o contrário da adaptação do sujeito ao meio; é a adaptação do meio ao sujeito.
O homem não busca apenas atender as necessidades básicas da sobrevivência. O conceito de “necessidade humana” engloba, desde o homem primitivo, tanto o objetivamente necessário quanto o supérfluo. Como diz Gasset, “o empenho do homem em viver, em estar no mundo, é inseparável de seu empenho em estar bem”. O bem-estar, e não o estar é a necessidade fundamental do homem. Como conclusão desse raciocínio, o homem é um animal para o qual só o supérfluo é necessário. A técnica, nesse sentido, é a produção do supérfluo. O animal, diferente do homem, contenta-se em viver com o mínimo necessário para o simples existir. Já o homem quer muito mais que isso. Seu bem-estar é sua meta, e se trata de um ponto de chegada sempre móvel, ilimitadamente variável.
A questão importante é que a técnica não é por si só, boa ou ruim. Ela diminui, às vezes quase elimina o esforço imposto ao homem pela circunstância, mas se o homem fica isento de tarefas impostas pela natureza, surge a pergunta de o que ele vai fazer, com que vai ocupar sua vida. A superação da vida animal libera o homem para se dedicar a vários afazeres não biológicos, que não são impostos pela natureza. O homem mesmo inventa tais afazeres. Se o homem não cuida muito de aproveitar suas horas da melhor forma possível, sua vida será a estrangulação constante de si mesmo.
Como diz o escritor, “o mais trágico do homem é o mais glorioso, pois ele tem obrigação de escolher e, portanto, queira ou não, tem que levar a efeito sua liberdade”. O mundo ao redor do homem é uma intricada rede, tanto de facilidades como de dificuldades. A existência do homem não é um estar passivo. Ele tem de lutar constantemente contra as dificuldades que o entorno lhe oferece. Viktor Fankl resumiu bem o livre-arbítrio do homem cercado pelos limites do meio: “Entre o estímulo e a resposta, o homem tem a liberdade de escolha”.
Gasset afirma: “Precisamente porque o ser do homem não lhe é dado, mas é em princípio pura possibilidade imaginária, a espécie humana é de uma instabilidade e variabilidade não comparáveis às espécies animais”. E conclui que, em suma, “os homens são enormemente desiguais, contrariamente ao que afirmavam os igualitaristas”. Cada homem tem que fazer sua própria vida, já que esta não lhe é algo dado e pronto. “Viver é descobrir os meios para realizar o programa que se é”, explica Gasset. Logo, o sentido e a causa da técnica estão fora dela, “no emprego que o homem dá às energias que lhe sobram, energias economizadas pela técnica”. A missão inicial da técnica seria esta então: dar liberdade ao homem para ele poder entregar-se a si mesmo. As preferências são subjetivas e cada um terá que escolher o que quer para si.
Comparando Esparta com Atenas, vemos que a primeira se concentrava mais no essencial, sendo austera e igualitária, enquanto a última cultivava a beleza do espírito e das formas. Roberto Campos resume que Esparta seria a civilização do necessário, enquanto Atenas a do supérfluo. O esforço militar disciplinado dos espartanos não deixou vestígios agradáveis e marcou bem menos o ocidente que sua rival mais frívola. De fato, há uma tendência, possível através da técnica, em tornar fim o que antes era um simples meio. Se antes comer era quase um ato somente para a sobrevivência, hoje temos a arte da culinária. Se beber era para matar a sede, hoje temos vários enólogos discursando sobre os prazeres de um bom vinho. Se as roupas visavam à proteção do clima, hoje temos o mundo da moda.
O homem sempre buscou mais que atender as mínimas necessidades da vida. A técnica consciente é seu grande aliado nessa trajetória. “Contudo”, lembra Gasset, “a vida humana não é só luta com a matéria, mas também luta do homem com sua alma”. Ter isso em mente é fundamental quando vemos o grande vazio que muitos homens sentem mesmo num mundo de técnica extremamente avançada. A redução do desconforto material, possível pelo progresso da técnica, é espetacular e algo desejável. Mas não é tudo na vida humana.     
Só lembrando aos esquerdistas, e isso inclui o Sakamoto: ter um Apple é um LUXO! Menos hipocrisia, gente…

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