O GLOBO - 20/10
“Vim registrar meu filho disse”, preparando-me para o aborrecimento inevitável da burocracia dos cartórios. Descobriria logo depois que era otimismo meu. Não seria apenas aborrecido. Teria uma briga pela frente que só venceria com a ajuda do meu tio Boanerges, advogado. “Você não pode registrar a criança. Você é a mãe, só o pai pode registrar”, disse-me o escrivão.
-Por que não posso registrar meu filho? — — perguntei, ofendida. —Essa é a lei. Só a palavra do pai é que vale. — Significa que a suposição é que estou mentindo? — Por que o pai não está aqui? — perguntou, desconfiado, o escrivão. — Motivo de força maior. — Que força maior? — Maior, bem maior — respondi, exausta. Eram os anos 70, meu filho tinha 20 dias, eu estava acabando de chegar a Caratinga, de volta de uma viagem cansativa que tínhamos feito ao Rio para que o pai, preso no Regimento Sampaio, pudesse conhecer o filho.
A visita era restrita a meia hora. E só podia ser numa quinta-feira, às 9 da manhã. No fusquinha da tia Ilda, tínhamos vencido todo o longo trajeto, cruzado o desconhecido e assustador Rio de Janeiro até a casa de outra tia na Zona Norte. De lá, fomos à Vila Militar Marechal Deodoro, preocupadas em chegar pontualmente.
Um minuto de atraso era o suficiente para impedir a visita. No dia seguinte, o caminho de volta a Caratinga começara de madrugada. Assim que entrei na casa dos meus pais, soube que meu sogro telefonara. Liguei para Vitória e a informação era que eu estava sendo processada à revelia, com base no Decreto-Lei 447 na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Era o segundo processo. O outro, pela Lei de Segurança Nacional, corria na Segunda Auditoria da Aeronáutica do Rio.
Eu nem sabia do processo na universidade. Eles nunca me informaram. O 447 proibia estudantes condenados de estudar por três anos em qualquer universidade, e o juiz final, que baixava a sentença, era o ministro da Educação, na época, o coronel Jarbas Passarinho. Tinha que enviar a certidão, aconselhou meu sogro, Wolghano. Com o documento, o advogado poderia justificar minha ausência. — Qual o motivo de força maior que impede o pai de comparecer para registrar o filho? — Perguntou, debochado, o escrivão. — Ele está preso.
Esse é o motivo de força maior — respondi. o escrivão venceu o espanto e retornou à postura burocrática: — Nesse caso, a criança fica sem registro ou eu escrevo “pai desconhecido”. A mãe pode mentir sobre a paternidade. Tudo era doloroso e ultrajante: a lei que condenava estudante a não estudar, a prisão e a perseguição que vivera durante a gravidez, a suposição legal de que, sendo eu mulher, só poderia estar mentindo.
Mostrei a certidão do casamento e o funcionário do cartório disse que aquilo não provava a paternidade. — Só o pai pode dizer que é pai — insistia o escrivão. Fui socorrida por uma voz forte que falou atrás de mim. — Qual é o problema aqui? Eu sou advogado — disse o meu tio entregando seus documentos. Não sei que argumentos usou, mas tio Boanerges tinha a capacidade de comunicar com clareza e convicção seu raciocínio.
Convenceu o escrivão a não seguir uma lei, que vigora até hoje, e que só agora o Congresso começa a mudar. Vejo o debate atual com espanto. São muitos os que afirmam que as mulheres mentiriam e que a lei precisa permanecer como está. Como se não houvessem punições para eventuais falsidades ditas em um cartório e como se o homem tivesse o monopólio da verdade.
Essa lei velha mostra que sobre a mulher recai a presunção da mentira. Vencido pela eloquência do meu tio, que não parava de citar leis, artigos, incisos e caputs que supostamente protegeriam meu direito de registrar a criança, o escrivão se rendeu. — Qual o nome do recém—nascido? — Vladimir de Almeida Leitão Netto. — Local e data de nascimento? — Caratinga, 3 de agosto de 1973.
“Vim registrar meu filho disse”, preparando-me para o aborrecimento inevitável da burocracia dos cartórios. Descobriria logo depois que era otimismo meu. Não seria apenas aborrecido. Teria uma briga pela frente que só venceria com a ajuda do meu tio Boanerges, advogado. “Você não pode registrar a criança. Você é a mãe, só o pai pode registrar”, disse-me o escrivão.
-Por que não posso registrar meu filho? — — perguntei, ofendida. —Essa é a lei. Só a palavra do pai é que vale. — Significa que a suposição é que estou mentindo? — Por que o pai não está aqui? — perguntou, desconfiado, o escrivão. — Motivo de força maior. — Que força maior? — Maior, bem maior — respondi, exausta. Eram os anos 70, meu filho tinha 20 dias, eu estava acabando de chegar a Caratinga, de volta de uma viagem cansativa que tínhamos feito ao Rio para que o pai, preso no Regimento Sampaio, pudesse conhecer o filho.
A visita era restrita a meia hora. E só podia ser numa quinta-feira, às 9 da manhã. No fusquinha da tia Ilda, tínhamos vencido todo o longo trajeto, cruzado o desconhecido e assustador Rio de Janeiro até a casa de outra tia na Zona Norte. De lá, fomos à Vila Militar Marechal Deodoro, preocupadas em chegar pontualmente.
Um minuto de atraso era o suficiente para impedir a visita. No dia seguinte, o caminho de volta a Caratinga começara de madrugada. Assim que entrei na casa dos meus pais, soube que meu sogro telefonara. Liguei para Vitória e a informação era que eu estava sendo processada à revelia, com base no Decreto-Lei 447 na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Era o segundo processo. O outro, pela Lei de Segurança Nacional, corria na Segunda Auditoria da Aeronáutica do Rio.
Eu nem sabia do processo na universidade. Eles nunca me informaram. O 447 proibia estudantes condenados de estudar por três anos em qualquer universidade, e o juiz final, que baixava a sentença, era o ministro da Educação, na época, o coronel Jarbas Passarinho. Tinha que enviar a certidão, aconselhou meu sogro, Wolghano. Com o documento, o advogado poderia justificar minha ausência. — Qual o motivo de força maior que impede o pai de comparecer para registrar o filho? — Perguntou, debochado, o escrivão. — Ele está preso.
Esse é o motivo de força maior — respondi. o escrivão venceu o espanto e retornou à postura burocrática: — Nesse caso, a criança fica sem registro ou eu escrevo “pai desconhecido”. A mãe pode mentir sobre a paternidade. Tudo era doloroso e ultrajante: a lei que condenava estudante a não estudar, a prisão e a perseguição que vivera durante a gravidez, a suposição legal de que, sendo eu mulher, só poderia estar mentindo.
Mostrei a certidão do casamento e o funcionário do cartório disse que aquilo não provava a paternidade. — Só o pai pode dizer que é pai — insistia o escrivão. Fui socorrida por uma voz forte que falou atrás de mim. — Qual é o problema aqui? Eu sou advogado — disse o meu tio entregando seus documentos. Não sei que argumentos usou, mas tio Boanerges tinha a capacidade de comunicar com clareza e convicção seu raciocínio.
Convenceu o escrivão a não seguir uma lei, que vigora até hoje, e que só agora o Congresso começa a mudar. Vejo o debate atual com espanto. São muitos os que afirmam que as mulheres mentiriam e que a lei precisa permanecer como está. Como se não houvessem punições para eventuais falsidades ditas em um cartório e como se o homem tivesse o monopólio da verdade.
Essa lei velha mostra que sobre a mulher recai a presunção da mentira. Vencido pela eloquência do meu tio, que não parava de citar leis, artigos, incisos e caputs que supostamente protegeriam meu direito de registrar a criança, o escrivão se rendeu. — Qual o nome do recém—nascido? — Vladimir de Almeida Leitão Netto. — Local e data de nascimento? — Caratinga, 3 de agosto de 1973.