domingo, 20 de outubro de 2013

Presunção da mentira - MIRIAM LEITÃO


O GLOBO - 20/10

“Vim registrar meu filho disse”, preparando-me para o aborrecimento inevitável da burocracia dos cartórios. Descobriria logo depois que era otimismo meu. Não seria apenas aborrecido. Teria uma briga pela frente que só venceria com a ajuda do meu tio Boanerges, advogado. “Você não pode registrar a criança. Você é a mãe, só o pai pode registrar”, disse-me o escrivão.

-Por que não posso registrar meu filho? — — perguntei, ofendida. —Essa é a lei. Só a palavra do pai é que vale. — Significa que a suposição é que estou mentindo? — Por que o pai não está aqui? — perguntou, desconfiado, o escrivão. — Motivo de força maior. — Que força maior? — Maior, bem maior — respondi, exausta. Eram os anos 70, meu filho tinha 20 dias, eu estava acabando de chegar a Caratinga, de volta de uma viagem cansativa que tínhamos feito ao Rio para que o pai, preso no Regimento Sampaio, pudesse conhecer o filho.

A visita era restrita a meia hora. E só podia ser numa quinta-feira, às 9 da manhã. No fusquinha da tia Ilda, tínhamos vencido todo o longo trajeto, cruzado o desconhecido e assustador Rio de Janeiro até a casa de outra tia na Zona Norte. De lá, fomos à Vila Militar Marechal Deodoro, preocupadas em chegar pontualmente.

Um minuto de atraso era o suficiente para impedir a visita. No dia seguinte, o caminho de volta a Caratinga começara de madrugada. Assim que entrei na casa dos meus pais, soube que meu sogro telefonara. Liguei para Vitória e a informação era que eu estava sendo processada à revelia, com base no Decreto-Lei 447 na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Era o segundo processo. O outro, pela Lei de Segurança Nacional, corria na Segunda Auditoria da Aeronáutica do Rio.

Eu nem sabia do processo na universidade. Eles nunca me informaram. O 447 proibia estudantes condenados de estudar por três anos em qualquer universidade, e o juiz final, que baixava a sentença, era o ministro da Educação, na época, o coronel Jarbas Passarinho. Tinha que enviar a certidão, aconselhou meu sogro, Wolghano. Com o documento, o advogado poderia justificar minha ausência. — Qual o motivo de força maior que impede o pai de comparecer para registrar o filho? — Perguntou, debochado, o escrivão. — Ele está preso.

Esse é o motivo de força maior — respondi. o escrivão venceu o espanto e retornou à postura burocrática: — Nesse caso, a criança fica sem registro ou eu escrevo “pai desconhecido”. A mãe pode mentir sobre a paternidade. Tudo era doloroso e ultrajante: a lei que condenava estudante a não estudar, a prisão e a perseguição que vivera durante a gravidez, a suposição legal de que, sendo eu mulher, só poderia estar mentindo.

Mostrei a certidão do casamento e o funcionário do cartório disse que aquilo não provava a paternidade. — Só o pai pode dizer que é pai — insistia o escrivão. Fui socorrida por uma voz forte que falou atrás de mim. — Qual é o problema aqui? Eu sou advogado — disse o meu tio entregando seus documentos. Não sei que argumentos usou, mas tio Boanerges tinha a capacidade de comunicar com clareza e convicção seu raciocínio.

Convenceu o escrivão a não seguir uma lei, que vigora até hoje, e que só agora o Congresso começa a mudar. Vejo o debate atual com espanto. São muitos os que afirmam que as mulheres mentiriam e que a lei precisa permanecer como está. Como se não houvessem punições para eventuais falsidades ditas em um cartório e como se o homem tivesse o monopólio da verdade.

Essa lei velha mostra que sobre a mulher recai a presunção da mentira. Vencido pela eloquência do meu tio, que não parava de citar leis, artigos, incisos e caputs que supostamente protegeriam meu direito de registrar a criança, o escrivão se rendeu. — Qual o nome do recém—nascido? — Vladimir de Almeida Leitão Netto. — Local e data de nascimento? — Caratinga, 3 de agosto de 1973.

Seus lances, senhores, por Celso Ming


19 de outubro de 2013 | 16h00
Celso Ming

É o primeiro do pré-sal, no regime de partilha. Será realizado nesta segunda-feira, no Rio, e envolverá jazida (veja o Entenda), equivalente à metade das reservas comprovadas do País, de 15,3 bilhões de barris. Dos 11 interessados, 9 fizeram os depósitos previstos no edital, incluída aí a Petrobrás que, obrigatoriamente, participará com pelo menos 30% e será a única operadora. O bônus de assinatura está fixado em R$ 15 bilhões, o equivalente a 60% da arrecadação do Imposto de Renda em 2012. Leva o leilão o consórcio que oferecer ao Tesouro o maior volume de petróleo a ser produzido, estabelecido aí o mínimo de 41,65%. Com exceção da Shell, nenhuma das megaempresas do setor se inscreveram.
O investimento pode elevar-se a R$ 500 bilhões, como avalia a consultoria IHS citada sexta-feira pelo jornal Valor Econômico. No seu nível máximo, Libra sozinha poderá trazer do subsolo 1,4 milhão de barris por dia, mais da metade da atual produção. É alta a probabilidade de que o consórcio vencedor seja liderado por uma estatal chinesa. A presidente Dilma havia anunciado sua presença no evento, mas repentinamente a cancelou, seja porque, ainda traumatizada pelas vaias que em junho recebeu no Estádio Nacional de Brasília, quer evitar manifestações hostis, seja porque não quer reforçar acusações de entreguismo aos chineses, assacadas por parte de suas bases de apoio, que são os sindicatos.
Essa crítica está acachapantemente equivocada. Se o Brasil decidiu ser potência exportadora de petróleo, pouco importa se o comprador seja chinês, malaio, americano ou sul-africano.
Também não faz sentido a argumentação de que o petróleo é só “nosso”. O Brasil foi um quase permanente comprador e não se importou com a procedência do petróleo aqui consumido: se dos árabes, dos russos ou dos nigerianos. Aqueles que defendem a intocabilidade das riquezas nacionais deveriam levar em conta que, mais cedo ou mais tarde, o petróleo deixará de ser a principal fonte de energia e de combustíveis no mundo, como já aconteceu com o carvão. O risco é o de que o “nosso” permaneça deitado eternamente em berço esplêndido.
As principais críticas, não ao leilão, mas às novas regras do pré-sal, não foram feitas por quem protesta agora nem pela oposição, que foi omissa. Foram feitas por técnicos e economistas.
É improvável que o regime de partilha traga mais benefícios para o Brasil do que o regime anterior, de concessão (veja o Entenda). E é grave erro exigir que a Petrobrás, que já não dá conta do que vem fazendo, participe de toda a exploração do pré-sal em pelo menos 30% e seja a única operadora.
Também não faz sentido tocar o leilão de qualquer jeito apenas porque o ministro Guido Mantega conta com os R$ 15 bilhões do bônus de assinatura para fechar as contas públicas deste ano.
CONFIRA:
Os números. O Campo de Libra (denominação provisória) situa-se na Bacia de Santos, a 170 km da costa, a cerca de 7 mil metros abaixo do nível do mar. Compreende área de 1.548 km², equivalente a 1,3 vezes a do município do Rio de Janeiro. A estimativa de óleo recuperável (de 8 bilhões a 12 bilhões de barris de 159 litros) foi calculada a partir da vazão de um único poço.
Concessão. O regime de concessão foi o que prevaleceu até agora e continua válido em áreas fora do pré-sal. Os riscos de exploração e produção são do consórcio que levou a concessão, que, em contrapartida, passa a ser o proprietário dos hidrocarbonetos. O poder público fica com a arrecadação de impostos, participações especiais (em caso de grande produção) e royalties.
Partilha. No regime de partilha, risco e produção são divididos entre Tesouro e consórcio produtor, nas proporções previamente pactuadas. Cabem impostos e royalties, mas não participações especiais.

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Classe média sem fôlego


13 de outubro de 2013 | 2h 07

O Estado de S.Paulo
Pesquisas recentes atestam a dificuldade cada vez maior que os brasileiros estão enfrentando para pagar suas contas em dia. Fortemente estimulada nos últimos anos a consumir, graças a uma expansão inédita do crédito, a festejada classe média agora está atolada em dívidas - e isso deve minar a estratégia do governo para o crescimento da economia.
A situação claudicante do Brasil e de seus consumidores foi tema de reportagem de primeira página no Wall Street Journal e do principal editorial do New York Times, ambos no dia 9/10. Nos dois casos, destacou-se a fragilidade das bases que sustentaram a expansão da economia até aqui e se enfatizou a necessidade urgente de profundas reformas e de investimentos em infraestrutura, em produtividade e em educação, em vez de continuar insistindo no estímulo ao crédito.
Wall Street Journal, em texto intitulado A conta chega para a classe média do Brasil, cita pesquisa da Fitch Ratings segundo a qual o endividamento dos consumidores brasileiros destaca-se negativamente entre as economias em desenvolvimento. O porcentual de empréstimos com atraso superior a 90 dias no País chegou a 5%, o dobro do índice verificado na Índia e maior do que em todos os demais emergentes, como Rússia e África do Sul. "A farra dos gastos acabou", diz o jornal, que qualifica a situação brasileira como um alerta a outros mercados emergentes que também lastrearam seu desempenho no crescimento da classe média.
O endividamento das famílias brasileiras já superou 45% de sua renda acumulada em um ano, o maior porcentual verificado pelo Banco Central desde 2005. O nível de endividamento mais que dobrou no período - era de 18,39% em janeiro de 2005 e cresce constantemente desde então.
O peso das dívidas no orçamento familiar mensal chega a cerca de 20%, um porcentual considerado muito alto para os padrões internacionais. Nos Estados Unidos, por exemplo, esse comprometimento é de 10%. Além disso, o custo das dívidas no Brasil praticamente não tem paralelo no mundo, pois os juros cobrados em linhas de crédito pessoal podem chegar a inacreditáveis 90% ao ano, em média.
Outras duas pesquisas, publicadas pelo Estado (9/10), apontam problemas semelhantes, que põem em dúvida o fôlego da classe média. Um levantamento feito pela Kantar Worldpanel, que faz sondagens sobre consumo, indica que mais da metade dos domicílios no País (51%) gastou mais do que ganhou em 2012. É o segundo ano seguido em que isso ocorre.
O fenômeno se explica em parte pela resistência da endividada classe média em abrir mão do padrão de consumo adquirido graças ao crescimento da renda e à expansão do crédito. Um estudo da Nielsen mostra que, no primeiro semestre deste ano, a quantidade de uma cesta de 131 categorias de produtos consumidos caiu 2,6% em relação ao mesmo período de 2012, enquanto o valor dela subiu 1,9%, descontada a inflação do período. Isso significa que o consumidor prefere reduzir as quantidades, na esperança de economizar, em vez de deixar de comprar os produtos que até pouco tempo atrás eram considerados supérfluos.
Incitados a ir às compras, graças à oferta abundante de crédito, que dobrou em cinco anos, os brasileiros endividaram-se com mercadorias que se desvalorizam, como eletrodomésticos e automóveis. As vendas de carros, símbolo mais reluzente dessa explosão de consumo estimulada pelo governo, mais que triplicaram entre 2004 e 2010.
O problema, como lembra o Journal, é que essa situação é insustentável se não houver produção que atenda à demanda. Como resultado da falta de investimentos em infraestrutura e em aumento da produtividade da indústria, somada aos gastos do governo e à corrida dos consumidores às prateleiras, o Brasil cresce pouco e a inflação resiste na casa dos 6%.
Tudo isso põe em dúvida a eficácia das políticas de incentivo ao consumo, que o governo não só pretende manter, como ampliar, principalmente para beneficiar os mais pobres - justamente os que mais sentem os efeitos deletérios da inflação.