segunda-feira, 9 de julho de 2012

Fantasmas no caminho


Fernando Gabeira
A imprensa vê nuvens cinzentas e o governo, céu azul. O que vejo eu, com tão precários instrumentos de observação?
Num intervalo de meus compromissos visitei um shopping center em São Paulo. As lojas estavam vazias. Eram 14 horas. Os compradores já se foram ou ainda não chegaram, pensei. Nos restaurantes os garçons perfilavam-se à espera do primeiro visitante para cercá-lo de todo o excedente de atenção que as circunstâncias permitiam. Alguma coisa estava acontecendo com o consumo. Li que o índice de inadimplência atingira o nível mais alto dos últimos tempos e as famílias brasileiras comprometem um quinto de sua renda com dívidas. Um articulista do Financial Times vê uma bolha de crédito e alerta para o perigo de estourar. Será que havia relação entre alguns dados e o que eu via nas lojas desertas?
O olho pode enganar. O governo reduziu impostos de carros, lançou um pacote de compras, continua apostando no estímulo ao consumo, como em 2008. Os limites vão sendo empurrados para a frente. Podem ser mais elásticos do que parecem. O governo não estaria, como costumam fazer alguns generais, travando hoje a batalha da guerra passada?
Vejo nuvens cinzentas no céu azul. Será que vai chover? O otimismo político traz-me insegurança em certos momentos.
A Petrobrás, por intermédio de Graça Foster, admitiu a necessidade de tornar mais realistas os seus planos estratégicos. Com isso reconheceu ser preciso pôr os pés na terra. Alguns observadores acham que nem na terra ainda ela pôs os pés, só se aproximou dela. O ex-presidente José Sérgio Gabrielli já se prepara para disputar eleições. Na nova profissão vai poder sonhar à vontade: construir uma nova Bahia, meu rei. O bilionário Eike Batista também sentiu o frio na barriga com a queda de sua empresa da área do petróleo. Só que Eike é o dono da empresa e tem de segurar a onda.
Saí de São Paulo com medo do fantasma da bolha e encontrei em Goiás o fantasma da casa - a casa do governador Marconi Perillo, que teria sido comprada por Carlinhos Cachoeira. Nos quatro dias em que convivi com os goianos na bela cidade de Cora Coralina duvidei, de novo, dos meus olhos. É que levava de São Paulo a impressão que me passou um editor de jornais de TV: quando entra a CPI do Cachoeira, cai a audiência. Achava natural. A maioria da CPI joga como um time que não quer jogar, dando chutões para cima e muita bola para a lateral. São aqueles jogadores que parecem nos dizer: "Olha, o jogo já acabou, é melhor ir saindo porque você não vai perder nada, não corre o risco de ouvir um grito de gol já no ponto do ônibus".
Em Goiás, quando entra a CPI do Cachoeira, quase todos se aproximam da TV. Isso diz respeito à vida de um dos Estados mais importantes do Brasil. Nas telas há um fantasma da casa, povoada de inúmeros fantasminhas vestidos de cheque bancário. Eles passam e voltam, mas os espectadores estão atentos. A casa e os cheques envolvem o governador do Estado.
O impacto do escândalo Cachoeira pegou Goiás em cheio. Quem conheceu o senador Demóstenes Torres ou votou nele ficou chocado, até mesmo com o tom subalterno com que tratava Cachoeira. Goiás merecia um bom trabalho do Congresso. Como merece o País, sobretudo após a divulgação de que sete empresas fantasmas receberam R$ 93 milhões da Delta.
Nesse mundo povoado de fantasmas a realidade vai penetrar, como o fez na economia. Num jogo de futebol é possível retardar a partida, truncá-la até o apito final. Mas na CPI do Cachoeira não haverá apito final. Uma parte da audiência pode ter-se perdido, porque o jogo é muito feio. Goiás, Tocantins, Brasília tendem a ficar de olho, mesmo se os congressistas continuarem jogando a bola para a lateral, mesmo que caia a audiência da CPI nos jornais noturnos.
É simples assim: muita gente no País sabe que está sendo roubada, gostaria de saber quanto roubaram, quem será punido e como devolver o dinheiro aos cofres públicos. Se isso for negado, viveremos numa bolha de outra natureza, que só um movimento popular pode estourar. O limite de endividamento foi atingido, por que não o seria o da paciência? A estrutura política, além de ostensivamente dispendiosa, recebe milhões de reais em propinas. E, ainda por cima, retorna muitos milhões de dinheiro público para retribuir a quem a suborna. Esse mecanismo perverso não pode durar. É uma ilusão esperar que seja um fato natural, aceito como a sucessão das estações do ano.
Talvez eu me tenha iludido com o que vejo ou mesmo sido levado a pensar assim por causa do percurso São Paulo-Brasil Central, do centro econômico às bases de operação de Cachoeira. Nuvens cinzentas ou apenas um relâmpago no céu azul? País fantástico ou fantasmagórico? Chega um momento em que é preciso contar com os próprios olhos: a decadência política e o aparente esgotamento de um modelo econômico são muito volumosos para passarem despercebidos. O enlace dos dois e os filhos que vão gerar são apenas a intuição da viagem.
Em 2014 o golpe militar fará meio século. Será o ano da sétima eleição direta para presidente. Melhorou muito a situação do nosso povo mais pobre. Mas a realidade eleitoral aprisionou o processo político e o levou a amplo descrédito. A maioria dos políticos seguirá vendo a história como uma eleição depois da outra. Um expoente como Lula, que conheço desde o meio da década de 1980, não elabora sobre os caminhos nacionais, dispõe-se a morder a canela dos adversários na eleição paulistana.
Às vezes, no exílio, julgava estar delirando. O amigo Francisco Nelson me confortava: "Você está lúcido". Chico Nelson, infelizmente, morreu há alguns anos. Será que estou vendo mesmo o homem reputado internacionalmente como um estadista mordendo canelas numa eleição municipal? Saudades do Chico Nelson. Chegamos juntos do exílio, em 1979. Nesses momentos aparece para mim, confirmando a frase de um escritor francês: não visitamos os mortos, eles é que nos visitam.
* JORNALISTA

O longo caminho até a 'economia verde'


Washington Novaes
Não surpreende que na Rio+20 se tenha decidido deixar para 2014 a fixação de metas para o desenvolvimento sustentável, a vigorarem a partir de 2015 - de modo parecido com o que se fez na Convenção do Clima, deixando para 2015 a definição de compromissos de redução de emissões poluentes para cada país, mas a serem cumpridos só a partir de 2020. Como o tema inclui também a chamada "economia verde", igualmente discutida no Rio de Janeiro, as definições são dificílimas, envolvem a produção e os seus caminhos em cada país e no mundo. E aí o carro pega.
Quem leu na última segunda-feira o relato do correspondente deste jornal em Genebra, Jamil Chade, sobre as mudanças no panorama mundial, com os organismos econômicos questionando "a fronteira entre nações ricas e emergentes", tem ideia da dificuldade das transformações propostas para cada país, considerados o seu nível de riqueza, tipos de exportação e importação, obrigações equivalentes. Quem é Primeiro Mundo hoje? E quem se inclui no campo da pobreza, entre as 194 nações, se um terço da humanidade ainda cozinha em fogões a lenha (Ladislau Dowbor, Eco 21, maio de 2012)? Se já se produzem no mundo 2 bilhões de toneladas anuais de grãos, suficientes para prover cada família de quatro pessoas com 800 gramas diários? Se o PIB mundial de US$ 63 trilhões anuais, distribuído igualitariamente, desse a cada uma dessas famílias US$ 5.400 mensais? Mas como vencer a resistência e mudar critérios para 737 grupos corporativos, 75% dos quais de intermediação financeira, que "controlam 80% do sistema corporativo mundial"?
A "economia verde", disse o secretário-geral da reunião, Sha Zukang, não trata apenas de "baixo carbono", tem de ser "discutida no contexto do desenvolvimento sustentável e da erradicação da pobreza". Mas a Cúpula dos Povos não gostou: a proposta não criticava o capitalismo, as "suas formas de dominação"; seria apenas um "disfarce para mais negócios e exploração dos ecossistemas", com a ajuda de "tecnologias transgênicas e da biologia sintética" (Agência Brasil, 14/5). Ao longo dos debates, muitas críticas se centraram nas políticas de países que subsidiam fertilizantes inorgânicos, combustíveis fósseis e energias insustentáveis; contribuem para a perda da biodiversidade, com subsídios a certas culturas; e para a redução de empregos no campo, com mecanização acelerada. As operações na agricultura - acentuou-se - contribuem, só elas (fora mudanças no uso da terra e desmatamentos), com 13% das emissões globais, fora as de óxido nitroso (58%) e de metano (47%).
Quem mudará ou quer mudar esse panorama, restaurar a fertilidade do solo com insumos naturais e nutrientes "sustentáveis"? Quem será capaz de "integrar lavoura, floresta e pecuária"? Reduzir insumos químicos e herbicidas? Implantar técnicas de manejo biológico? Reduzir desperdícios na área de alimentos (1,3 bilhão de toneladas anuais, segundo a ONU)? Transferir gratuitamente tecnologias para países mais carentes, de modo a poderem caminhar nessas direções? Determinar que compras governamentais (10% do PIB) tornem prioritários esses caminhos, inclusive na exportação? E como chegar a tudo sem impor penalidades ou barreiras comerciais?
Documentos da ONU (Boletim do Legislativo n.º 2/12, Senado Federal) chegam a dizer que a transformação resultará em "melhoria do bem-estar humano e da isonomia social", e ainda com "significante redução de riscos ambientais e de escassez ecológica". Por aí se chegaria ao "bem-estar intertemporal das futuras gerações", à eliminação de "efeitos da degradação ambiental na oferta agregada"; também a um processo que conduzirá a "uma nova estratégia" e aos financiamentos globais para a "economia verde". Mas - frisam - não podem ser criadas "barreiras ambientais". E será preciso reformar o "regime global do direito de propriedade". Tudo se completará com incentivos para a "economia verde" no valor de 2% do PIB mundial, ou US$ 1,3 trilhão por ano. Por esses caminhos se conseguirá - dizem os documentos - um ganho de 60% na eficiência energética (prédios, indústria, transporte). Entrará na economia o pagamento por serviços ambientais.
A simples enumeração dos objetivos e dos caminhos mostra o quanto é complexa, controvertida, delicada a questão. Mesmo sem entrar em questões decorrentes dessas estratégias. Como, por exemplo, saber onde atuar e de quem cobrar os custos. Na exportação de commodities de países "em desenvolvimento" para países industrializados, por exemplo, quem paga: quem exporta ou quem consome? É discussão semelhante à que ainda não tem solução no âmbito da Convenção do Clima, quando se trata de saber se a redução de emissões cabe aos países que exportam produtos industriais que implicam essas emissões (como os chineses) ou aos países que os importam (como os Estados Unidos, a Alemanha e outros). É o mesmo caso da taxação sobre emissões de empresas aéreas ou de navegação marítima (5% das emissões totais): onde fazê-lo, nos países de origem das viagens ou de destino? E os países no meio do caminho?
E quando se pensa em cobrar por serviços naturais - como na agricultura, por exemplo? Há estudos que mostram um valor de trilhões de dólares anuais para serviços prestados gratuitamente pela natureza - fertilidade do solo, regulação do clima e do regime hidrológico, etc. Vão ser incluídos nos preços de exportação? E nos internos? Países em desenvolvimento (inclusive o Brasil) temem que questões como essa acabem resultando na imposição de barreiras comerciais. Ou em restrições à soberania no uso de recursos naturais.
A tese da "economia verde" é atraente. Mas seus caminhos estão povoados de obstáculos de natureza variada. Mesmo em 2014 não será fácil avançar. As realidades de um mundo diversificado - e em crise - continuarão muito fortes.
* JORNALISTA E-MAIL: WLRNOVAES@UOL.COM.BR

Ilusão temporal


Fernando Guarnieri e Lara Mesquita - O Estado de S.Paulo

Serra amava Maluf que amava Haddad que amava Erundina que não amava ninguém. Esse tipo de "quadrilha", no sentido da metáfora de Drummond, surge sempre em junho, como as quadrilhas reais das festas de São João, em ano eleitoral. Junho é o mês em que são finalizados os acordos em torno das coligações eleitorais. Do ponto de vista normativo, os partidos deveriam se coligar com aqueles com os quais tenham maior identidade ideológica. Mas na prática a coisa não é bem assim. Existem casos em que partidos com posições opostas no espectro ideológico acabam por se unir, como aconteceu este ano em São Paulo, com o acordo do PT com o PP, seu adversário histórico na cidade.
O que ditaria o ritmo da dança das coligações seria o horário gratuito de propaganda eleitoral na TV e no rádio. Este criaria incentivos para a formação de alianças amplas, o que significa mais exposição do candidato, mas também a possibilidade de maior incoerência ideológica. O horário gratuito é uma fórmula adotada pelos países para tornar a disputa eleitoral mais equilibrada. Ao controlar o tempo à disposição dos partidos para expor seus candidatos e programas o Estado estaria evitando a influência de fatores externos à competição, como o "poder econômico". É assim no Brasil, Argentina, Chile, Reino Unido, França, Alemanha, Austrália, Rússia e em inúmeros outros países.
Em todos, o tempo de TV ou é distribuído igualmente ou depende da força dos partidos em eleições anteriores. No Brasil o critério tem como base a bancada de deputados federais eleita na eleição imediatamente anterior à contenda. Isso vale para todas as disputas, de presidente a vereador, independentemente de o partido ter ou não representação nos Estados e municípios. É um esforço da legislação brasileira de fortalecer os partidos nacionalmente. No entanto, essa intenção acaba criando distorções. Partidos sem expressão local em termos de voto acabam por ter grande influência na eleição pelo fato de ter mais tempo no horário gratuito. O PMDB de Chalita, que elegeu apenas um deputado federal no Estado de São Paulo, é, individualmente, o detentor do segundo maior tempo de propaganda no rádio e TV.
Será essa característica do horário gratuito brasileiro a responsável pela convivência no mesmo ninho de aves de tão diferentes plumagens e colorações ideológicas? Antes de responder, é preciso fazer uma ressalva.
Que as alianças eleitorais não se detêm no mesmo campo ideológico é um fato, mas elas são menos promíscuas do que parecem. O casamento entre PT e PP, por exemplo, já é antigo no plano federal. Desde 2003 o PP faz parte da base de sustentação do governo petista, sendo um dos partidos mais disciplinados da base. Seria muito mais raro, e mais incoerente, encontrarmos o PT coligado com o PSDB ou o DEM.
Voltemos ao impacto do horário gratuito na coerência ideológica das coligações. Pela legislação apenas municípios com emissoras de televisão tem obrigação de transmitir o horário gratuito. No caso da Região Metropolitana de São Paulo, por exemplo, só a capital, Guarulhos e Mogi das Cruzes tiveram acesso ao horário na TV em 2008.
Quando comparamos municípios da Região Metropolitana em que há propaganda eleitoral na TV com municípios vizinhos onde ela não está presente, verificamos que não é o tempo de TV o responsável pela configuração que tomam as coligações eleitorais. Estas são, nos municípios com horário gratuito, muito parecidas com as coligações em locais que não contam com esse recurso. Se não é o tempo de TV, o que as explica? Tudo indica que em São Paulo as coligações reproduzem as estratégias nacionais dos partidos. Em quase todos os municípios da Região Metropolitana de São Paulo dois blocos se enfrentam. Um se forma em torno do PT e outro do PSDB. Nesse sentido, temos em nível local uma reprodução da disputa nacional.
O tempo de TV é importante para vender o peixe do candidato. No caso paulistano, o tempo de TV ajudará a tornar conhecido Fernando Haddad, quadro antigo do partido, mas ainda desconhecido de grande parcela do eleitorado. Quanto mais tempo, mais exposição para Haddad. Entretanto, a necessidade de tornar Haddad mais conhecido não é o único motivo para a al iança. Ela pode significar um aceno aos eleitores mais à direita. Prova disso é o assédio que o PT fez ao recém-lançado PSD, do prefeito Gilberto Kassab, mesmo sem saber se o partido contaria com tempo no horário gratuito, uma vez que ele não disputou a última eleição.
Vimos a mesma coisa nas eleições presidenciais quando o PSDB teve que se aliar ao PFL para vencer em 1994 e o PT teve que se aliar ao PL para vencer em 2002. Não foi só o tempo de TV que contou. Se o eleitor mais à esquerda conseguir assimilar a imagem incômoda de Lula, Maluf e Haddad confraternizando, essa estratégia pode dar certo.
FERNANDO GUARNIERI É DOUTOR EM CIÊNCIA POLÍTICA PELA USP, PESQUISADOR DO CENTRO DE ESTUDOS DA METRÓPOLE (CEM/CEBRAP)
LARA MESQUITA É DOUTORANDA EM CIÊNCIA POLÍTICA NO IESP/UERJ, PESQUISADORA DO CEM/CEBRAP