13 de fevereiro de 2012 | 10h 49
Carlos Alberto Sardenberg*
Todo mundo sabe o que é auxílio-moradia. O empregado trabalha numa cidade e o empregador o transfere para outra. Para fazer a mudança, cobrir gastos com hotel enquanto arruma a casa nova e para transferir a família, o empregador paga o auxílio-moradia. Paga também quando o funcionário vai trabalhar por um tempo determinado na outra praça, circunstância em que fica, digamos, morando em dois lugares.
Com base nessa ideia geral, os deputados federais incorporaram um auxílio-moradia a seus vencimentos. Parece fazer sentido: os deputados não moram em Brasília, apenas passam lá alguns dias da semana. E o mandato é provisório, tem de ser renovado, ou não, a cada quatro anos. Assim, o Congresso, ou seja, o contribuinte, paga um auxílio por esses dias que o parlamentar passa em Brasília no exercício do mandato.
Tudo certo? Mais ou menos. Ninguém é obrigado a ser deputado. A pessoa se candidata porque quer, oferece-se aos eleitores. É diferente do empregado que é transferido pelo patrão. Na verdade, os parlamentares inventaram esse auxílio como uma maneira de aumentar seus vencimentos mensais sem parecer que estão fazendo isso. Um drible na lei e no bom senso, mas, ainda assim, têm o argumento de que gastam mesmo com moradia transitória, apresentam recibos de hotel e tal.
Vai daí que os juízes, representados por suas associações, perceberam no expediente uma maneira de também aumentar os ganhos mensais. Diz a Constituição que parlamentares e ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) devem ter vencimentos equiparados. Ora, os parlamentares não têm o auxílio-moradia?
Resultado: os tribunais, primeiro, deram o auxílio-moradia aos ministros do STF. Faz menos sentido do que no caso dos parlamentares. Os ministros do Supremo devem morar em Brasília, de modo que deveriam ter um auxílio apenas no momento da mudança, quando são nomeados para o cargo. Seria uma verba específica, contra recibos específicos. Mas, de novo, vá lá. Aos 70 anos eles se aposentam, voltam para suas cidades, de modo que se pode considerar a passagem por Brasília provisória, ainda que por muitos anos. É uma interpretação forçada, mas enfim...
Porém a coisa avançou. Como os vencimentos de juízes dos escalões inferiores são uma parcela daqueles recebidos pelos colegas do Supremo, deu a lógica, a lógica deles, claro: toda a magistratura ganhou o direito de receber o auxílio-moradia - esse valor não contando como salário e, portanto, podendo furar o teto.
Não importa se o magistrado é transferido ou não, se está de passagem, se mora ali mesmo - ele recebe o auxílio para sempre, ou seja, não é mais uma verba especial, mas um vencimento mensal. E mais: aplicaram retroativo. Acrescente aí a correção monetária, etc., e juntou-se um bom dinheiro a receber.
Tudo absolutamente normal, diz o presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, desembargador Ivan Sartori. Normal?
Imagine, caro leitor, que os parlamentares tivessem criado um auxílio-misto-quente, para pagar lanches quando se deslocassem pelos seus Estados para falar com os eleitores. Faria sentido estender essa verba aos magistrados?
Na verdade, toda essa discussão não faz sentido. O ponto é outro. Os magistrados acham que não são remunerados à altura do seu trabalho. O desembargador Sartori disse, em entrevista à revista Veja, edição 2.255, que R$ 24 mil mensais é inferior às necessidades de um juiz do Tribunal Superior do Estado.
Essa é uma boa discussão - quanto deve ganhar um juiz no Brasil? - e a categoria deveria mesmo abrir publicamente o debate. Mas, em vez disso, o que se viu nos últimos anos? Uma atitude corporativa que inventa quebra-galhos, como esse do auxílio-moradia, para aumentar os vencimentos fazendo parecer que não se trata de aumento nem de vencimento. Tanto que, como admite Sartori, os juízes recebiam os atrasados sem que isso constasse nos holerites. Segundo ele, deve ter sido um "equívoco administrativo", mas foi necessário criar o Conselho Nacional de Justiça para que esses "equívocos" começassem a ser apurados. Já para Sartori, o problema apareceu quando a "imprensa começou a bater nos juízes", com essa "história de que o Poder é uma caixa-preta". Ocorre, porém, que foi só a partir daí que o público ficou sabendo dessas e de outras situações.
De todo modo, o desembargador Sartori tem uma boa atitude. Veio a público para o debate. Comecemos, pois.
Diz ele que o "alto executivo de uma empresa" ou o presidente da Petrobrás ganham muito mais que os R$ 24 mil de um magistrado estadual. Verdade. Mas ambos são demissíveis a qualquer momento. Os acionistas controladores nem precisam explicar. Lembram-se do caso Roger Agnelli? Ou de José Gabrielli? Juízes só perdem o cargo se fizerem coisas muito erradas, na frente de muita gente. E são aposentados com vencimentos.
Além disso, não são R$ 24 mil. É preciso acrescentar os auxílios e outras vantagens, como os dois meses de férias. É curioso aqui. Sartori defende os dois meses dizendo que o trabalho do juiz é desgastante e que vários colegas têm problemas psicológicos. Logo, precisam descansar 60 dias, e não 30 como os demais trabalhadores.
Ganha uma vaga de juiz, sem concurso, quem apontar o trabalho de um brasileiro comum que não seja desgastante e estressante. E vamos falar francamente: o trabalho de um juiz não pode ser mais pesado do que, digamos, o médico operando no pronto-socorro, o policial trocando tiros com os bandidos, o operário moldando peças no torno ou o boia-fria colhendo cana.
Além disso, o próprio Sartori comenta, em outro trecho da entrevista, que poucos juízes tiram os dois meses de férias. A maioria "vende" um período, de modo que se trata de um salário extra. A maioria também vende a licença-prêmio (três meses a cada cinco anos), outra providência que engorda os vencimentos. Com isso, os juízes ficam como os demais trabalhadores, um mês de férias, mas ganhando um extra. E ninguém tem mais feriados do que os 35 dias/ano dos juízes.
Voltaremos ao debate, mas deixo desde já um outro ponto. Não se trata apenas de saber quanto um juiz merece ganhar, mas também de quanto o Estado pode pagar.
*É jornalista
Juízes do Brasil todo reclamaram da coluna da semana passada, com o mesmo título acima. Protestaram mais, porém, magistrados do Judiciário estadual de São Paulo. Estes se queixam duplamente: dos vencimentos básicos, que consideram baixos, como todos, e de sua situação, digamos, desfavorecida. Os paulistas têm menos vantagens do que seus colegas de outros Estados.
Muitos me enviaram links para as leis estaduais que regulam a remuneração dos juízes, algumas delas mais do que generosas. Muito citada foi a Lei n.º 5.535/09, do Estado do Rio de Janeiro, pela qual desembargadores e juízes, mesmo aqueles que acabaram de ingressar na carreira, chegam a ganharmensalmente de R$ 40 mil a R$ 150 mil. A remuneração básica, de R$ 24.117,62, é hipertrofiada por “vantagens eventuais”. Alguns desembargadores receberam, ao longo de apenas um ano, R$ 400 mil cada,somente em penduricalhos, conforme apontoureportagem deste mesmo Estadão.
Tudo dentro da lei, tem repetido o presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Manoel Alberto Rebêlodos Santos – mas a lei é alvo de uma ação direta de inconstitucionalidade. Segundo juízes paulistas, o Judiciário do Distrito Federal é ainda mais escandaloso.
Assim, por ironia, ficamos sabendo que a argumentação da coluna da semana passada fazia todo sentido. Por todo o Brasil, juízes e magistrados deram um jeito de driblar a lei do teto com “vantagens pessoais” que multiplicam muitas vezes o chamado “subsídio”. Ficamos sabendo, também,que há desigualdade entre os juízes e, de um modo geral, no quadro do aparelho Judiciário (promotoresganhandomaisque magistrados, por exemplo).
Os juízes paulistas que me escreveram não reivindicam esses “quebra-galhos”. Mas acham que ganham pouco e merecem mais.
Dizem que R$ 20 mil por mês, no início de carreira, não está à alturado trabalho e da função social. Para escapar das avaliações subjetivas – todo mundo acha que trabalha muito e ganha pouco – , é preciso fazer comparações.
Um juiz federal nos Estados Unidos começa ganhando US$ 174 mil ao ano, o que dá pouco mais de R$ 25 mil ao mês, ao câmbio de R$ 1,75. O juiz paulista ganha R$ 260 mil ao ano (13 salários), o que dá cerca de US$ 150 mil – ou US$ 24 mil a menos do que seu colega americano.
Mas a comparação não se esgota aí. O juiz americano ganha o equivalente a 3,6 vezes a renda per capita nacional. O brasileiro ganha 12,5 vezes mais.
Ainda na última sexta-feira, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) informou que o salário médio real do trabalhador brasileiro, em janeiro deste ano, foi de R$1.672. Ou seja, os juízes (e demais da carreira judiciária) ganham pelo menos 12 vezes mais que a média nacional.
Resposta dos diretamente interessados: os salários são baixos no Brasil, não se pode nivelar por aí. Mas são baixos, comparados com os americanos, justamente porque o país não é rico.
E aqui reparem: os Estados Unidos estão entre os países mais ricos do mundo e mesmo assim não pagam a seus magistrados 12 vezes mais que a média ou a renda per capita nacional.
Muitos, de novo, compararam os salários da magistratura com os ganhos dos advogados do setor privado. Não faz sentido. John
Roberts, presidente da Suprema Corte dos Estados Unidos, faturou US$ 1 milhão em 2003, seu último ano na iniciativa privada, como advogado. Ganha atualmente US$ 223 mil ao ano, ou cerca de R$ 32,5 mil por mês, pouco mais que o vencimento básico do juiz da Suprema Corte brasileira.
Roberts tem batalhado pelo aumento salarial dos seus juízes, mas reconhece que não há como compará-los com advogados bem-sucedidos. Se fosse assim, observa, ele não teria como explicar por que trocou a advocacia pela magistratura.
Mesmo porque, se quisesse ganhar mais dinheiro e se considerasse competente para enfrentar o mercado privado competitivo, ele poderia perfeitamente renunciar ao cargo na Suprema Corte. Como podem fazer todos os demais, lá e aqui.
Já um outro membro da Suprema Corte, Stephen Breyer, sugeriu comparar o salário do juiz com o de um professor titular de uma boa faculdade de Direito. Lá, o mestre ganha mais. Aqui, bem menos.
Tudo considerado, o juiz brasileiro, mesmo sem os penduricalhos, ganha proporcionalmente mais que seu colega americano e mais que os colegas de muitos outros países mais ricos. E muito mais que a média do trabalhador brasileiro, estando entre os mais bem pagos do setor público.
Perderam a noção. Além dessa discussão, digamos, objetiva, há magistrados que, falando francamente, perderam a noção.
Quando defendem o salário, dizem que não é líquido, pois descontam Imposto de Renda e previdência. Ora, todos os assalariados descontam.
Dizem que pagam mais para a sua previdência, os 11% sobre o salário total. Verdade. Mas recebem aposentadoria praticamente integral, muito mais vantajosa do que a do pessoal do INSS.
Reclamam de que não têm FGTS. Lógico que não, pois não podem ser demitidos.
E há campeões nesse quesito. O novo presidente do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Marcelo Bandeira Pereira, disse à jornalista Juliana Bublitz, do Zero Hora, sobre a “necessidade” das férias de 60 dias: “Trabalhamos com o raciocínio, com a cabeça, e o juiz é juiz 24 horas por dia. Existem dois meses de férias, mas um mês nós consumimos tentando recuperar o serviço atrasado”.
Ora, quem não trabalha com a cabeça, além dos cavalos?
E como um leitor sugeriu ao meritíssimo: “Faça como todo brasileiro normal, curta os 30 dias e trabalhe os outros 30 dias normalmente, que o serviço não atrasa”.
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