quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Quanto deve ganhar um juiz?



13 de fevereiro de 2012 | 10h 49
Carlos Alberto Sardenberg*
Todo mundo sabe o que é auxílio-moradia. O empregado trabalha numa cidade e o empregador o transfere para outra. Para fazer a mudança, cobrir gastos com hotel enquanto arruma a casa nova e para transferir a família, o empregador paga o auxílio-moradia. Paga também quando o funcionário vai trabalhar por um tempo determinado na outra praça, circunstância em que fica, digamos, morando em dois lugares.
Com base nessa ideia geral, os deputados federais incorporaram um auxílio-moradia a seus vencimentos. Parece fazer sentido: os deputados não moram em Brasília, apenas passam lá alguns dias da semana. E o mandato é provisório, tem de ser renovado, ou não, a cada quatro anos. Assim, o Congresso, ou seja, o contribuinte, paga um auxílio por esses dias que o parlamentar passa em Brasília no exercício do mandato.
Tudo certo? Mais ou menos. Ninguém é obrigado a ser deputado. A pessoa se candidata porque quer, oferece-se aos eleitores. É diferente do empregado que é transferido pelo patrão. Na verdade, os parlamentares inventaram esse auxílio como uma maneira de aumentar seus vencimentos mensais sem parecer que estão fazendo isso. Um drible na lei e no bom senso, mas, ainda assim, têm o argumento de que gastam mesmo com moradia transitória, apresentam recibos de hotel e tal.
Vai daí que os juízes, representados por suas associações, perceberam no expediente uma maneira de também aumentar os ganhos mensais. Diz a Constituição que parlamentares e ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) devem ter vencimentos equiparados. Ora, os parlamentares não têm o auxílio-moradia?
Resultado: os tribunais, primeiro, deram o auxílio-moradia aos ministros do STF. Faz menos sentido do que no caso dos parlamentares. Os ministros do Supremo devem morar em Brasília, de modo que deveriam ter um auxílio apenas no momento da mudança, quando são nomeados para o cargo. Seria uma verba específica, contra recibos específicos. Mas, de novo, vá lá. Aos 70 anos eles se aposentam, voltam para suas cidades, de modo que se pode considerar a passagem por Brasília provisória, ainda que por muitos anos. É uma interpretação forçada, mas enfim...
Porém a coisa avançou. Como os vencimentos de juízes dos escalões inferiores são uma parcela daqueles recebidos pelos colegas do Supremo, deu a lógica, a lógica deles, claro: toda a magistratura ganhou o direito de receber o auxílio-moradia - esse valor não contando como salário e, portanto, podendo furar o teto.
Não importa se o magistrado é transferido ou não, se está de passagem, se mora ali mesmo - ele recebe o auxílio para sempre, ou seja, não é mais uma verba especial, mas um vencimento mensal. E mais: aplicaram retroativo. Acrescente aí a correção monetária, etc., e juntou-se um bom dinheiro a receber.
Tudo absolutamente normal, diz o presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, desembargador Ivan Sartori. Normal?
Imagine, caro leitor, que os parlamentares tivessem criado um auxílio-misto-quente, para pagar lanches quando se deslocassem pelos seus Estados para falar com os eleitores. Faria sentido estender essa verba aos magistrados?
Na verdade, toda essa discussão não faz sentido. O ponto é outro. Os magistrados acham que não são remunerados à altura do seu trabalho. O desembargador Sartori disse, em entrevista à revista Veja, edição 2.255, que R$ 24 mil mensais é inferior às necessidades de um juiz do Tribunal Superior do Estado.
Essa é uma boa discussão - quanto deve ganhar um juiz no Brasil? - e a categoria deveria mesmo abrir publicamente o debate. Mas, em vez disso, o que se viu nos últimos anos? Uma atitude corporativa que inventa quebra-galhos, como esse do auxílio-moradia, para aumentar os vencimentos fazendo parecer que não se trata de aumento nem de vencimento. Tanto que, como admite Sartori, os juízes recebiam os atrasados sem que isso constasse nos holerites. Segundo ele, deve ter sido um "equívoco administrativo", mas foi necessário criar o Conselho Nacional de Justiça para que esses "equívocos" começassem a ser apurados. Já para Sartori, o problema apareceu quando a "imprensa começou a bater nos juízes", com essa "história de que o Poder é uma caixa-preta". Ocorre, porém, que foi só a partir daí que o público ficou sabendo dessas e de outras situações.
De todo modo, o desembargador Sartori tem uma boa atitude. Veio a público para o debate. Comecemos, pois.
Diz ele que o "alto executivo de uma empresa" ou o presidente da Petrobrás ganham muito mais que os R$ 24 mil de um magistrado estadual. Verdade. Mas ambos são demissíveis a qualquer momento. Os acionistas controladores nem precisam explicar. Lembram-se do caso Roger Agnelli? Ou de José Gabrielli? Juízes só perdem o cargo se fizerem coisas muito erradas, na frente de muita gente. E são aposentados com vencimentos.
Além disso, não são R$ 24 mil. É preciso acrescentar os auxílios e outras vantagens, como os dois meses de férias. É curioso aqui. Sartori defende os dois meses dizendo que o trabalho do juiz é desgastante e que vários colegas têm problemas psicológicos. Logo, precisam descansar 60 dias, e não 30 como os demais trabalhadores.
Ganha uma vaga de juiz, sem concurso, quem apontar o trabalho de um brasileiro comum que não seja desgastante e estressante. E vamos falar francamente: o trabalho de um juiz não pode ser mais pesado do que, digamos, o médico operando no pronto-socorro, o policial trocando tiros com os bandidos, o operário moldando peças no torno ou o boia-fria colhendo cana.
Além disso, o próprio Sartori comenta, em outro trecho da entrevista, que poucos juízes tiram os dois meses de férias. A maioria "vende" um período, de modo que se trata de um salário extra. A maioria também vende a licença-prêmio (três meses a cada cinco anos), outra providência que engorda os vencimentos. Com isso, os juízes ficam como os demais trabalhadores, um mês de férias, mas ganhando um extra. E ninguém tem mais feriados do que os 35 dias/ano dos juízes.
Voltaremos ao debate, mas deixo desde já um outro ponto. Não se trata apenas de saber quanto um juiz merece ganhar, mas também de quanto o Estado pode pagar.
*É jornalista


Juízes do Brasil todo reclamaram da coluna da semana passada, com o mesmo título acima. Protestaram mais, porém, magistrados do Judiciário estadual de São Paulo. Estes se queixam duplamente: dos vencimentos básicos, que consideram baixos, como todos, e de sua situação, digamos, desfavorecida. Os paulistas têm menos vantagens do que seus colegas de outros Estados.

Muitos me enviaram links para as leis estaduais que regulam a remuneração dos juízes, algumas delas mais do que generosas. Muito citada foi a Lei n.º 5.535/09, do Estado do Rio de Janeiro, pela qual desembargadores e juízes, mesmo aqueles que acabaram de ingressar na carreira, chegam a ganharmensalmente de R$ 40 mil a R$ 150 mil. A remuneração básica, de R$ 24.117,62, é hipertrofiada por “vantagens eventuais”. Alguns desembargadores receberam, ao longo de apenas um ano, R$ 400 mil cada,somente em penduricalhos, conforme apontoureportagem deste mesmo Estadão.

Tudo dentro da lei, tem repetido o presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Manoel Alberto Rebêlodos Santos – mas a lei é alvo de uma ação direta de inconstitucionalidade. Segundo juízes paulistas, o Judiciário do Distrito Federal é ainda mais escandaloso.

Assim, por ironia, ficamos sabendo que a argumentação da coluna da semana passada fazia todo sentido. Por todo o Brasil, juízes e magistrados deram um jeito de driblar a lei do teto com “vantagens pessoais” que multiplicam muitas vezes o chamado “subsídio”. Ficamos sabendo, também,que há desigualdade entre os juízes e, de um modo geral, no quadro do aparelho Judiciário (promotoresganhandomaisque magistrados, por exemplo).

Os juízes paulistas que me escreveram não reivindicam esses “quebra-galhos”. Mas acham que ganham pouco e merecem mais.

Dizem que R$ 20 mil por mês, no início de carreira, não está à alturado trabalho e da função social. Para escapar das avaliações subjetivas – todo mundo acha que trabalha muito e ganha pouco – , é preciso fazer comparações.

Um juiz federal nos Estados Unidos começa ganhando US$ 174 mil ao ano, o que dá pouco mais de R$ 25 mil ao mês, ao câmbio de R$ 1,75. O juiz  paulista ganha R$ 260 mil ao ano (13 salários), o que dá cerca de US$ 150 mil – ou US$ 24 mil a menos do que seu colega americano.

Mas a comparação não se esgota aí. O juiz americano ganha o equivalente a 3,6 vezes a renda per capita nacional. O brasileiro ganha 12,5 vezes mais.

Ainda na última sexta-feira, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) informou que o salário médio real do trabalhador brasileiro, em janeiro deste ano, foi de R$1.672. Ou seja, os juízes (e demais da carreira judiciária) ganham pelo menos 12 vezes mais que a média nacional.

Resposta dos diretamente interessados: os salários são baixos no Brasil, não se pode nivelar por aí. Mas são baixos, comparados com os americanos, justamente porque o país não é rico.

E aqui reparem: os Estados Unidos estão entre os países mais ricos do mundo e mesmo assim não pagam a seus magistrados 12 vezes mais que a média ou a renda per capita nacional.

Muitos, de novo, compararam os salários da magistratura com os ganhos dos advogados do setor privado. Não faz sentido. John

Roberts, presidente da Suprema Corte dos Estados Unidos, faturou US$ 1 milhão em 2003, seu último ano na iniciativa privada, como advogado. Ganha atualmente US$ 223 mil ao ano, ou cerca de R$ 32,5 mil por mês, pouco mais que o vencimento básico do juiz da Suprema Corte brasileira.

Roberts tem batalhado pelo aumento salarial dos seus juízes, mas reconhece que não há como compará-los com advogados bem-sucedidos. Se fosse assim, observa, ele não teria como explicar por que trocou a advocacia pela magistratura.

Mesmo porque, se quisesse ganhar mais dinheiro e se considerasse competente para enfrentar o mercado privado competitivo, ele poderia perfeitamente renunciar ao cargo na Suprema Corte. Como podem fazer todos os demais, lá e aqui.

Já um outro membro da Suprema Corte, Stephen Breyer, sugeriu comparar o salário do juiz com o de um professor titular de uma boa faculdade de Direito. Lá, o mestre ganha mais. Aqui, bem menos.

Tudo considerado, o juiz brasileiro, mesmo sem os penduricalhos, ganha proporcionalmente mais que seu colega americano e mais que os colegas de muitos outros países mais ricos. E muito mais que a média do trabalhador brasileiro, estando entre os mais bem pagos do setor público.

Perderam a noção. Além dessa discussão, digamos, objetiva, há magistrados que, falando francamente, perderam a noção.

Quando defendem o salário, dizem que não é líquido, pois descontam Imposto de Renda e previdência. Ora, todos os assalariados descontam.

Dizem que pagam mais para a sua previdência, os 11% sobre o salário total. Verdade. Mas recebem aposentadoria praticamente integral, muito mais vantajosa do que a do pessoal do INSS.

Reclamam de que não têm FGTS. Lógico que não, pois não podem ser demitidos.

E há campeões nesse quesito. O novo presidente do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Marcelo Bandeira Pereira, disse à jornalista Juliana Bublitz, do Zero Hora, sobre a “necessidade” das férias de 60 dias: “Trabalhamos com o raciocínio, com a cabeça, e o juiz é juiz 24 horas por dia. Existem dois meses de férias, mas um mês nós consumimos tentando recuperar o serviço atrasado”.

Ora, quem não trabalha com a cabeça, além dos cavalos? 

E como um leitor sugeriu ao meritíssimo: “Faça como todo brasileiro normal, curta os 30 dias e trabalhe os outros 30 dias normalmente, que o serviço não atrasa”.

sardenberg@cbn.com.br
www.sardenberg.com.br 

A metástase da mediocridade



Esse mal-estar civilizacional vem da sistemática política de desidratação de utopias que alimenta os tais 'projetos para o País'

Quinta, 19 de Fevereiro de 2012, 03h07
CARLOS GUILHERME MOTA É HISTORIADOR, , PROFESSOR EMÉRITO DA FFLCH-USP, PROFESSOR DA UNIVERSIDADE MACKENZIE. AUTOR DE , EDUCAÇÃO, CONTRAIDEOLOGIA, CULTURA , (ED. GLOBO)
CARLOS GUILHERME MOTA

O grande historiador Eric Hobsbawm gosta muito de nós, e do Brasil. Em uma de suas obras, porém, menciona São Paulo e a Cidade do México como das mais inabitáveis do planeta. Um amor ambíguo, vê-se, como quase todos os amores. Em outra obra, a conhecida A Era dos Extremos, o historiador "muy amigo" diz que o Brasil é um "monumento à irresponsabilidade social", única referência ao País.

Como discordar? A irresponsabilidade política e ideológica continua a ser uma das marcas do atual debate político-ideológico brasileiro, tanto no Estado como na cidade de São Paulo, urbe em que já floresceram algumas das mais significativas de nossas lideranças, como Franco Montoro e Mário Covas. Vale recordar também que São Paulo ofereceu à Nação figuras como Jânio Quadros, Paulo Maluf e Celso Pitta…

O problema não ocorre apenas neste Estado e nesta capital, pois quanto ao resto do País, o aterrador artigo "As cidades e o sertão", do professor Luiz Werneck Vianna, sobre a nomeação de Aguinaldo Ribeiro (PP) para o Ministério das Cidades, publicado na página 2 do Estado em 14 de fevereiro, dá-nos a medida do buraco em que estamos todos metidos neste infernal "modelo" político de "governo de coalizão". Um modelo, em verdade, fruto do velho coronelismo, enxada e voto, ou atualizando a tese do saudoso Victor Nunes Leal, do mandonismo, curral e mídia eletrônica…

Hoje cresce a irresponsabilidade dos políticos frente aos problemas da cidade de São Paulo, do Estado e do País, um dos traços mais graves de nossa vida em sociedade. De fato, vem ocorrendo um fenômeno novo, sociologicamente detectável, que é a mediocridade das elites dominantes (PT incluído), doença psicossocial cuja metástase vai se tornando incontrolável. Pois o fato é que o tom geral, o colorido da cena política é de uma indefinição que só a mediocridade dos novos e já velhos postulantes à Prefeitura consegue explicar. E dos atuais governantes, inclusive o prefeito Gilberto Kassab e o governador Geraldo Alckmin, que se comportam como se estivessem operando em aldeias do interior no século 19: com muito esforço, alcançarão os padrões da Primeira República, sem diminuirmos aqui as figuras de um Prudente de Morais ou de um Rodrigues Alves…

Se, com método e rigor, Alckmin mediocrizou a máquina do Estado, por seu lado Kassab, um dos beneficiários eleitorais da tal bolha da classe C, esvaziou o conceito de política ao (in)definir que seu partido não é de direita, nem de centro nem de esquerda, nem novo... (Saudades do PFL, em que bem ou mal localizavam-se figuras como os ilustrados professores Marco Maciel e Claudio Lembo, corações jansenistas). Figuras com algum brilho, como Guilherme Afif Domingos, transformam-se em figurantes de teatros sem palco, pilotos sem avião, professores sem aula. Envelhecem apenas, enquanto em Brasília Michel Temer, representante do Marais, estiola-se à sombra da Presidência, sem lançar uma singela ideia para um novo projeto de Nação.

Desidratação. O ex-presidente Lula, por sua vez, desidratou o debate político-ideológico que polarizaria os partidos de esquerda, a começar pelo PT domesticado, ao fazer crer à Nação e suas elites que as lutas de classes desapareceram da realidade, amortecendo os enfrentamentos para a real democratização de um país sem populismos. Mas teve ele o mérito de levantar um nome sério para disputar a Prefeitura paulistana, Fernando Haddad, retirado do bolso do colete. Que não é mau, pois ciente do tamanho do problema nacional: o da Educação.

Os tucanos, com o pouco apetite para a política que sempre demonstraram, aguaram a hipótese de um partido socializante moderno, oferecendo hoje à cena local e nacional um modesto rol de nomes embaçados, provocando as broncas do ex-presidente Fernando Henrique, desiludido, voz solitária nesse segmento de burgueses desencontrados. O bem formado José Serra, com um eleitorado significativo, continua a ser o carismático de si próprio, dividindo sempre a base tucana.

Quanto aos outros partidos, à exceção do ambíguo e pouco socialista PSB, cuja ambição pelo poder inquieta a todos, prepara-se para ser uma alternativa… Questão de tempo? Os partidos mais à esquerda, como o PSOL, crescem pouco nessa sociedade de consumo e espetáculo.

Enquanto isso, a vida econômico-financeira do País corre paralela a esse mundo dos Polichinelos, centrada em seus negócios, com quadros competentes e meio-sorriso de desprezo à galáxia da mediocridade que, sem outra palavra, ainda insiste em se autodenominar de "política". Política, para quem não lembra, foi conceito de alta significação, dos gregos a Churchill, De Gaulle, Mandela…

Para explicar esse mal-estar civilizacional basta-nos constatar a sistemática política de desidratação de utopias usada para alimentar os tais "projetos para o País". A deseducação cresce até nas boas escolas e universidades, sem professores para impor limites ao uso de celulares em plena aula. E sem educação não há que se falar em sociedade civil, nesta anticidade que é a São Paulo atual.

Súditos-contribuintes. O que está em jogo hoje é o futuro desta cidade. Teses e novas ideias sobre ela fervilham, e urbanistas competentes, como Raquel Rolnik, não nos faltam. Nada obstante, os sucessivos ocupantes do Ministério das Cidades se comportam como se nada tivessem a ver com a problemática urbana, "dimensão crucial da vida contemporânea" como advertiu Luiz Werneck Vianna, que diz respeito a todos nós, súditos-contribuintes e ainda não cidadãos.

Só que os candidatos a prefeito não discutem temas, teses, questões nacionais e internacionais (importantes nesta cidade cosmopolita). Programas não são comparados, nem de longe considerados. Evitam-se questões fundamentais, como transporte, saúde, espaços públicos, saúde. Por que não se inspiram na postura de figuras e políticas dos prefeitos de Nova York, São Francisco, Paris, Roma, Londres, Xangai, Tóquio? Esse silêncio é suspeito. Em muitos sentidos. Qual o por quê desse silêncio? Em larga medida, creio, por falta de nível, conhecimento e coragem dos candidatos, e também para não fecharem posições que comprometam mais conciliações espúrias no futuro próximo, sempre negociável.

A falência do atual modelo político se deve, pois, à progressiva deseducação dessa precária sociedade civil, ainda caudatária do padrão civilizacional marcado pelo passado/presente estamental-escravista. Romper com ele é romper com um sistema ideológico ainda marcado pela casa grande & senzala, inclusive nos projetos de condomínios, guetos de apartamentos de "alta classe" para os yuppies do capitalismo selvagem de periferia.

No Brasil, por causa dos mecanismos da Conciliação, que datam de 1850 e perduram nesses odiosos "governos de coalizão", os partidos perderam importância, esvaziados de seus conteúdos propriamente ideológicos, programáticos, civilizatórios. Suas lideranças abriram mão da crítica, da renovação urbana, da resistência à pseudomodernização selvagem, e por isso perdemos o futuro, afundados nesta sociedade de massas deseducadas, em que o espetáculo fica por conta dos Big Brothers Brasil, Datenas e igrejas de massas. O que falta é liderança efetiva, arejada e firme, para articular um projeto nacional moderno. Democrático, mobilizador, confiável.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

O segredo de Paulinha, na Piauí 65


Como uma garota do outro mundo fez mil amigos em dois meses
por Tomás Chiaverini
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Paula Merkell é moderna, descolada e sutilmente misteriosa. Formada em moda, está no auge dos 28 anos e é muito popular. Em seu perfil do Facebook, solicitações de amizade pululam como flashes num show do Restart. Em dois meses foram cerca de 100, acompanhadas por flores virtuais, poemas e saudações enviados por amigos pixelizados de todo o país. Para os mais próximos, a notícia a seguir será um tanto dolorosa: sim, Paula Merkell não existe.
A musa não passa de uma marionete eletrônica de breve existência. Diferentemente de outros perfis falsos que se multiplicam pela rede, o de Paulinha não pretendia promover marcas, xeretar a vida alheia, buscar alvos para crimes ou colher dados para campanhas promocionais. Foi criado com o propósito único de amealhar mil amigos, meta que cumpriu em 56 dias.
Aos marmanjos que insistiram para a jovem postar fotos pessoais, causará mais aflição saber que a pessoa no comando de Paulinha é homem. Mas que não se martirizem. O avatar da jovem foi criado para figurar como um pires de mel ofertado aos súditos de Mark Zuckerberg. As pequenas armadilhas começaram já na escolha do nome. Brasileiro, simples e despojado, secundado por um sobrenome forte, emprestado da chanceler alemã Angela Merkel, com um “L” a mais no final, para minimizar o risco dos homônimos.
Inspirada em Andy Warhol, Paula protegeu-se escolhendo como foto de identificação uma colorida e sensual face de Marilyn Monroe. O restante do perfil seguiu blasé e descompromissado. Uma descolada com pitadas de erudição de almanaque. Empregadores? “Eu mesma”, opção compartilhada por 323 pessoas. Televisão? Paulinha não vê, como outros 2,7 mil usuários, reais ou fictícios. Cidade natal? Algo inusitado para dar um toque de realismo: Sacramento, na Califórnia. Nos livros, duas unanimidades da literatura mundial (Cem Anos de Solidão e Ensaio Sobre a Cegueira), um eterno moderninho (O Apanhador no Campo de Centeio) e um toque de luxúria (Delta de Vênus) – um atrativo para internautas interessados em curtir mais do que apenas suas atualizações de status.
Para completar a fachada, a srta. Merkell precisava de amigos. Afinal, perfis solitários despertam suspeitas. O primeiro adicionado foi o próprio titereiro no comando de Paulinha. Ele a aceitou com uma mensagem de “Bem-vinda”, ao que a moça – no caso, ele mesmo – respondeu com um simpático “Antes tarde do que nunca, né?”.
Iscas devidamente posicionadas, hora de testar a arapuca. Qual uma desinibida garota no recreio do primeiro dia de aula, Paulinha partiu em busca de amizades. Mas no mundo virtual das aparências nada é tão simples, e convém planejar com prudência cada passo.

ara iniciar sua complexa rede de relacionamentos, nossa personagem escolheu um talento em ascensão da literatura brasileira contemporânea – uma escritora jovem, bonita e talentosa. Como personalidade pública, a autora deve ter tomado Paulinha por uma fã, e logo aceitou o pedido de amizade. A partir daí, sempre seguindo as sugestões do Facebook de “pessoas que você talvez conheça”, a sedutora falsária disparou pedidos de amizade em abundância, ainda que regidos pelos critérios de um certo padrão de bom gosto. Priorizou usuários cujas fotos de perfil não contivessem bombados sem camisa, periguetes de biquíni, bonés para trás, correntes prateadas, garrafas na mão, animais de estimação e desenhos do Homer Simpson.
Em pouco tempo, uma dezena de internautas sucumbiu aos encantos de srta. Merkell, até que uma desagradável mensagem espocou na tela. Por enviar muitas solicitações a desconhecidos, Paulinha passaria quatro dias proibida de encaminhar novos pedidos. O Facebook não divulga o funcionamento de seus filtros. O especialista em segurança da internet Nelson Novaes Neto especula que programas da rede social trabalhem com curvas de comportamento. Se muitas pessoas recebem solicitações de amizade e não respondem, esse perfil entra numa lista suspeita, mesmo que ninguém o denuncie como falso.
Fosse Paulinha de carne e osso, poderia ter sofrido abalos emocionais. Como não existe, foi adiante. Cumprido o castigo, continuou adicionando toda e qualquer pessoa que não lhe parecesse ridícula em demasia. Com o tempo, passou a receber em seu mural mensagens de finalidade variada. Geralmente saudações simples, mas afetivas e carinhosas, como se dirigidas a uma pessoa conhecida. Na profusão de carências e manifestações insólitas de afeto das redes sociais, não faltaram também episódios pitorescos.

m poeta de Pirajuí, no interior paulista, enviou versos sobre a beleza da amizade. Um artista plástico de Campinas, para se diferenciar do banal “Paulinha” com que os navegantes saudavam a moça, sapecou logo um “Pablita” em sua mensagem de boas-vindas. Um escritor de Iporã, no Paraná, garantiu que a garota inexistente era “uma pessoa mais que especial” e desatou a lhe dirigir elogios, que se desdobravam em lições de autoajuda. No final, fez propaganda de seu primeiro livro, recém-lançado, e se dispôs a conversar sobre a obra. Por fim, uma senhora de São Paulo garantiu ter trabalhado com Paula Merkell numa agência de produções artísticas.
Com o esnobismo que cedo ou tarde se manifesta em moças bonitas – inclusive as inexistentes –, Paula seguiu em silêncio. Deliciada e orgulhosa, observou o número de amigos crescer em progressão geométrica. Gananciosa, seguiu acrescentando cada vez mais gente. O cérebro eletrônico do Facebook ainda tentou barrá-la e colocou-a em quarentena mais duas vezes. Mas não teve jeito.
No fim da tarde de 6 de dezembro, um mestre maçom de origem nipônica não resistiu à coceirinha na ponta dos dedos. Mesmo sem conhecer Paulinha, entrou em seu mural e escreveu: “Uau, sou o teu milésimo amigo! Seja bem-vinda, cara Paula! Abração.” Com a missão cumprida, nada impedia que fosse deletada. Mas preferiu seguir adiante. Em seu aniversário – no dia 25 de dezembro, em direta concorrência com Jesus –, Paula Merkell recebeu cinquenta mensagens de parabéns, felicidades, tudo de bom, muitos anos de vida. No fechamento desta edição, tinha 1 124 amigos. Supostamente reais.