segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Eleição de síndico, por JOSÉ ROBERTO DE TOLEDO - O Estado de S.Paulo


O paulistano não percebeu, mas foi dada a largada para mais uma eleição de prefeito de São Paulo. É a oitava desde a redemocratização, e a primeira sem favoritos nem estrelas. Em quase três décadas, nunca houve uma eleição majoritária na cidade sem Suplicys, Malufes e Serras. E a renovação não fica por aí. É uma disputa sem outros caciques. Os candidatos são todos índios - uns menos anônimos do que outros, é fato, mas nenhum comanda uma tribo própria.
E os 20% de Celso Russomanno (PP), ou os 15% de Netinho de Paula (PC do B) na mais recente pesquisa Datafolha? Essas taxas entram mais na categoria recall do que na de intenção de voto. São um apelo desesperado do eleitor à própria memória diante de uma lista de ilustres desconhecidos. Dá até para imaginar o entrevistado pensando: "Ah, desse eu já ouvi falar".
Quando o pesquisador aparece com uma pergunta que o entrevistado não sabe responder, muitos respondem mesmo assim - seja para agradar o entrevistador, seja por vergonha de admitir ignorância. Cabe a quem analisa o resultado discernir o que é voto firme de simples efeito lembrança. O eleitor responde a pesquisas com a memória, mas vota com outras partes do cérebro.
O dado mais relevante da pesquisa Datafolha é que nenhum pré-candidato é citado espontaneamente por mais do que 1% ou 2% dos paulistanos. Os nomes mais ditos de pronto são os de Marta Suplicy (PT), com 8% de citações espontâneas, e o do prefeito Gilberto Kassab (PSD), com 3%. Graças à Lula e à legislação, ambos estão fora do páreo.
No cenário aplainado pelo anonimato coletivo dos prefeituráveis, outras forças, que não o carisma pessoal, comandarão a eleição. A atual geração de eleitores paulistanos verá a primeira campanha que não é uma disputa de personalidades. Sem intimidade com os candidatos, o voto não deverá ser apenas na pessoa física. Afinidades e antipatias pessoais serão secundárias no processo.
Quais vetores levarão o eleitor a confirmar este ou aquele nome na urna eletrônica, então?
Em regra, o prefeito de turno é um forte cabo eleitoral. Não é o caso de Kassab. Com apenas 20% de "ótimo" e "bom" contra 40% de "ruim" e "péssimo", o prefeito paulistano transfere mais ônus do que bônus para seu candidato. A curva de popularidade de Kassab é um espelho invertido do seu primeiro mandato. A recuperação de 2006 a 2008 virou franca decadência nos últimos três anos. Nada indica reversão dessa tendência. O trânsito está cada vez pior, não há melhorias sensíveis na saúde nem na educação.
Na eleição passada, o prefeito candidato à reeleição vinha em ascensão e usou a propaganda eleitoral para melhorar ainda mais a imagem de sua gestão. Desta vez, nem muito tempo de TV o candidato de Kassab terá. Se a Justiça não mudar as regras, o nome do PSD ficará no bloco dos nanicos. Só lhe sobra o dinheiro, que é suficiente para atrair políticos para uma nova sigla, mas não compra, nem metaforicamente, os votos necessários para eleger o prefeito num colégio eleitoral de mais de 7 milhões de almas.
Apesar do esforço comovente do governador Geraldo Alckmin (PSDB) no sentido oposto, a gestão de Kassab tem tudo para ser a Geni da campanha eleitoral de 2012. Essa é a primeira desvantagem dos pré-candidatos tucanos. Enquanto seus adversários estão livres para criticar um prefeito cada vez mais impopular, os quatro são pressionados pelo governador a pegar leve com o possível futuro aliado.
A segunda desvantagem é que enquanto outros partidos trabalham há meses para dar visibilidade aos seus respectivos candidatos quase anônimos, o PSDB patina para escolher o seu entre nomes que oscilam de 2% a 6% na pesquisa estimulada do Datafolha. Tempo é voto nesta eleição.
Antecipando que a sucessão paulistana seria a mais simbólica entre todos os 5.565 pleitos de 2012, e que a disputa se daria entre desconhecidos, Lula atropelou o PT e impingiu Fernando Haddad ao partido. O ministro da Educação não passa de 4% na estimulada, mas terá o ex-presidente e Dilma Rousseff como padrinhos. Mais importante, conta com o apoio da máquina eleitoral petista.
Desde 1988, o candidato a prefeito do PT sempre foi um dos dois primeiros colocados na eleição paulistana. Por esse retrospecto, Haddad só precisa se fazer conhecido entre militantes e simpatizantes do partido para chegar ao 2.º turno. A questão é: quem mobilizará o antipetismo e ocupará a outra vaga no turno final? Tucanos, egressos do malufismo ou surgirá uma quarta força política na cidade?
A resposta passa pelo clima geral da opinião pública no momento da eleição (e, portanto, pelo ritmo do consumo/economia), pelo bom aproveitamento do palanque digital (TV + internet), pela impopularidade de Kassab e por um fator ainda pouco lembrado, mas muito importante: o efeito abandono.
Cresce a percepção entre paulistanos de que Kassab largou a cidade para se dedicar à política comezinha. O trauma se soma à renúncia de José Serra para disputar o governo paulista em 2006, menos de dois anos após ter sido eleito prefeito. A Prefeitura de São Paulo virou escada eleitoral. O cargo de prefeito perdeu importância, e a gestão da cidade ficou em segundo plano.
Ganhará votos em 2012 o candidato que conseguir convencer o eleitor que administrar São Paulo é seu maior objetivo na vida, e que se dedicar à cidade lhe é mais importante do que disputar outras eleições. O paulistano é bem capaz de eleger um síndico.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

O humor de milhões


Fernando Reinach - O Estado de S.Paulo
Como varia o humor da humanidade ao longo do dia? Até recentemente, medir o humor de um número significativo de pessoas por períodos prolongados era impossível. Estudos pontuais e nossa vivência pessoal sugerem que nosso humor varia ao longo do dia, acompanhando as variações hormonais e outros mecanismos circadianos. Esses estudos, baseados em amostras pequenas de estudantes universitários, nunca foram convincentes. Há pouco, uma nova fonte de dados ficou disponível: os textos do Twitter.
O Twitter permite que pessoas emitam opiniões e compartilhem sentimentos e vivências por curtas mensagens de texto (até 140 caracteres), usando seus celulares. Ao contrário do e-mail, onde as mensagens são geralmente trocadas entre pessoas, no Twitter as mensagens são enviadas por uma pessoa e podem ser lidas por qualquer outra interessada. É como se cada usuário se transformasse em uma estação de rádio, transmitindo para quem quiser ouvir. Hoje, mais de 100 milhões de pessoas utilizam o serviço, enviando em média 230 milhões de mensagens por dia. Dois cientistas americanos decidiram medir o humor da humanidade analisando essas mensagens.
Como as mensagens são públicas, a empresa permitiu que os cientistas copiassem 500 milhões de mensagens enviadas entre fevereiro de 2008 e janeiro de 2010 por todos os usuários de 84 países. Para garantir que a amostra fosse representativa, foram coletadas até 400 mensagens enviadas por cada usuário do Twitter nesse período.
Assim, se uma pessoa mandou mais de 400 mensagens, somente 400 foram coletadas. Para os usuários que mandaram menos de 400 mensagens, todas foram copiadas. O texto de cada uma delas foi analisado por computador, de modo a detectar a presença de mil palavras com conotação positiva, como "feliz", "concordo" e "fantástico", ou negativas como "medo", "discordo" e "ódio". A partir da frequência desses dois grupos de palavras, foram criados dois índices, um chamado "grau de negatividade" e outro, "grau de positividade". Como a data, o horário e o local de origem de cada mensagem são conhecidos, é possível analisar como esses índices variam ao longo do dia, da semana ou mesmo do ano, em cada região do planeta.
Analisando esses gráficos, os cientistas descobriram que o índice de positividade varia ao longo do dia. O primeiro pico ocorre logo após amanhecer e vai baixando ao longo do dia. Ao anoitecer, o índice aumenta novamente, com um pico ao redor da meia-noite e depois cai ao longo da madrugada.
O índice de negatividade tem o comportamento inverso. Esse padrão de oscilação diário ocorre de forma semelhante, todos os dias da semana, sendo que a segunda e a terça-feira são dias onde o mau humor é maior. Você pode imaginar que o mau humor ao longo do dia esteja associado à necessidade de trabalhar, mas os dados dos sábados e dos domingos contêm o mesmo ciclo de dois picos de bom humor e um vale de mau humor no meio do dia.
O curioso é que o pico de bom humor matinal no domingo ocorre duas horas mais tarde, o que provavelmente reflete o fato de as pessoas acordarem mais tarde. Quando os dados de cada um dos 84 países foram analisados separadamente, foi observado que esse ciclo diário é característico do ser humano, ocorrendo de modo semelhante em diferentes geografias, culturas, línguas ou raças.
Ao longo do ano, o humor da humanidade também varia de maneira previsível. Os picos de bom humor são maiores no verão que no inverno e dependem diretamente da variação no comprimento do dia. À medida que o dia fica mais longo, o humor melhora, quando o dia fica mais curto, o humor piora.
O interessante é que essa variação, como era de se esperar, ocorre de maneira inversa no Hemisfério Norte e no Sul. Tudo indica que o humor é grandemente influenciado pela variação na incidência de luz solar.
Outra descoberta interessante, feita com os dados recolhidos no Twitter, é que dentro desse padrão geral é possível identificar dias especiais, onde reina o bom humor (ano-novo e, mais recentemente, o casamento real na Inglaterra) ou o mau humor (o terremoto no Japão e a morte de Amy Winehouse).
Esses resultados demonstram mais uma vez o quanto nosso passado animal continua conosco. Apesar de nossa cultura sofisticada e de toda a tecnologia, nosso humor ainda é, em grande parte, determinado por quanto de sol recebemos ao longo do dia e por nosso ciclo de sono e vigília.
MAIS INFORMAÇÕES: DIURNAL AND SEASONAL MOOD VARY WITH WORK, SLEEP, AND DAYLENGHT ACROSS DIVERSE CULTURES. SCIENCE, VOL. 333, PÁG. 1.878, 2011

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Pulo do gato na Cabeça do Cachorro



Uma combinação inteligente de energia solar e pequenas hidrelétricas ajudaria a estratégica região amazônica no desafio da defesa nacional

04 de dezembro de 2011 | 3h 07
, SÃO GABRIEL DA CACHOEIRA, AM - O Estado de S.Paulo
FERNANDO GABEIRAA Cabeça do Cachorro, uma região do extremo noroeste do Brasil, tem esse nome por causa de sua forma no mapa. Com 200 quilômetros quadrados, duas fronteiras (Colômbia e Venezuela), 23 etnias e quatro idiomas, é uma complexa área da selva amazônica diante da qual uma frase nos conforta: o Exército e a FAB cuidam. Quem se arrisca a verificar in loco, pagando o equivalente a uma viagem à Europa, descobre algo que o Complexo do Alemão, no Rio, e as favelas de Porto Príncipe revelam: a realidade é complexa demais para se resolver apenas com soldados armados.
Ao chegar a São Gabriel da Cachoeira (AM), a cidade mais importante da região, quem tentar usar os banheiros do aeroporto, recua diante do cheiro insuportável. Quem administra esse aeroporto?, é a pergunta que vem à cabeça. Ninguém, responde o agente da PF que faz plantão em dias de voo. Aeronáutica, Infraero e prefeitura disputam a primazia. Como ninguém venceu, ninguém se instalou.
O cenário é deslumbrante. Banhada pelo Rio Negro, principal personagem da Cabeça do Cachorro, São Gabriel, com praias de branquíssimas areias, poderia ser um polo turístico. Mas os vários pontos de deságue do esgoto no Rio Negro mostram que ainda se está muito longe desse sonho.
Com 40 mil habitantes, sede da Brigada de Infantaria de Selva, São Gabriel não se comunica. A conexão de internet não existe, embora as lan houses estejam sempre cheias de adolescentes. Elas servem apenas para os jogos virtuais e são envoltas numa penumbra de inferninho. A única conexão telefônica é pela Tim, assim mesmo, de vez em quando, em certos lugares. É precisamente nessa peleja para se comunicar que o visitante descobre uma realidade maior: o apagão.
Energia e conexão não se resolvem com a presença armada. O Brasil gastou R$ 1,4 bilhão para instalar o Sivam (Sistema de Vigilância da Amazônia), baseado num supercomputador, radares e aviões de patrulha. Mas de que adianta esse aparato no ar se, no solo, não há conexão?
Sede da 2ª Brigada de Infantaria de Selva, transferida de Niterói para a Amazônia, São Gabriel não é uma ilha isolada. Os militares se comunicam e os telefones fixos funcionam. Mas é muito pouco para a mais importante cidade de uma região de floresta que faz fronteira com dois países, um deles a Colômbia, que vive, ao mesmo tempo, uma luta contra a guerrilha das Farc e o tráfico de drogas - e os dois juntos em algumas regiões.
D. Marta, cozinheira do pequeno restaurante Íris, na beira do Negro, encerra seu expediente às 15 horas, religiosamente. Ela não pode faltar às aulas de informática que começam quando fecha o restaurante. Assim como ela, centenas de pessoas em São Gabriel aprendem a informática para usá-la na chegada da plena conexão. A posição estratégica e a vontade das pessoas justificam a transformação de São Gabriel numa cidade inteligente, o primeiro pulo do gato que o século 21 oferece a uma região que precisa não só crescer, mas responder com eficácia às necessidades de defesa nacional.
Um projeto de informatização da Cabeça do Cachorro não custa mais que a reforma do Maracanã. E mesmo se ultrapassar R$ 1 bilhão, seus ganhos a longo prazo são muito maiores. O único, e, por enquanto, intransponível, obstáculo é político. Que candidato teria condições, diante das massas metropolitanas, de afirmar a primazia do controle da Amazônia sobre a Copa do Mundo?
Ainda assim, existe um outro obstáculo, quando se pensa na alternativa de cooperação estrangeira: o argumento da soberania nacional. Mas o próprio Sivam, comprado com muito custo, dependeu da tecnologia estrangeira.
O Brasil tem sete postos de fronteira na região da Cabeça do Cachorro. De um modo geral, são comandados por um tenente e mantêm boas relações com as comunidades indígenas. Acontece que a presença do Exército o tornou uma espécie de símbolo do governo. Há momentos em que os postos não podem compartilhar a energia com os índios. São os mais difíceis. A comunidade indígena trata o Exército como se tivesse falhado na tarefa de levar melhorias para aquela área do Brasil. Nem sempre é possível produzir energia excedente nos postos. Além disso, a FAB não transporta botijões de gás. Eles sobem em barcos o Rio Negro e, em certos percursos, precisam superar nove cachoeiras para alcançar seu destino. O motor é destacado do barco e ambos são carregados nas costas por trilhas na selva. É outro ponto frágil não só da economia como da própria segurança.
O século 21 oferece o segundo pulo do gato para a Cabeça do Cachorro: uma combinação de energia solar com pequenas hidrelétricas. Há algumas experiências com energia solar na região. Não foram bem porque não se pensou em treinar gente para manutenção. Há chuva diária e a Cabeça do Cachorro é uma região de muitos raios. Mas não é algo intransponível em termos técnicos.
De novo, a questão dos recursos. Quem veio de Pequim após a reunião dos emergentes em novembro constatou que a China deu passos gigantescos na energia solar. O adjetivo não se refere à quantidade, porque na China tudo se faz com grandes números. É que os chineses conseguem produzir uma energia solar muito mais barata do que nos primórdios do uso dessa fonte.
Soja por energia solar seria uma boa barganha. Mas ainda assim, os problemas da Cabeça do Cachorro, não estariam de todo resolvidos. A saúde vive um caos, apesar da presença de um hospital administrado pelo Exército, em São Gabriel. Já o visitei em viagem oficial. Desta vez, cheguei sem comunicar com antecedência. É limpo, relativamente bem equipado e eficaz. No entanto, faltam especialistas e uma remoção de emergência custa R$ 30 mil. Quem pagaria isso? Na hora da emergência, há um jogo de empurra. A prefeitura de São Gabriel vive numa inadimplência radical. Segundo os moradores, o prefeito Pedro Garcia (PT-AM) não tem crédito nem para viajar de barco para Manaus. O hospital não opera cabeça ou coração. A existência de uma boa conexão de internet e um treinamento de seus cirurgiões poderiam abrir novas perspectivas, de intervenções monitoradas a distância.
Noventa por cento dos moradores de São Gabriel são indígenas. Têm grandes dificuldades de sobrevivência. O Rio Negro é bonito, mas suas águas são ácidas. A agricultura, basicamente centrada na mandioca, é pobre. Há poucos peixes e eles se refugiam nos igapós, florestas alagadas que lhes dão alimentos. Abundantes, para comer, só as formigas, bastante valorizadas nos pratos típicos.
As várias etnias da região conseguiram fundar uma Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn). Com o Instituto Socioambiental (ISA) e com uma pequena ajuda da Noruega e da Áustria, montaram uma rede de desenvolvimento sustentável ao longo do rio.
Não são boas as lembranças históricas. Os índios eram capturados pelos colonizadores e forçados a descer o rio desde o século 18. No período da exploração da borracha, de novo, foram capturados como mão de obra. Hoje, cerca de 4 mil famílias, mais de 10% da população, recebem o Bolsa Família. Mas o dinheiro adianta pouco, pois se gasta tudo numa viagem de barco à cidade para receber o benefício.
Os aposentados costumam se unir para reduzir os custos de viagem. Ainda assim há comerciantes que têm uma caixa de sapato cheia de cartões do Bolsa Família. É a forma que as pessoas têm para comprar algo, suprimindo o preço da viagem de barco.
Uma saída econômica para a região não é fácil. Mas o século 21 também oferece um pulo do gato: a biotecnologia. O nível de pesquisa brasileira na região é muito pequeno. Uma linguista que estuda os principais idiomas falados no Rio Negro fez um longo artigo sobre o tema e entregou à revista da Funai. Passaram-se quatro anos e ela não viu seu artigo impresso. Hoje escreve direto em inglês e publica no exterior.
Soldados índios. O Exército brasileiro é forte na região porque soube combinar a ciência militar clássica com o conhecimento local dos nativos. Os soldados, na maioria, são índios. De um ponto de vista de guerra de guerrilha, o País está pronto. Mas hoje, com os recursos disponíveis, a própria guerra de guerrilha se tornou muito mais sofisticada. Um soldado do Rio de Janeiro que serviu dois anos em Cucuí, onde o Rio Negro divide Brasil, Colômbia e Venezuela, revelou como é difícil a luta contra o tráfico de drogas: "Temos uns óculos especiais para monitorar o rio de noite. Quem passa com mais de 200 litros de gasolina, o limite permitido por pessoa, de um modo geral trabalha para as refinarias de coca. Mas quem passa com a droga sabe onde estamos, desembarca, abre uma trilha na selva e embarca de novo, um ou dois quilômetros abaixo".
Os soldados venezuelanos têm uma boa relação com o posto. De vez em quando aparecem para usar a geladeira dos brasileiros, que, dentro de casa, têm um conforto razoável para a região. Mas o que impressionou o soldado carioca foi a superioridade em equipamentos do Exército colombiano. Isso se deve a dois fatores: a presença das Farc e a ajuda americana. "Quando os soldados colombianos descem o rio nas suas voadeiras" - relata o soldado carioca - "eu pergunto: o que é isso, meu irmão? São barcos incríveis, com metralhadoras Magnum apontadas para as margens do rio. Sempre tocam uma sirene avisando que sua missão é de paz."
Não era preciso vir à Cabeça do Cachorro para compreender que soldados armados não bastam. A Amazônia, no momento, é o ponto escolhido dos haitianos para se refugiar depois do terremoto de janeiro de 2010. Entram em Brasileia, no Acre, Tabatinga, no Amazonas, sempre pelas fronteiras do Peru e da Bolívia. Hoje há tantos haitianos na Amazônia quanto soldados brasileiros em Porto Príncipe. Ironicamente, os problemas que as armas não resolvem lá acabam se transferindo para a Amazônia, onde o mesmo enigma nos desafia: problemas muito amplos para resolver apenas com armas.