A obsessão com o adiamento da morte, que sintomaticamente explodiu em popularidade no pós-pandemia, serve de ponto de encontro para os existencialmente amedrontados e circunstancialmente insatisfeitos —vale ler o brilhante artigo de João Pereira Coutinho sobre isso.
Tema diverso é o do curso do envelhecimento biológico, que encena o jogo psicológico no domínio do declínio, cujo guarda-chuva abriga percepções incômodas relacionadas à dor e não à insatisfação. O mote aqui é a preferência dominante em todas as culturas por se manter saudável até as vésperas da morte, numa dinâmica com formato de J: manutenção de níveis quase estáveis de saúde até que uma transição rápida tire-nos de cena.
Na minha visão, esta será uma perspectiva cada vez mais comum, em função da miniaturização dos laboratórios de análises clínicas e conversão dos mesmos em produtos descartáveis que qualquer um poderá manipular.
O contraste mais nítido é com o fim precedido por décadas de sofrimento debilitante, mas há também certa incompatibilidade com o que é "default" hoje em dia: a naturalização da perda lenta de vitalidade, em face da qual o sujeito vai gradualmente abandonando as coisas que valoriza como se isso fosse natural. Pois bem, não é. Não está escrito no livro da vida que a criatura que anda com quatro patas de manhã e duas ao meio-dia de fato precisa andar com três à noite.
Parte substancial deste declínio é evitável, desde que haja disposição para mexer em vespeiros silenciosos, o que em si tem os seus custos. Racionalmente, eles são amplamente justificáveis, mas é a irracionalidade que pauta a nossa relação com a saúde. Colocamos quase todo o foco em tratamento, ignorando a prevenção, como a escassez absoluta de investimentos públicos nessa forma de poupança existencial revela.
O elefante na sala é que nossa capacidade de curar doenças facilitadas pelo comportamento é limitada, vide o caso do câncer. Não é para menos, o que chamamos por este nome é um conjunto heterogêneo de doenças afetando circuitos moleculares que definem o que é a vida. Sua cura representa um salto comparável ao surgimento da inteligência artificial geral.
O baixo investimento não é apenas causa, mas também consequência da maneira como cada um de nós pensa a prevenção. É preciso subestimar as pessoas para assumir que não sabem que exercícios físicos, controle calórico, sono e manejo do estresse previnem doenças. A mesma coisa se aplica à detecção precoce e, portanto, à importância de se submeter a exames de rotina.
Se é assim, e o desejo de evitar o sofrimento e encontrar a morte após um percurso em J é quase universal, por que a gente faz quase tudo errado? Bom, nem sempre é uma questão de escolha. Parte substancial da população não tem acesso à saúde preventiva, nem pode se dar ao luxo de adotar posturas concernentes no dia a dia. O diálogo se restringe aos 16% da população que fazem parte das classes A e B.
A minha hipótese é que uma intuição poderosa afaste a vontade neste grupo. Esta é a de que as interações com o sistema de saúde devem gerar valor imediato; por exemplo, quando uma doença é diagnosticada e um medicamento é prescrito. Uma vez que exames de rotina e outras ações preventivas não costumam produzir isso, só se tornam relevantes no adeus à curva em J.
O rechaço à prevenção é só mais um caso em que a incapacidade para valorar riscos progressivos sobre os ativos mais valiosos combina-se à baixa empatia em relação ao eu futuro na formação de inclinações decisórias causadoras de dor e arrependimento. A novidade é que estão sendo desenvolvidas soluções que contornam a armadilha e podem virar a chave da prevenção, numa das maiores transformações da área da saúde em décadas.
SENSORES INTERSTICIAIS PODEM TORNAR A PREVENÇÃO MAINSTREAM
Como toda dinâmica multifatorial, a incorporação ao status quo das práticas preventivas acontecerá em etapas. Ela já vem dando seus primeiros sinais, conforme aponta o mais recente estudo retrospectivo publicado e o ritmo deve se acelerar um pouco com a disseminação de aplicativos que usam sensores de celulares e relógios para aferir dados de saúde e orientar diagnósticos. Mas não espere que isso produza uma transição de fase.
Variabilidade cardíaca usando a câmera do celular como sensor, apneia pelo microfone, inventários psiquiátricos apoiados por bots, saúde respiratória e outras pelo sonar embutido nos amplificadores etc., estão em desenvolvimento neste momento. Legal, mas passam longe de substituir um exame de sangue.
A minha aposta é que o salto aconteça com a chegada de sensores que analisam os fluidos que ficam entre os tecidos (intersticiais), a partir da pele. Ao que tudo indica, eles terão formato de adesivo e poderão ser grudados aos braços ou pernas para o monitoramento de fatores críticos à prevenção, como glicose (o que já acontece), colesterol, enzimas, hormônios e, segundo especulações mais ousadas, até mesmo alguns marcadores de câncer, sem interferências na rotina do paciente/consumidor. Outra função esperada é o acompanhamento do nível de medicamentos no organismo, o que poderá ser seguido pela liberação automática dos mesmos.
Para elaborar este artigo, conversei com algumas pessoas da área, entre elas, Jason Heikenfeld, que é professor da Universidade de Cincinnati e inventor. Seu mais recente paper tornou-se uma das principais referências nesta interface entre nanotecnologia e medicina. Jason me disse que "o monitoramento remoto é a chave para tornar os diagnósticos mais acessíveis" e que "em múltiplos aspectos, não há dúvidas de que isso será fundamental para transpor o gap de infraestrutura e custo que afeta a logística dos diagnósticos tradicionais".
Ou seja, o cientista americano não apenas avalia que a inovação irá chegar aos nossos 16% para os quais a prevenção é assunto pertinente, como também que deve mudar a vida de quem vive alijado dos circuitos da prevenção. Faz sentido, já que o adesivo dispensa consultas e visitas ao laboratório. De quebra, há um ganho em precisão, já que isso é feito de maneira contínua, ao contrário do que ocorre no modelo tradicional.
Jason também avalia que o caminho natural é a combinação de diagnóstico e dosagem farmacológica em um mesmo dispositivo. "Primeiramente, veremos sistemas de monitoramento sendo usados separadamente dos sistemas de dosagem, mas é uma questão de tempo para que sejam combinados." Isto deve representar mais um passo importante na prevenção e na tendência mais ampla que vai se desenhando no âmbito das relações médico-paciente.
No entanto, ele não acha que será possível monitorar o surgimento de cânceres desta maneira: "A pele tem seu próprio sistema imunológico, o que dificulta isso; para alguns biomarcadores tende a funcionar, para outros, não". Como sempre, não espere uma panaceia; elas nunca vêm.
INOVAÇÕES COMO ESTA SUGEREM CAMINHOS DE MÉDIO E LONGO PRAZO PARA A MEDICINA
Em 2011, Eric Topol publicou um livro em que argumentou que as tecnologias digitais e outras iriam fazer as trombetas schumpeterianas soar no campo da medicina. Uma das conclusões mais fortes do autor é que isto resultaria no empoderamento do "cliente da saúde". Pouco mais de uma década depois, o que se observa é que ele estava certo. Cada app ou sensor desses eleva um pouquinho o protagonismo individual no manejo de aspectos críticos da vida, gerando efeitos acumulativos na relação médico-paciente.
É interessante notar que o debate da inovação nesta área está totalmente orientado aos impactos da inteligência artificial. O que se discute diariamente é se (e quando) os algoritmos generativos irão eliminar os empregos na medicina, assim como ameaçam fazer no direito.
Na minha visão, em nenhum dos dois casos isso deve acontecer, pela simples razão de que os conselhos federais não irão permitir. Haverá, sem dúvida, redução no "headcount", mas o ponto de contato com o paciente/cliente permanecerá humano, dada a força das entidades de classe.
Por outro lado, note o efeito de drogas como Ozempic e Monjaro: no médio prazo, elas reduzem o número de cirurgias bariátricas e ortopédicas, bem como as visitas ao cardiologista, endocrinologista, clínico geral e assim por diante.
Biossensores como estes adesivos e outros tendem a produzir o mesmo efeito, só que de maneira turbinada, razão pela qual deverão pautar discussões importantes sobre o futuro da medicina, quando a poeira da IA generativa baixar um pouquinho.
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