O subtítulo de "O Infinito em um Junco: A Invenção dos Livros no Mundo Antigo" nem começa a fazer justiça à amplitude de seus temas. Na verdade, o novo livro da espanhola Irene Vallejo, e primeiro a ser publicado no Brasil, é uma história do próprio conhecimento, de nossa luta humana contra a morte, contra a entropia, contra o olvido.
A princípio, não parece um tema que mobilizaria multidões de leitores. Ou, pelo menos, era o que Vallejo ouvia de todos. A editora de seus primeiros dois romances, mais direcionada à ficção, não quis publicar.
Ela mesmo considerava que seria sua obra menos comercial. Enquanto trabalhava, teve um parto de alto risco, seu filho nasceu com sérios problemas de saúde e seu pai recebeu um diagnóstico de câncer terminal.
"Esse livro nasceu como um refúgio para mim", disse Vallejo. Os agradecimentos à equipe de pediatria neonatal são daquelas linhas que falam volumes nas entrelinhas. Quando o hospital comemorou seu aniversário de 50 anos, Vallejo deu uma belíssima palestra.
Mas "O Infinito em um Junco", de tema aparentemente tão desinteressante, já vendeu 700 mil exemplares e foi traduzido para 39 línguas, inclusive para o inglês, sob o título "Papyrus", ou papiro. Por que tanto sucesso?
Apesar de teoricamente se restringir à invenção do livro no mundo greco-romano, o texto de Vallejo é repleto de curiosidades suculentas de todas as épocas e culturas. Por exemplo, no começo do cinema mudo, para aliviar a tensão da ausência de vozes, as primeiras sessões de filmes tinham "explicadores", um profissional que estava lá, ao vivo e presencialmente, lendo em voz alta os intertítulos para quem não sabia ler e também funcionando como mestre de cerimônias de modo geral.
No auge do cinema mudo, alguns explicadores ficaram famosos e atraíam as plateias tanto quanto o próprio filme. O irmão mais velho do cineasta Akira Kurosawa foi um deles, que se matou quando o cinema sonoro acabou com seu trabalho.
Ser uma excelente "explicadora" é justamente o maior mérito de Vallejo e a razão do merecido e milagroso sucesso do livro.
Apesar de suas credenciais acadêmicas impecáveis —tem doutorado em filologia clássica pelas universidades de Saragoça e de Florença—, o livro de Vallejo não é acadêmico, mas sim de divulgação científica.
Acadêmicos em geral torcem o nariz para "explicadores", ou seja, para aqueles profissionais que, em vez de fazer pesquisa original, se dedicam a divulgar essas pesquisas para um público mais amplo. Por exemplo, a ciumeira de historiadores contra o excelente Laurentino Gomes. Mas, enquanto os acadêmicos estão encastelados em suas torres de marfim, o mundo aqui fora se torna cada vez mais terraplanista.
A grande originalidade dos sábios da Biblioteca de Alexandria foi entender que Antígona, Édipo e Medeia —esses seres de tinta e papiro ameaçados pelo esquecimento— deveriam viajar através dos séculos; que milhões de indivíduos ainda por nascer não poderiam ser privados desses personagens; que inspirariam as nossas rebeldias, nos lembrariam de como certas verdades podem ser dolorosas e revelariam os nossos meandros mais sombrios; que nos esbofeteariam toda vez que ficássemos orgulhosos demais da nossa condição de filhos do progresso; e que continuaríamos a nos importar com eles. Pela primeira vez, consideraram os direitos do futuro —os nossos
Em seus anos de sala de aula ensinando cultura clássica greco-romana, Vallejo aprendeu que, muitas vezes, as dúvidas mais interessantes e mais frutíferas de seus alunos eram práticas. Qual foi o primeiro alfabeto? E o primeiro livro? E a primeira biblioteca? E a primeira livraria? Como se lia na Antiguidade? Quando as mulheres começaram a ler? São perguntas como essas que "O Infinito em um Junco" busca responder.
Vallejo, além de mesclar saborosas narrativas íntimas com o mais cuidadoso rigor factual, consegue conectar a história antiga que está narrando com todo tipo de fenômeno cultural contemporâneo. O que nas mãos de outros autores seriam episódios exóticos e empoeirados, ela torna urgentes e relevantes.
Pelo dom de seu talento contagiante, Vallejo pega tudo aquilo que a fascina —o conhecimento, os livros, o cânone— e transforma em fascinante para nós também. Ela é, nas suas próprias palavras, "uma proselitista da fascinação".
"Passei dez anos lutando com um desassossego crescente. Escrevi todos os artigos e teses que o mundo acadêmico me pediu. Esse livro foi minha primeira rebelião. 'As Mil e Uma Noites', o 'Decamerão' dos livros."
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