terça-feira, 3 de outubro de 2023

Edição de Sábado: Barroso, o iluminista, MEIO (definitivo)

 


Por Luciana Lima

O alívio inconfesso no plenário lotado do Supremo Tribunal Federal (STF) veio quando a nominata com mais 300 nomes deixou de ser lida. A insuportável lista de autoridades, com certeza, quebraria o encantamento da canção Todo o Sentimento, de Chico Buarque, que havia acabado de ser entoada por Maria Bethânia, acompanhada pelas cordas de João Camarero. O recém-empossado presidente da Corte, ministro Luís Roberto Barroso, nem teria muita condição de cumprir a formalidade. Ao anunciar a dispensa da leitura dos nomes, quebrando a tradição, ainda enxugava as lágrimas.

Barroso havia encomendado a Bethânia uma linda “canção de amor” para sua posse. No momento em que a cantora disse o “sim, senhor”, atendendo a vontade do ministro, todos já haviam entendido que a dedicatória era para sua mulher, Tereza Cristina Van Brussel Barroso. Ela morreu em janeiro deste ano, por complicações decorrentes de um câncer na cabeça do fêmur. No início do discurso, Barroso já havia embargado a voz ao citá-la.

Ele dividiu sua oração em três capítulos. O primeiro foi de agradecimentos, em que fez questão de se estender na homenagem a Rosa Weber, amiga próxima que o antecedeu naquela cadeira e que agora se aposenta. No segundo, já recomposto do par de vezes em que se emocionou, Barroso se empenhou em descrever o que entende ser sua missão institucional e a função do STF na divisão dos Poderes. Não houve grande ineditismo. Sua maneira de interpretar a Constituição de 1988 e defender uma maior “efetividade” em sua interpretação e aplicação é reiterada em seus votos e em artigos. Muito antes de chegar ao Supremo, como professor de direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Barroso já havia se tornado expoente no Brasil de uma escola de pensamento jurídico que pressupõe o papel de “vanguarda iluminista” do STF.

Foi esse o tom do segundo terço de seu discurso de posse. Esse iluminismo passa, necessariamente, pelos direitos fundamentais e humanos que a Constituição assegura e protege. Foram os iluministas os primeiros a codificar essa noção, que inspira tanto a Declaração de Independência dos Estados Unidos como a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da Revolução Francesa. O mesmo norte está expresso no artigo 1º da nossa Carta Magna, com a dignidade da pessoa humana anotada como basilar para o Estado Democrático de Direito. “Direitos fundamentais são a reserva mínima de justiça de uma sociedade, em termos de liberdade, igualdade e acesso aos bens materiais e espirituais básicos para uma vida digna”, apontou Barroso.

Mas falta distribui-los melhor. E é aí que a sociedade costuma rachar. Barroso defendeu três eixos de sua gestão. O primeiro é o conteúdo, em que se propõe, entre outras coisas, a “avançar a pauta dos direitos fundamentais”. O segundo é a comunicação, para explicar melhor à sociedade as decisões da Corte — fontes do STF ouvidas pelo Meio dizem que a linguagem é uma questão que toca diretamente na credibilidade do Supremo e Barroso compreende isso. E o terceiro é o relacionamento, em que se dispõe a “ouvir o sentimento social”. A ideia é atuar de forma mais política, conversando com setores diversos como o empresarial, sindicatos, e outras entidades civis. É desse diálogo que pode sair o apoio necessário para enfrentar divergências com os demais Poderes, garantiram auxiliares do STF.

Antes, no discurso, Barroso já havia definido que pretende intensificar o diálogo institucional com os outros chefes, mencionando específica e nominalmente os presidentes do Senado, Rodrigo Pacheco, e da Câmara, Arthur Lira, que assentiram com a cabeça. Foram acenos protocolares. As relações entre Legislativo e Judiciário estão conflagradas, especialmente nas pautas de “costumes”. Barroso sabe. Ainda antes de prometer diálogo, o ministro buscou se blindar. “Contrariar interesses e visões de mundo é parte inerente ao nosso papel. Nós sempre estaremos expostos à crítica e à insatisfação. Por isso mesmo, a virtude de um tribunal jamais poderá ser medida em pesquisa de opinião.”

Isso porque uma outra faceta da visão iluminista do que é incumbência do Supremo é a de que, mais do que interpretar e guardar a Constituição, a Corte deve promover avanços com base nela. “Empurrar a história na direção certa”, nas palavras de Barroso. A Justiça, para o novo presidente do STF, tem de produzir evolução. É uma perspectiva kantiana tanto da História quanto da Justiça, de que o destino é o progresso. E esse pensamento se desenvolveu e ganhou força em contraposição a um descrédito da classe política, tomada por alguns setores da sociedade como atrasada, principalmente nos últimos 20 anos.

A dimensão política

Um dos desdobramentos dessa concepção de Barroso foi o embarque quase de fé que ele fez na Lava Jato. Ou, organizando cronologicamente, é possível atribuir a Barroso parte da doutrina que norteia uma visão em que o Judiciário, especialmente na aplicação do direito constitucional, “conserta” a República e a livra de males seculares. Ainda na década de 1990, a produção teórica do ministro nesse sentido já dava base, na academia, para o que o cientista político, jurista e historiador Christian Lynch, também professor da Uerj, chamou de “revolução judiciarista”. “Barroso é um caso especial. Pelos propósitos, abrangência e impacto da obra, ele é, talvez, o constitucionalista brasileiro, desde Rui Barbosa, que mais importância teve e tem para o direito constitucional. Foi ele quem mais se comprometeu em fundamentar teoricamente a necessidade de se romper com nosso passado constitucional”, escreveu, em artigo publicado na revista Insight Inteligência.

Esse processo de revitalização da Constituição, em um ângulo, acabou tendo o efeito de legitimar a judicialização da política. Com a explosão popular das Jornadas de Junho de 2013, o anseio de buscar remendar a corrupção epidêmica e a política brasileira foi catalisado na Lava Jato — e chancelado pela Procuradoria-Geral da República e pelo Supremo, quase unanimemente. “Havia a ideia de que a representação política não funcionava mais e, por isso, o Judiciário tinha que ser empoderado. Havia a ideia de que o Judiciário representava a vontade do povo estampada na Constituição”, observa Lynch, colunista do Meio. Barroso, indicado por Dilma Rousseff, a quem agradeceu nominalmente na posse e elogiou por nunca ter pedido, insinuado ou cobrado nada, foi um dos principais lavajatistas da Corte. Acreditava que a operação era um caminho eficaz para investigar e punir a corrupção dos políticos quiçá da mesma forma que são punidos pobres e pretos no Brasil. Fez defesas apaixonadas da força-tarefa em plenário, apoiado principalmente por Edson Fachin e Luiz Fux.

Quando emergiram as mensagens trocadas entre a turma de Curitiba, liderada pelo então procurador Deltan Dallagnol e pelo ex-juiz e hoje senador Sergio Moro, também vieram à tona diálogos que apontavam convites feitos por Barroso ao grupo da força-tarefa, para um “discretíssimo” jantar em sua casa, em Brasília. O ministro foi categórico ao afirmar que “nas conversas privadas, ilicitamente divulgadas, encontraram pecadilhos, fragilidades humanas, e num show de hipocrisia muitos se mostraram horrorizados, gente cuja reputação não resistiria a meia hora de vazamento de suas conversas privadas...” Barroso manteve o apoio à operação quando a suspeição de Moro foi julgada no STF. Ele votou contrário à tese de que o conluio entre a parte acusadora e julgadora colocava toda a investigação a perder. Na época, alegou que a suspeição do juiz não poderia acarretar a anulação do processo. "Se o juiz é incompetente, não se avalia a suspeição. Caso seja reconhecida apenas a suspeição do magistrado, o processo continua a tramitar no mesmo juízo. Se Moro tivesse sido declarado suspeito, o caso continuaria na 13ª Vara Federal Criminal de Curitiba, com o juiz substituto. Mas se reconhecida a incompetência, o processo deve ser remetido ao órgão competente”, argumentou. Foi voto vencido.

“Para ele, a Lava Jato tinha uma ideia de igualdade perante a lei, um ideal de combate à corrupção e uma luta contra o patrimonialismo”, observa Lynch. “Na época, quem foi lavajatista de boa-fé foi por essa linha.” E esse patrimonialismo é parte do que Barroso entende por atraso no Brasil, inclusive por sua formação. Como FHC e tantos outros políticos dessa geração, Barroso é um liberal-democrata, com viés liberal na economia (seu discurso enalteceu a livre iniciativa e o sucesso empresarial). Mas a origem do pensamento de Barroso é Raymundo Faoro (1925-2003). “É o ídolo dele”, comenta Lynch. Em Os Donos do Poder, Faoro esmiúça a estrutura econômica, social e política brasileira, ancorada nos conceitos patrimonialistas do período colonial brasileiro, importados de Portugal. Dessa estrutura não superada no Brasil, segundo Faoro, é que descendem a imobilidade social e a corrupção. E é com esse passado que Barroso propõe o rompimento e propõe o STF e a Constituição como instrumentos de reconstrução da República.

A devoção de Barroso a Faoro também já se colocou no campo prático. Foi ao seu “ídolo” que Barroso recorreu, no final dos anos de 1970, para evitar que alunos do Centro Acadêmico da UERJ, do qual era diretor, fossem torturados em depoimentos no Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), no Rio de Janeiro. Na época, Faoro havia acabado de assumir a seccional da Ordem dos Advogados do Brasil do Rio de Janeiro (OAB-RJ) e teve força para interceder e garantir a integridade dos estudantes.

Barroso não é mais lavajatista — a entrada de Moro como ministro de Bolsonaro bateu mal. Mas o que fará na era pós-Lava Jato e pós-Bolsonaro, que nas eleições de 2018 angariou o voto da turma anticorrupção, ainda é uma incógnita. “E que agenda ele terá diante de um Congresso cuja metade não gosta do Supremo e que quer impunidade a todo preço, como reação à tragédia que a Lava Jato provocou?” pergunta Lynch. “O que a Lava Jato fez foi uma dedetização malfeita. Daquelas que, no final, as baratas saem mais fortes.”

A dimensão humanista

Não deve estar na pauta anticorrupção, porém, o ponto de maior tensão entre o Supremo e o Congresso. Há um movimento claríssimo de insurgência de parlamentares contra decisões do STF, particularmente nas pautas de direitos humanos e relacionadas ao direito à terra. Coordenadores de 22 frentes parlamentares chegaram a fazer um ato conjunto na quarta-feira, na Câmara dos Deputados, em repúdio à atuação do Supremo. As principais pautas sensíveis são o aborto, a descriminalização do porte de drogas, o casamento homoafetivo e o marco temporal. Alguns parlamentares ameaçaram obstruir votações na Casa enquanto o Supremo não recuar. De concreto, o que já existe são projetos de lei e de emendas à Constituição que ou buscam suplantar decisões já tomadas pelo Supremo ou dão ao Legislativo o poder de desobedecê-las.

É nesse clima que Barroso fala em harmonia, diálogo, e Pacheco e Lira acenam. Na longa carreira de advogado, Barroso atuou nos julgamentos no STF da Lei de Biossegurança, sobre alimentos geneticamente modificados; do reconhecimento das uniões homoafetivas e da defesa da permissão do aborto em caso de anencefalia. Listou, pausadamente, cada avanço que a Corte promoveu, falando de “direitos humanos incorporados à ordem jurídica interna”, ao mencionar conquistas de mulheres, negros, da população LGBTQIA+ e dos direitos dos indígenas às suas terras originárias. Acrescentou, então, que há quem pense que essas causas são progressistas. “Não são. Essas são as causas da humanidade, da dignidade humana, do respeito e consideração por todas as pessoas. Poucas derrotas do espírito são mais tristes do que alguém se achar melhor do que os outros.”

Na maior parte das “pautas divisivas”, como as nomeou Barroso, o Congresso ou não alcançou consenso ou simplesmente deixou de agir, de legislar. Barroso vê essa delonga como omissão e entende que, diante disso, a Corte precisou dar respostas a situações que existem de fato na sociedade. O direito das famílias homoparentais é um caso clássico dessa relação. Elas existem de fato, e precisam ter seus direitos garantidos pelo princípio constitucional de que todos são iguais perante a lei, mesmo se não há leis que os assegurem. A diferença de interpretação sobre o que é extrapolação de poder ou obrigação constitucional do Supremo é o que está no cerne da disputa. E Barroso deixa claro, em sua carreira e em seu discurso, que entende a Constituição como propulsor para o avanço democrático e de direitos fundamentais. Foi entusiasmadamente endossado pelo decano Gilmar Mendes, com quem já protagonizou uma briga lendária no plenário. Ao lembrar da ameaça democrática que o Brasil e o Supremo enfrentaram nos últimos quatro anos, Gilmar lembrou que “era isso que estava em jogo, e que ainda está: a preservação das decisões fundamentais de uma Assembleia Nacional Constituinte legítima e plural. Ela deu ao País uma Constituição que elevou a dignidade da pessoa humana à condição de pedra angular”. Essa pode não ser a posição unânime da Corte, mas certamente é majoritária hoje.

Mas Barroso não é um animal indômito. Ao contrário: não só coloca o diálogo, o afeto e a tolerância como princípios, como se apresenta, da mesma forma como fez em sua sabatina no Senado, como um “equilibrista”. Por isso, ao falar dos consensos que pretende construir, deixou as tais pautas divisivas de fora, com exceção do meio ambiente — embora tenha procurado dar o caráter mais ligado ao desenvolvimento econômico possível a ela. Falou ainda de educação, pobreza, saneamento básico, livre iniciativa. E, assim, encerrou seu discurso na quinta-feira: “Viver é andar na corda bamba. (...) Mas o equilibrista tem de saber que ele está se equilibrando. Porque se ele achar que está voando, ele vai cair. E na vida real não tem rede”.



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