Por Flávia Tavares A mera titulação de Michael Sandel pode soar como um contrassenso. O intelectual americano é pop e ensina filosofia política em Harvard. Filosofar sobre política, ou pensar política a partir de conceitos filosóficos, pressupõe uma disposição que, à maioria dos cidadãos, parece perdida. Ou mal dimensionada. A prática envolve formular perguntas difíceis sobre problemas complexos. Em seguida, ouvir respostas que nem sempre são as que escolheríamos. Ouvir, ouvir, ouvir. Então, encontrar o ânimo para o árduo labor de construir argumentos juntos. Tudo isso sabendo que nem sempre o senso comum será atingido. Mas, afinal, essa não é praticamente a definição básica de política numa democracia? Deveria ser. Acontece que fomos nos afastando uns dos outros e nos aborrecendo com a trabalheira que esse processo dá. Perdemos, em boa medida, a noção de que o outro, seja ele quem for e seja lá o que pense, é um cidadão tanto quanto nós — e é com esse outro que precisamos costurar o tecido social, cultural e político que mantém as democracias funcionando. Esse distanciamento tem, entre várias causas, ao menos três que Sandel explora em sua obra. Uma é de teor econômico. As grandes corporações foram ficando tão grandes que não podem mais ser questionadas politicamente, e o efeito disso é que o cidadão se sente cada vez menor, mais irrelevante. Outra, correlata, é sobre como as grandes corporações de tecnologia e mídias sociais, dirigidas tão somente pela lógica do consumo, transformaram o debate público num mercado de ressentimentos. Uma terceira é consequência do uso por extremistas desse rancor: a ideia de se debater convicções morais publicamente tornou-se tóxica. Para Sandel, é hora de rever esses três conceitos. Sandel é autor de livros como O Descontentamento da Democracia (relançado com uma análise do trumpismo), A Tirania do Mérito e Justiça: O que é Fazer a Coisa Certa, baseado no curso de Harvard que atraiu dezenas de milhões de alunos em sua versão online. E é daqueles teóricos que praticam o que ensinam. Dispõe-se a debater, revisar modelos, ouvir e busca ampliar sua audiência para elevar o nível do discurso público. Já chegou a atrair 14 mil pessoas para um estádio em Seul. O filósofo está no Brasil para participar do Fronteiras do Pensamento. E falou com o Meio sobre como é possível usar a tecnologia e reajustar visões econômicas na construção de uma cidadania mais completa. Confira abaixo os principais trechos da entrevista e aqui o vídeo na íntegra. Em seu livro Justiça há a ideia de que a reflexão moral não é um processo individual, é coletivo. Mas existem escolhas morais muito diferentes em cada lado do espectro político. É possível encontrar consenso moral nos dias de hoje? Não parece muito fácil. Estamos profundamente divididos, a ponto de colocar a democracia em xeque. Ainda assim, para a democracia florescer, e mesmo sobreviver, é importante que encontremos uma linguagem comum, uma forma de raciocinarmos juntos sobre questões fundamentais: justiça, o que devemos uns aos outros como cidadãos, o significado da boa vida. Em sociedades pluralistas, as pessoas discordam sobre questões morais e de valores. O problema atual não é estarmos envolvidos em discussões morais sérias, com divergências. O problema é que nosso discurso público é oco, vazio, empobrecido. No livro, eu argumento que debater coletivamente sobre nossas diferentes convicções morais é algo que precisamos cultivar como cidadãos democratas. Não que tenhamos garantias de chegar a um acordo. Mas também não podemos saber até tentarmos. E parte do meu raciocínio desde então, em livros mais recentes, é sobre a necessidade de elevar os parâmetros do discurso público para cultivar a arte de ouvir e construir argumentos juntos, em público, principalmente por meio de nossas diferenças. Isso é possível na era das redes sociais? As mídias sociais têm sido prejudiciais e destrutivas do discurso público saudável. E isso não tem a ver com a tecnologia. Tem a ver com o modelo de negócio das gigantes de mídia social e de tecnologia. As mídias sociais vieram com a promessa brilhante de aproximar o mundo. De criar uma espécie de comunidade global que nos colocaria em contato com pessoas e modos de vida que nunca havíamos visto pessoalmente. Esta foi uma promessa deslumbrante. Mas, na verdade, a mídia social fez, no mínimo, o contrário — nos afastou ainda mais. Isso tem a ver principalmente com o modelo de negócio que depende de captar a nossa atenção. Eles chamam isso de engajamento, mas trata-se de nos inflamar ou nos excitar, especialmente contra nossos supostos oponentes. As plataformas prendem nossa atenção pelo maior tempo possível e, simultaneamente, coletam nossos dados pessoais para nos vender coisas. Enquanto esse tipo de mídia social, impulsionada por publicidade digital direcionada, for a plataforma dominante, as redes continuarão a ser antitéticas ao discurso público racional. Nada disso é inerente à tecnologia. Como usar a tecnologia a favor da democracia? O que precisamos fazer é usar a tecnologia para resgatar a promessa da internet e das redes sociais. Isso exigiria repensar como essas plataformas poderiam ser apoiadas, talvez por meio de várias instituições e da sociedade civil. Ou de algum empreendimento sem fins lucrativos. Vimos alguns experimentos, eu mesmo participei de alguns, usando novas tecnologias de comunicação. A primeira experiência foi quando filmamos meu curso de Harvard sobre Justiça, que mostra alunos debatendo uns com os outros e comigo, e fizemos isso antes de haver essa profusão de cursos online. Colocamos a íntegra na televisão e online. Gratuitamente — para qualquer pessoa em qualquer lugar ver, a fim de mostrar que a sala de aula de Harvard pode ser aberta, um bem público, e não apenas um privilégio privado. Nunca imaginamos, quando começamos, que dezenas de milhões de pessoas iriam querer assistir a palestras sobre filosofia. Mas foi isso que aconteceu. O próximo passo neste experimento era criar um diálogo de ida e volta. Não apenas semear debates interessantes para as pessoas assistirem, mas permitindo que pessoas de todo o mundo participassem deles. E isso foi feito? Sim, fizemos outro experimento em um projeto com a BBC. Criamos uma série chamada The Global Philosopher, em que eu entrava num estúdio que tinha uma espécie de parede digital, com 60 telas, com pessoas de diferentes países, de todos os continentes. Em tempo real, debatemos, com pessoas de 40 ou 50 países, algumas das mais difíceis questões que enfrentamos hoje na vida cívica: liberdade de expressão, discurso de ódio, quem deveria arcar com os custos de mitigar as mudanças climáticas, imigração e fronteiras nacionais. Esses são debates que não ouvimos com frequência, apenas na forma de disputas partidárias. Mas tentamos usar a tecnologia para ver se poderíamos reunir pessoas de diferentes países, culturas e origens para debater essas questões. Estes são apenas dois exemplos muito pequenos. A tecnologia torna possível, hoje como nunca antes, criar plataformas para um discurso público global genuíno, mas não podemos deixar isso para o mercado, para essas empresas movidas pelo lucro. Aqueles dentro da sociedade civil, da educação, da mídia, quem se importa com promover um melhor discurso público têm a responsabilidade de mostrar que a tecnologia pode contribuir para a democracia em vez de corrompê-la. O senhor argumenta que é boa filosofia política não dissociar a discussão sobre a justiça da moral. Diante do mau uso dos moralismos, que transforma o debate em uma dicotomia entre o bem e o mal, há um caminho para trazer de volta essa abordagem? Espero que sim. De certa forma, é o que dediquei grande parte da minha carreira a tentar fazer. Não é fácil, porque nos dias de hoje, quando pensamos em moral no discurso público, muitas vezes pensamos primeiro nos ideólogos de direita que traçam distinções nítidas entre o bem e o mal — geralmente em apoio a abordagens ultranacionalistas e até mesmo autoritárias. Há uma tendência compreensível de liberais e progressistas a dizer que se deve manter a moralidade fora do discurso público. Afinal, isso é algo que ouvimos da extrema direita e, uma vez que as pessoas afirmam o bem contra o mal, não há espaço para o debate da razão. O problema dessa abordagem é que pessoas em todo o espectro político, da esquerda e da direita, dependem de certos princípios morais subjacentes sobre o que constitui uma boa sociedade. Como assim? Para definir qual deve ser o papel do dinheiro nos mercados em uma boa sociedade. Ou como devemos desenvolver de forma ética as novas ferramentas tecnológicas em vez de permitir que elas prejudiquem a sociedade. Decidir o que devemos a outros cidadãos, o que significa buscar o bem comum. Estas são perguntas sobre valores, o que significa dizer que elas pressupõem certos princípios morais. Agora, há uma grande diferença entre simplesmente afirmar uma certa visão do bem e do mal e tentar impor isso a todos os outros. Um pluralista vai abrir um debate baseado no respeito mútuo, que acolhe, na praça pública, diferentes convicções morais que os cidadãos trazem consigo. Um dos erros em responder ao direito autoritário que os liberais e progressistas às vezes cometem é esperar que os cidadãos deixem suas convicções morais e espirituais de fora da praça pública. É um erro. É compreensível, mas falha em preencher o espaço público com um engajamento pluralista, com argumentos morais e filosóficos concorrentes, incluindo sobre o que é justiça. Em sua obra, a questão moral é frequentemente colocada na perspectiva das escolhas sobre economia. A discussão moral e ética é essencialmente econômica? Parte do que defendo no livro O Descontentamento da Democracia é que se concentrar apenas em questões econômicas pontuais não é o suficiente para uma democracia saudável. Claro, é importante debater o que vai promover o crescimento econômico e como distribuir os frutos desse crescimento de forma mais justa. Esses são argumentos familiares. Mas há uma terceira frente que precisamos levar em consideração. Chamo isso de economia política da cidadania. Uma das questões mais importantes que precisamos debater para decidir como configurar a economia e que versão de capitalismo ou de economia mista ou de social-democracia vale a pena aspirar é que tipos de arranjos econômicos são mais propensos a produzir bons cidadãos. Deixe-me dar um exemplo muito concreto. Estávamos falando sobre o poder das grandes empresas de tecnologia e mídias sociais. Muitas pessoas, na esquerda e na direita, estão frustradas com o enorme poder e o escopo dessas corporações. O motivo da preocupação e da frustração não é apenas que essas grandes empresas aumentam os preços ao consumidor. O Facebook é gratuito. É quando as empresas se tornam tão grandes e poderosas que se torna impossível responsabilizá-las democraticamente. Se as grandes instituições econômicas são grandes demais para serem responsabilizadas na conta democrática, a voz do cidadão significa cada vez menos. As pessoas passam a se sentir impotentes por ter cada vez menos voz nas forças que governam suas vidas. Essa é uma das fontes profundas do descontentamento com a democracia. Esse processo é reversível? Precisamos fazer a pergunta: como podemos reconfigurar a economia de uma forma que responsabilize democraticamente grandes empresas e dando aos cidadãos comuns uma voz significativa em como eles são governados? Caso contrário, ficaremos e nos sentiremos impotentes. É isso que eu quero dizer com economia política da cidadania. Que arranjos econômicos criam uma cidadania saudável e significativa, onde cada cidadão democrata tenha uma voz que importa? Sempre houve tensão entre o capitalismo e a democracia. Em muitos aspectos, o último meio século tem sido uma espécie de luta entre os dois. Vimos uma espécie de endosso total e não qualificado da fé no mercado por Ronald Reagan e Margaret Thatcher desde o início dos anos 1980. Eles argumentavam que o governo era o problema e que os mercados são a solução. E não só porque são as arenas da liberdade individual. Mas os partidos de centro-esquerda que os sucederam moderaram essa visão somente até certo ponto. Não desafiaram sua premissa fundamental. Estou pensando em figuras como Bill Clinton nos Estados Unidos, Tony Blair no Reino Unido, Gerhard Schröder na Alemanha. Eles não desafiaram a premissa de que os mercados e os mecanismos de mercado são os instrumentos primários para definir e alcançar o bem público. Como resultado, partidos tradicionais lideraram por quatro ou cinco décadas com uma versão neoliberal da globalização, impulsionada pelas finanças, que acumulava enormes recompensas para os 10 ou 20% do topo. Mas deixou os trabalhadores com salários estagnados, gerou perda de empregos e produziu desigualdades crescentes. Para não falar da desregulamentação que levou à crise financeira de 2008. A crise da democracia é, então, a crise do capitalismo? A atual crise da democracia tem de ser vista neste contexto de uma política fracassada, adotada pelos partidos dominantes de centro-esquerda e centro-direita, da globalização neoliberal, que aprofundou desigualdades, não apenas de renda e bens, mas também de reconhecimento social, estima, honra e respeito. Muitos trabalhadores passaram a sentir que as elites — intelectuais, profissionais, da mídia — os menosprezavam. Não valorizavam seu trabalho. Isso criou o volátil conjunto de ressentimentos, raiva e frustração que levaram à eleição de Donald Trump em 2016. E, como observador externo, acho que também contribuiu para a eleição de Bolsonaro logo em seguida. Em democracias ao redor do mundo, vimos uma política de raiva, ressentimento e mesmo de humilhação de muitos trabalhadores sentindo-se traídos pelas elites. Para responder à reação populista autoritária, os partidos tradicionais e as próprias elites precisam não apenas criticar aquelas figuras autoritárias que os desafiaram e os derrotaram por um tempo, mas também se engajar em certa auto-reflexão crítica. Eles precisam perguntar: “o que fizemos em nosso endosso acrítico da fé no mercado que contribuiu para a desigualdade?”. Em meu livro A Tirania do Mérito, também busco mostrar como os partidos tradicionais podem e devem repensar a forma como entendem a relação entre capitalismo e democracia para começar a enfrentar a desigualdade e as frustrações legítimas que levaram muitas pessoas a se afastar delas. O senhor mencionou que arranjos econômicos devem ser julgados pelo tipo de cidadãos que produzem. Que tipo de cidadãos estamos produzindo? Bem, parece que estamos produzindo muitos cidadãos com raiva, ressentidos. Isso tem a ver, em parte, com a divisão educacional. Os votos para os partidos políticos, certamente nos Estados Unidos, na Grã-Bretanha, França e Alemanha, inverteram sua tradição. Os partidos de esquerda, centro-esquerda e social-democratas, tradicionalmente, eram os que representavam e defendiam o povo contra os poderosos, o grande capital. Os trabalhadores eram sua principal fonte de apoio desde FDR e do New Deal nos Estados Unidos. Mas nos anos 2000, e especialmente em 2016, pensando em Trump, o Partido Democrata estava realmente identificado com valores, interesses e perspectivas das classes com maior grau de educação, universitárias, profissionais. E haviam alienado trabalhadores. Trump conseguiu conquistar muitas dessas pessoas. Depois de uma de suas vitórias nas eleições primárias, ele declarou abertamente: “eu amo as pessoas pouco escolarizadas”. As elites ficaram intrigadas. Por que isso seria algo a se gabar? Mas ele entendeu a raiva, o sentimento de alienação que havia sido criado quando a elite basicamente abandonou a preocupação com uma maior igualdade, com os trabalhadores, a ênfase na dignidade do trabalho. Como resgatar essa conexão? Aqui está o ponto onde podemos voltar aos padrões do discurso público atual. Devemos focar menos em lidar com a desigualdade dizendo para as pessoas irem à universidade para obter um diploma e só então desfrutar de mobilidade ascendente individual. Obviamente, é importante encorajar as pessoas a irem para a universidade. Certeza. Mas não acho que seja uma resposta adequada às desigualdades de renda, riqueza, honra, reconhecimento e respeito que vemos em nossas sociedades. Devemos mudar. Parar de armar as pessoas para uma espécie de competição meritocrática e nos concentrar mais na dignidade do trabalho. Devemos nos perguntar o que seria necessário, em termos de reconfiguração da economia, mas também em termos de cultura, de sociedade civil, para honrar a dignidade do trabalho que todos fazem. Nós vimos um pequeno exemplo de como isso pode ser feito durante a pandemia. Aqueles de nós que tivemos o luxo de trabalhar em casa não pudemos deixar de reconhecer o quão profundamente dependemos de trabalhadores que frequentemente negligenciamos. Estou pensando em trabalhadores de entrega, de depósitos, balconistas de mercearia, auxiliares de enfermagem, prestadores de cuidados de saúde domiciliar, cuidadores infantis. Estes não são os trabalhadores mais bem pagos ou mais admirados em nossa sociedade. Mas durante a pandemia começamos a chamá-los de trabalhadores essenciais — e às vezes até os aplaudíamos. Esse poderia ter sido um momento para um debate público mais amplo sobre como parear melhor seu pagamento e reconhecimento com a importância de suas contribuições. Me parece que essa oportunidade foi perdida. Mas um ponto de partida para revigorar os termos do discurso público, reconectando o sistema político com aqueles que agora se sentem negligenciados e menosprezados, é questionar quais políticas poderiam refletir o que todos dizem acreditar, que é a dignidade do trabalho. Como criar uma sociedade, uma economia política da cidadania que permita que todos, seja qual for sua classe social ou econômica, etnia, origem, sintam que suas contribuições são importantes. Como podemos implementar tal projeto seria uma conversa para outro dia, mas é uma questão de reorientação. É isso que estou tentando sugerir: que se elevem os termos do discurso público para além dos gritos para ver se podemos recuperar a arte perdida do discurso público democrático. Podemos aprender e ensinar. Os cidadãos democráticos precisam da arte de ouvir. Especialmente ouvir aqueles de quem discordamos. Raciocinar juntos para discutir juntos em nossas diferenças, com civilidade e respeito mútuo. |
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