Em tempos de pandemia, pedir comida em casa não é opção, mas a única forma de reatar laço afetivo da boa gastronomia
A mesa está posta, impecável, até mesmo com taças para cada tipo de vinho. A comida é de um dos aclamados restaurantes paulistanos. Mas não é aquele cenário especial o que você tem diante de si —e sim a conhecidíssima paisagem da sua própria sala. São os tempos da pandemia, da reclusão; são os tempos do delivery.
Pedir comida de grandes restaurantes para entrega é escancarar uma contradição histórica que o coronavírus trouxe à luz. A comida de delivery sempre foi associada à conveniência, raramente à gastronomia. Não à toa seu país mais emblemático, os Estados Unidos, a transformou num hábito urbano meio brutal, o do "TV dinner", a refeição diante da TV, comida selvagemente nas embalagens.
Os restaurantes sempre foram o oposto disso. Nasceram como alternativa à refeição em casa. Desde seus primórdios, cabia-lhes servir não apenas uma comida mais refinada e trabalhosa do que aquela do cotidiano doméstico, mas também servi-la de forma teatral.
Algum tipo de restaurante sempre existiu, desde que os seres humanos começaram a constituir comunidades urbanas, e de alguma forma impunha-se, vez por outra, a necessidade de comer fora de casa. Mas eram bem diferentes do que conhecemos hoje: eram salas de refeição em estalagens, para os viajantes; ou um panelão de algum cozido para os ébrios, nas tavernas.
Só no século 18, na França, surgiria o restaurante moderno, gastronômico. Um pouquinho antes nascera o parisiense Café Procope, em 1674; mas este não tinha a ousadia que teria o senhor Boulanger, cujo estabelecimento homônimo, de 1765, inicialmente servia somente um caldo para restaurar convalescentes (o "bouillon restaurateur"), mas passou a servir pratos mais consistentes (como um portentoso pé de carneiro).
Com isso ele desafiava os limites impostos pelas corporações de então, que interditavam que um mesmo lugar servisse produtos de diferentes ofícios (pão, vinho, embutidos, assados, queijos, cozidos, o comércio de cada um desses itens era exclusividade de uma corporação particular).
Começava uma era em que surgiriam estabelecimentos marcantes, como o Beuvilliers (de 1782) e o Trois Frères Provençaux (de 1786). Mas a explosão destes "restaurantes" (como passaram a ser conhecidos) viria a ocorrer nas décadas seguintes, depois da Revolução Francesa.
A subida da burguesia que havia enriquecido ao poder e a expropriação de terras (e cabeças...) da aristocracia criaram uma curiosa dualidade nas cidades, Paris em primeiro lugar. Já não havia mais aristocracia para torrar dinheiro em seus palácios com faustosos banquetes; por outra parte, a burguesia que tinha poder econômico para sustentar hábitos custosos, não tinha o refinamento ancestral capaz de produzir (ou reproduzir) a sofisticação dos paladares, vinhos e serviços dos antigos palácios.
Os nascentes restaurantes propiciaram aos novos donos do dinheiro viver esta experiência de refinamento à mesa, que vinha pelas mãos de antigos cozinheiros, mordomos (que se prestavam, no antigo regime, também ao papel de maîtres e sommeliers) e serviçais das casas senhoriais da aristocracia apeada. Seu novo cenário de trabalho, não raro, eram antigos palacetes que os senhores de terra mantinham na cidade.
À burguesia era oferecido aquele teatro perfeito (para o qual não se requeria lustro, apenas bom dinheiro): a cozinha sofisticada, os vinhos adequados, mas também uma cenografia elegantemente aristocrática e o serviço —um verdadeiro balé— ensaiado como o que seria numa recepção ao rei, e pronto para esclarecer detalhes como o que comer e beber, e como.
Até hoje pedir em casa, para viagem, uma refeição de um restaurante que se preze por todo o detalhismo e teatralidade do seu ofício será sempre uma experiência parcialmente mutilada. Nada ali foi feito para viagem, tampouco a comida, que raramente terá o mesmo esplendor.
Mas nos tempos de agora, pedir para viagem não é uma opção, mas a única possibilidade de reatar, ao menos na memória, e debilmente, o laço gustativo e afetivo com o conjunto da obra que, possivelmente, com o tempo voltaremos a frequentar. Mas não são restaurantes de conveniência, e sim, de experiência: para fruí-los integralmente, há que se estar lá.
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