terça-feira, 24 de março de 2020

Joel Pinheiro da Fonseca Entre charlatanismo e ciência, o povo já escolheu, FSP

Assistimos a um governo em esfacelamento, acuado e incapaz de agir de forma decisiva

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Não precisava do presidente do Grupo Eurasia eleger Bolsonaro como o líder mais ineficaz de todo o mundo em meio à crise do coronavírus. Para nós, brasileiros, isso já está evidente.
Assistimos a um governo em esfacelamento, acuado e incapaz de agir de forma decisiva. A ajuda de R$ 200 mensais a trabalhadores informais, irrisória (mas melhor do que nada), anunciada semana passada, ainda não foi detalhada.
MP 927, publicada no domingo (22), teve de ser revogada pelo próprio governo, pois permitia que empresas mandassem os funcionários para casa por quatro meses sem salário. O ministro da Saúde tem que vir diariamente a público desmentir o presidente: a gripe é séria; não compareçam às igrejas; não tomem hidroxicloroquina.
Nada disso é por acaso. Uma característica do populismo é a negação tácita de que exista uma realidade objetiva. Não há fatos duros, há apenas diferentes narrativas e argumentos que podem ser usados para avançar ou atrapalhar um projeto de poder.
Vencendo a guerra de narrativas, isto é, conquistando os corações dos eleitores, tudo fica bem. Mesmo um vírus novo não é um problema que exija solução técnica; ele é fruto de alguma conspiração que precisa ser apontada e combatida no plano retórico. Deu no que deu.
O lado bom é que a inépcia presidencial está tendo o efeito ideológico contrário: a restauração da sanidade e do bom senso. As pessoas estão acreditando nas instituições novamente. O “sistema” —ciência, universidade, jornalismo profissional—, com todos os seus problemas, ainda é preferível aos palpites dos pilantras e charlatões que buscam substituí-lo.
No momento de necessidade, quando a vida está em jogo, a maioria do povo brasileiro quer informação confiável. Prefere as notícias de jornal ao youtuber histriônico. Dá ouvidos antes a um cientista do que à mensagem de um anônimo no WhatsApp ou ao papo furado de Bolsonaro no programa do Ratinho.
Isso não é pouca coisa. Uma pandemia como a da Covid-19 traz consigo enorme potencial para o nacionalismo. Por muito pouco não vimos uma guinada para a xenofobia, o ódio à China e à defesa do fechamento perpétuo das fronteiras. Se nossos populistas fossem um pouco mais competentes, esse seria o caminho natural.
A economia globalizada elevou o padrão de riqueza mundial a níveis inéditos. Ao mesmo tempo, globalizou também os riscos: desigualdade, aquecimento global, pandemias.
Há duas respostas possíveis: abandonar a globalização, o conhecimento e o progresso e se fechar no nacionalismo nostálgico e autoritário. Ou então aceitar que à globalização econômica precisa corresponder a cooperação política internacional.
O risco de uma pandemia global já era conhecido por cientistas, que alertaram as autoridades nacionais em vão por anos. Quando chegou, cada um olhou para seu próprio umbigo, demorou a agir e agora lidamos com as consequências.
O projeto bolsonarista de globalização (trocas econômicas internacionais) sem “globalismo” (acordos e órgãos internacionais de regras e cooperação) não para em pé. É preciso ter os dois ou nenhum.
A ciência, assim como o comércio, não conhece fronteiras e convida à cooperação universal. Coloca a realidade objetiva acima dos interesses de lideranças políticas. Essas ou se curvam à natureza para melhor governar, ou pagarão o preço por fingir que ela não existe. Eis que um pequeno vírus pode derrubar um projeto de tirano.
Joel Pinheiro da Fonseca
Economista, mestre em filosofia pela USP.

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