De Aspen a Itacaré, viajantes que trouxeram vírus do exterior estão na mira das autoridades sanitárias
É VIP o circuito que conta a chegada do coronavírus ao Brasil por meio de viajantes a bordo de jatinhos ou em voos internacionais de primeira classe ou executiva.
A disseminação da Covid-19 em terras brasileiras passa por eventos sociais em points do litoral baiano, como Trancoso e Itacaré, e no tradicional Country Club do Rio de Janeiro.
“O vírus foi trazido por uma elite viajada, veio de fora e se propagou muito rápido em nossos círculos”, diz uma sócia do clube, que pede para não ser identificada.
Ela retornou de Paris em 27 de fevereiro, e concordou em dar entrevista à Folha. Entrou para o rol dos estimados 60 associados do Country que receberam resultado positivo do teste para coronavírus nas últimas duas semanas.
Uma sequência de eventos da alta sociedade levou à espiral de contágios entre membros de algumas das mais abastadas famílias brasileiras.
Um deles foi o noivado do príncipe dom Pedro Alberto de Orleans e Bragança, 31, e Alessandra Fragoso Pires, 26, na casa dos pais do noivo, na Gávea, para 70 seletos convidados, em 7 de março.
O mapa da pandemia da Covid-19 estava bem representado no almoço que reuniu membros da família imperial, recém-chegados da Europa, como os próprios pais do noivo.
O príncipe dom Alberto e a paisagista Maritza de Orleans e Bragança estiveram em Londres, e confraternizaram com amigos vindos da Bélgica e Itália.
Naquele mesmo sábado, Marcella Minelli e Marcelo Bezerra de Menezes faziam uma festa de casamento de sonhos no Txai Resort, no litoral sul da Bahia.
Entre as centenas de convidados estava uma galera animada que acabara de voltar de temporada de esqui em Aspen e de viagens no Carnaval para a Europa, já em alerta máximo pela explosão de casos e mortes na Itália.
As duas celebrações ganharam o noticiário como epicentros da pandemia no Brasil, assim como a comitiva do presidente Jair Bolsonaro, após evento em Miami, com dezenas de infectados, entre nomes do primeiro escalão e empresários.
A seguir, a reportagem da Folha liga cenários e carimbos no passaporte para mostrar a ciranda de contágio a partir dos primeiros diagnósticos da Covid-19 em Rio, São Paulo e Bahia.
As duas celebrações ganharam o noticiário como epicentros da pandemia no Brasil, assim como a comitiva do presidente Jair Bolsonaro, após evento em Miami, com dezenas de infectados, entre nomes do primeiro escalão e empresários.
A seguir, a reportagem da Folha liga cenários e carimbos no passaporte para mostrar a ciranda de contágio a partir dos primeiros diagnósticos da Covid-19 em Rio, São Paulo e Bahia.
É o relato também da abertura da temporada de caças às bruxas diante do descumprimento de quarentena por incautos expostos ao novo vírus em diferente latitudes.
Apreensões que desencadearam processos criminais por desobediência às regras de isolamento social imposto pelas autoridades sanitárias.
Circuito fluminense
O coronavírus foi se espraiando desde o chamado circuito Elizabeth Arden (Paris, Milão, Londres e Nova York) até Miguel Pereira, a 100 km da capital fluminense, município que entra no mapa pela porta de serviço.
Deu no New York Times a morte da empregada doméstica Cleonice Gonçalves, 63, na terça-feira (17), primeiro óbito oficial pela Covid-19 no estado do Rio.
A funcionária fora contaminada pela patroa, moradora do Leblon, que passara férias na Itália.
Para Carla Gonçalves, 42, irmã de Cleonice, o contágio foi uma fatalidade. “Não houve intenção de contaminar. A patroa dela está bem debilitada e triste. São 20 anos de convivência.”
Cleonice foi internada no final da tarde de segunda-feira, quando retornou do Rio de táxi passando mal. Na terça, a patroa ligou às 9h para informar que seu teste era positivo.
Às 13h, veio o óbito. “Os médicos ficaram admirados com a evolução do quadro”, relata a irmã. “Infelizmente, as pessoas não estão levando o coronavírus a sério, achando que é gripezinha.”
Em Niterói, poucas horas depois de a doméstica entrar para as estatísticas, desenrolava-se um drama desencadeado por um contágio em família.
Às 19h08, o advogado Paulo Figueiredo, 69, morria no Hospital Icaraí, onde dera entrada com um quadro gripal preocupante por ser hipertenso e diabético.
Segundo o boletim médico, “o paciente possuía história epidemiológica para o Covid-19. ”Ele e a mulher tinham ido buscar o enteado no aeroporto do Galeão, que vinha de Nova York com teste positivo para coronavírus.
Levou uns dias para a gripe abatê-lo. O advogado jogou basquete no Country Club de Niterói, como fazia habitualmente. Quando os sintomas apareceram, o quadro de Figueiredo evolui com insuficiência respiratória aguda e entubação.
Do outro lado da ponte Rio-Niterói, morria na segunda-feira (23) a socialite Mirna Bandeira de Mello, às vésperas de completar 72 anos, primeira vítima do grupo de convidados do noivado do príncipe.
Tia do noivo, a apresentadora Márcia Peltier usou as redes sociais para anunciar que seu teste para a Covid-19 também era positivo. Postou uma foto de máscara e escreveu: “Já estava em isolamento social desde a semana passada quando algumas pessoas da minha família também testaram positivo”. No caso, a irmão e o cunhado, pais dos noivo.
Com sintomas brandos, ela alertava para o fato de que outros amigos não tiveram a mesma sorte, foram internados com pneumonia e estavam em UTI. A curva de infectados no Rio se expandia na mesma velocidade que os casos do Country Club iam aumentando, após uma assembleia com 270 dos 850 associados, em 9 de março.
“Posso ter me infectado lá ou na viagem à Europa”, diz a sócia que já se diz recuperada da Covid-19. “Fiz um mapinha na cabeça, acho que não contaminei ninguém.
”Ela está monitorando a turma do grupo de meditação. “Ninguém conseguiu ainda fazer o teste”, lamenta. E indigna-se ao comentar a notícia de que o ministro da Economia, Paulo Guedes, fora flagrado em uma caminhada no calçadão em meio à escalada de novos casos na Cidade Maravilhosa.
Conexão Itacaré-São Paulo
Nas paradisíacas Maldivas, Marcella e Marcelo, os “Mazinhos”, passam a lua de mel literalmente trancafiados no romântico bangalô de hotel, em rigoroso esquema de quarentena imposto pelas autoridades sanitárias local.
Passavam por avaliação médica à distância e tinham a temperatura medida diariamente. Ainda que assintomáticos, o isolamento imposto foi completo até o 14º dia: eles mesmos trocavam as roupas de cama e faziam refeições isolados.
“Estamos 14 dias dentro do quarto, de quarentena, como todos deveriam ficar também”, declarou a noiva, em vídeo, após avalanche de mensagens ofensivas no Instagram.
As bodas dos Mazinhos se converteram em outro epicentro da pandemia no país, à medida em que eram divulgados testes positivos da cantora Preta Gil, contratada para fazer o show da festa, da atriz Fernanda Paes Lemes e da blogueira Gabriela Pugliesi, irmã da noiva.
A quarentena do trio de famosas, que soma mais de 16 milhões de seguidores no Instagram, foi acompanhada como um Big Brother Brasil do coronavírus.
Longe do escrutínio público, outros convidados foram fazendo exames ao retornarem a São Paulo, numa lista de pelo menos 15 casos suspeitos de contágio após compartilhamento de drinks, beijos e abraços na festança.
“Muita gente ficou na moita e deixou na conta do casamento, mas vários infectados tinham acabado de voltar de viagens à Europa e aos Estados Unidos”, diz uma promoter paulistana.
A empresária Vera Minelli, 53, mãe da noiva, não procura culpados, enquanto lida com o fato de que duas das suas três filhas estão com a doença (além de Gabriela, a caçula Ornella também testou positivo).
“Não dou a mínima para as fofocas, minha preocupação está 100% na saúde da minha família. Precisamos nos proteger e só espero passar tudo isso para poder abraçar de novo minhas filhas", disse.
Vera concordou em falar com a Folha, ao contrário de Pugliesi e da empresa organizadora do casamento, que optaram pelo silêncio diante da polêmica.
Em resposta ao questionamento sobre os cuidados com as pessoas contratadas para trabalhar no evento, a Boutiquede3 respondeu por mensagem direta via WhatsApp da empresa. “Não queremos mais nos envolver nesse assunto. Garantimos que, assim como todos os convidados foram avisados, o mesmo fizemos com os funcionários que prestaram serviço. Todos receberam apoio médico.”
A assessoria do Txai informou que após a confirmação do teste positivo de um dos hóspedes, três funcionários apresentaram sintomas leve de gripe, fizeram testes, que deram negativo para coronavírus.
Até o sábado (27) não havia nenhum caso confirmado entre os moradores de Itacaré. O motorista Anderson Felix que transportou os noivos até o aeroporto questionou em comentário público no Instagram se o casal estava infectado. “Fui afastado da empresa”, escreveu ele, em quarentena imposta após a passagem dos “corona-ricos” pelo município baiano.
Escala Porto Seguro-Fortaleza
De Itacaré, a linha de contágio chegou a Trancoso, outro reduto frequentado por endinheirados.
Foi para lá que o empresário cearense Cláudio Henrique Vieira do Vale, conterrâneo da família do noivo, embarcou em seu jatinho com um grupo de oito amigos para curtir um fim de semana prolongado na casa de veraneio em um condomínio de luxo.
O programa, depois da festa em Itacaré e com uma escala em São Paulo, virou caso de polícia. A Delegacia de Proteção ao Turista de Porto Seguro instaurou inquérito para apurar a denúncia de que o presidente da CVPAR Finanças desrespeitou a quarentena, quando já havia recebido resultado positivo do teste.
O governador Rui Costa (PT) pediu a responsabilização criminal do empresário por “sua postura irresponsável”. Dos 10 baianos confirmados àquela altura, pelo menos dois teriam sido infectados no contato com Vieira: o cozinheiro da casa de veraneio e uma atendente do aeroporto de Porto Seguro.
“Não temos casos sustentados de contágio no município, todos os seis confirmados até agora tiveram contato com pessoas que se contaminaram fora”, disse o secretário de Saúde, Kerrys Ruas, na quinta (26).
Ao ser informada do caso positivo para coronavírus na região, a vigilância epidemiológica foi até a casa de Vieira coletar teste de oito funcionários e oito hóspedes.
Ao ser informada do caso positivo para coronavírus na região, a vigilância epidemiológica foi até a casa de Vieira coletar teste de oito funcionários e oito hóspedes.
Cinco deles, no entanto, foram embora da Bahia antes de sair o resultado. Dois testaram positivo quando já tinham retornado para Fortaleza (CE). “Tanto os casos suspeitos quanto os contaminados foram embora sem o nosso aval”, diz o secretário.
O empresário e a mulher estão cumprindo a determinação de distanciamento social e permanecem na cidade. Procurado pela Folha, ele não quis dar entrevista, mas encaminhou nota em que “repudia com veemência as mentiras divulgadas a seu respeito”. “É desumano, inconsequente e irracional imaginar que teria ignorado recomendações médicas quanto ao coronavírus, colocando em risco seus familiares e amigos.”
Segundo a nota, o resultado do teste saiu dia 14, quando ele já estava na Bahia. Os hóspedes também afirmam que a viagem de volta ao Ceará foi permitida pelas autoridade de saúde da Bahia e seguiram o protocolo de segurança.
“Todos tinham que fazer isolamento social e sabiam que podia contaminar pessoas e deviam tomar medidas de precaução”, afirma Michele Souto, promotora de justiça criminal de Porto Seguro.
O inquérito aberto em 20 de março tem 30 dias para averiguar se houve dolo por parte dos turistas que desembarcaram com o coronavírus na paradisíaca costa do Descobrimento do Brasil.
Também está sob investigação no estado a conduta do médico baiano Eduardo Ribeiro. Ao voltar de férias dos Estados Unidos em 8 de março, o ginecologista retomou de imediato o trabalho em vários municípios do interior da Bahia. Dez dias depois, ele se sentiu mal e fez o teste, que deu positivo. Desde então, colocou-se em quarentena.
“É inaceitável um médico com quadro gripal, nas atuais circunstância, desobedeça medidas de saúde pública e assuma o risco de contagiar pessoas, dentre as quais seus pacientes”, afirmou o procurador geral do Estado, Paulo Moreno Carvalho.
A advogada do médico, Ilana Martins, rebate o discurso de criminalização. “É uma situação nova, querem achar um culpado para o caos. Até o momento não há nenhum contaminado nas cidades em que ele atendeu.”
Ela faz parte de um dos mais conceituados escritórios de advocacia criminal do país e consultou o colega, o criminalista Pierpaolo Bottini, que advoga em vários processos da Lava Jato.
“Se o sujeito souber que está contaminado e não cumprir as determinações pode incorrer em crime”, diz Bottini, ao analisar as consequências práticas da Lei 13.979, aprovada em fevereiro diante da pandemia.
A legislação define parâmetros e critérios para quem descumprir o artigo 268 do Código Penal. É prevista pena de um mês a um ano de prisão mais multa para quem “infringir determinação do poder público destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa”.
O criminalista teme o uso do direito penal em momentos de histeria e em meio aos desafios para o sistema de saúde em uma emergência sanitária sem precedentes. Promotor de Defesa da Saúde na Comarca de Entre Rios, a 140 km de Salvador, Paulo César Azevedo, está monitorando os pacientes atendidos pelo médico.
“Fizemos uma busca ativa e o isolamento delas. ”Segundo o promotor, uma técnica de enfermagem e a dona da pousada que o médico se hospedou apresentaram sintomas de gripe e aguardam o resultado dos teste para coronavírus.
Brasileiras que não frequentaram o circuito Paris, Nova York, Milão. Nem fizeram check-in em aeroportos ou entraram na lista vip de festas glamourosas. Todos passageiros da mesma agonia de viver em tempos de pandemia. Tanto na alta sociedade, quanto nas periferias, na primeira classe ou na econômica. Patrões e empregados, no Brasil e no mundo.
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