MILÃO
Circulou nos últimos dias um vídeo em que são viradas páginas e páginas de um jornal tomadas por obituários de Bérgamo, no norte da Itália.
O número de mortes na semana passada foi tão alto que os anúncios com os nomes ocuparam, na sexta-feira (13), um espaço no papel três vezes maior do que o habitual.
Não é só no jornal da cidade que os contaminados pelo novo coronavírus não cabem mais. Os hospitais estão lotados, as unidades de terapia intensiva, sem vaga, e os cemitérios e crematórios têm filas de caixões.
Com 1,1 milhão de habitantes, a província de Bérgamo —que engloba cerca de 250 municípios— é a área mais afetada em toda a Itália. Já são 4.300 contaminados ali (em todo o país, mais de 30 mil foram infectados, com mais de 2.900 mortes).
Bérgamo, a cidade, com 120 mil moradores, registrou 460 mortes desde o início da crise do coronavírus no país, há quase um mês. A média tem sido de 20 mortos por dia.
"Estamos vivendo as dores e o sofrimento dos mortos. Tivemos quase 400 mortes em uma única semana, e quase todas as famílias da cidade foram atingidas", disse à Folha dom Giulio Dellavite, monsenhor da diocese de Bérgamo.
"A epidemia está no máximo da explosão, os hospitais estão saturados, e os pacientes, sendo levados para outras regiões. A cidade está deserta, uma impressão terrível. Nunca vivemos isso antes."
A diocese faz as contas das próprias perdas: "A proximidade dos padres à comunidade é visível pelos números de mortos e internados. Mais de dez padres já morreram pelo coronavírus, e outros 20 estão nos hospitais".
Nos últimos dias, a quantidade de caixões à espera de serem cremados ou enterrados levou a diocese a ceder espaço para eles no interior do Templo de Todos os Santos, uma igreja dentro do cemitério municipal.
"Os caixões estavam prestes a serem empilhados por falta de lugar. Colocamos a igreja à disposição para que os mortos não estejam em um canto qualquer. Para que possam, em seus últimos momentos, repousar em uma igreja. É um pequeno gesto simbólico", diz.
Nesta terça, segundo ele, havia entre 100 e 150 mortos no templo.
Segundo o secretário Giacomo Angeloni, responsável pela gestão dos cemitérios municipais, o ritmo dos enterros levou à realização de um sepultamento a cada meia hora nos últimos dias.
Toda a situação, do diagnóstico ao enterro, tem sido anormal. Há relatos, confirmados pelo religioso, de doentes que foram levados de casa, alguns ainda sem a certeza de que o resultado do teste foi positivo, e que não foram mais vistos pela família.
"O parente vai embora de ambulância, entra no hospital e ninguém mais pode vê-lo, porque não se pode nem visitar. Depois, um telefonema avisa que a pessoa está morta, que um caixão fechado está liberado e que poderá ser enterrado sem funeral", contou dom Giulio. "Até o luto se tornou ainda mais difícil."
Segundo o decreto que colocou a Itália inteira em quarentena no dia 9 de março, estão proibidas todas as cerimônias civis, de casamentos a funerais, para evitar a aglomeração de pessoas e o contágio entre elas.
"A única possibilidade que o governo permite é, no ato do sepultamento, que o padre realize uma bênção para a família próxima", diz dom Giulio.
"Mas, quando é uma vítima do coronavírus, os familiares quase sempre estão em isolamento obrigatório, então tem havido padres sozinhos dando a bênção para um defunto enterrado sem ninguém por perto. Ou uma ou duas pessoas."
Também a extrema-unção, um dos sacramentos da Igreja Católica, está vetada aos doentes do coronavírus, porque quem está contaminado não tem autorização para ser visitado por ninguém.
Para contornar, os bispos da Lombardia concederam que uma bênção possa ser realizada por laicos nessas situações, inclusive pela equipe médica. "Muita gente está morrendo sozinha nos hospitais, sem familiares, sem ninguém. Como todos, os padres também não podem entrar lá."
Com tantos casos, a estrutura sanitária de Bérgamo opera além do limite. Especialmente o hospital Papa João 23, onde quase 500 pacientes estão internados e faltam leitos de terapia intensiva.
Para liberar camas nos hospitais, o serviço sanitário autorizou o uso de três hotéis para receber os pacientes do coronavírus que não têm condições de fazer o isolamento domiciliar. Casos, por exemplo, de pessoas que não podem dispor em casa de um quarto exclusivo ou que não têm cuidadores.
Tudo para evitar situações como as descritas pelo médico Christian Salaroli, de Bérgamo, ao jornal Corriere della Sera.
Por carência de leitos, a equipe do hospital Papa João 23 tem precisado escolher quem segue adiante no tratamento. "Se uma pessoa tem entre 80 e 95 anos e uma grave insuficiência respiratória, provavelmente não prosseguirá", disse.
Salaroli também citou pacientes com patologias cardiorrespiratórias ou problemas graves na coronária, porque toleram mal alguns procedimentos. "Digo a mim mesmo que é como uma guerra. Se procura salvar só quem tem mais chances. É o que está acontecendo."
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