terça-feira, 24 de março de 2020

O homem do século 21 entra em colapso por ter de responder a emails e mudar as fraldas dos filhos, FSP

Pandemia terá como mérito mostrar a eles como é a vida normal das mulheres

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A cabeça está em crise, dizem os jornais. Com o corona à solta e o pessoal em quarentena, há sinais de loucura aqui e ali.
Leio, por exemplo, que os homens da classe média ou média alta são os mais afetados. Um deles confessa: não é fácil continuar trabalhando (em casa), cuidar dos filhos (em casa) e manter a relação conjugal nos mínimos olímpicos (em casa).
Ilustração dos 4 cavaleiros do apocalipse
Angelo Abu/Folhapress
Pois é. Parece que a pandemia terá como principal mérito mostrar aos homens —o sexo forte, certo?— como é a vida normal das mulheres, obrigadas a fazer tudo isso sem reclamar.
Pessoalmente, relatos desse tipo provocam-me uma certa náusea. O problema é ter lido história, sobretudo as cartas que os rapazes escreviam nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial (1914– 1918) com as balas do inimigo voando sobre a cabeça.
O homem do século 21 entra em colapso porque tem de responder a emails e mudar as fraldas dos filhos. É impossível não verter uma lágrima pelos infelizes.
Mas o problema não é apenas pessoal. É civilizacional. O sociólogo Frank Furedi, que tem escrito na virtual Spiked os melhores textos sobre a pandemia em curso, há vários anos que se debruça sobre a forma como a cultura do medo passou a dominar os espíritos ocidentais.
Em “How Fear Works: Culture of Fear in the 21st Century”, um trabalho de 2018 que merece ser lido para entendermos melhor a desgraça humana em que nos tornamos, Furedi não se ocupa apenas dos grandes medos —guerras, pandemias, terrorismos etc.
Essa cultura de temor e tremor começa nas pequenas coisas: na dieta (tudo é cancerígeno), nos estilos de vida (não fazer jogging é fatal), na educação das crianças (há pedófilos em todas as esquinas), na relação entre os sexos (todos os homens são predadores).
Por outras palavras: nos últimos 40 anos, o Ocidente foi alargando cada vez mais os objetos que nos provocam pavor. Até chegarmos, sem surpresas, a alunos universitários que temem certas matérias “desconfortáveis”, exigem “safe spaces” e batalham contra “microagressões”.
Os nossos antepassados temiam os Quatro Cavaleiros do Apocalipse— a guerra, a peste, a fome e a morte.
Hoje, existem milhares de cavaleiros do apocalipse, sempre prontos para nos atacarem.
Isso tem um preço, avisa Frank Furedi: uma mudança no próprio estatuto de pessoa. Deixamos de ser agentes de resiliência, prontos a enfrentar os desafios como parte da experiência humana, e nos perspetivamos como seres desprotegidos, em risco, emocionalmente frágeis —vítimas eternas de um mundo que conspira para nos destruir.
Se a cultura do medo fosse apenas um problema psicológico, isso já seria lamentável. Mas o que começa por ser um problema psicológico acaba por se metastizar em problema político crucial: quem acredita viver no estado da natureza, onde a vida é “solitária, pobre, sórdida, brutal e curta” (Thomas Hobbes dixit), anseia sempre por um novo Leviatã.
E não faltam tiranos, ou candidatos a tiranos, dispostos a embalar o nosso medo com doses cada vez mais crescentes de segurança e vigilância.
Na Hungria, por exemplo, o governo de Viktor Orbán prepara-se para aprovar um “estado de emergência” na luta contra o vírus por prazo ilimitado —uma aberração constitucional e antidemocrática.
Não será caso único: o patrimônio moral que permitiu a emergência do liberalismo político —autonomia, liberdade, antiautoritarismo, limitação do poder— já estava em erosão. A crise do novo coronavírus pode ser apenas o golpe de misericórdia que faltava.
E quem lutará contra isso? O homem aterrorizado do século 21?
Não me matem de riso. Se, por hipótese fantasiosa, alguém dissesse que tinha a cura milagrosa para a Covid-19, exigindo apenas em troca algumas liberdades “menores” (como a liberdade de expressão ou de associação), não faltariam candidatos para o negócio.
Sim, a pandemia é séria. E, na ausência de uma vacina, o distanciamento social é a única solução empiricamente comprovada para evitar o colapso dos sistemas de saúde. E as mortes, é claro.
De igual forma, “estados de emergência” podem ser necessários para evitar males maiores. As democracias liberais, às vezes, são obrigadas a esses regimes de exceção, desde que limitados no tempo e enquadrados pela lei.
Mas o trabalho de Frank Furedi é precioso ao mostrar-nos como o medo de agora foi alimentado durante anos pelo culto sadomasoquista da nossa própria fraqueza.
Alguém se espanta que, na hora da verdade, o homem do século 21 entre em depressão porque tem simplesmente de ficar em casa?
João Pereira Coutinho
Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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