Marcelo Godoy, O Estado de S.Paulo
SÃO PAULO - Virou caso de polícia. A tormenta que tomou conta do mundo acadêmico francês após o microbiologista Didier Raoult publicar seu trabalho sobre os efeitos da hidroxicloroquina contra o coronavírus (Sars-Cov-2) está agora na mesa do procurador da República de Nantes, Pierre Sennès. “Trata-se de uma investigação em curso por atos de intimidação, mas não de ameaça de morte”, informou a procuradoria por nota.
A ameaça foi feita por telefone entre os dias 1.º e 2 de março. Sènnes não revela detalhes. O telefone usado seria o de um médico do centro hospitalar universitário de Nantes, segundo informou o semanário Le Canard Enchaîné. Didier Raoult é o diretor do Instituto Hospitalar Universitário (IHU) de Marselha e chefe da equipe que divulgou dados de uma pesquisa com 42 pacientes de covid-19 em que 75% deles, após seis dias de tratamento com a substância associada ao antibiótico azitromicina, livraram-se do vírus.
Com um passado de polêmicas, Raoult está no olho do furacão. Seu trabalho levou os presidentes Donald Trump (EUA) e Jair Bolsonaro a apostarem suas fichas de que a hidroxicloroquina pode ser a saída rápida e barata para combater a doença e acabar com a quarentena que paralisa a economia de seus países. Em 15 ou 20 dias o estudo de Raoul deve levá-lo ao prêmio Nobel ou ao ostracismo reservado aos que dão falsas esperanças às aflições humanas.
O professor de Marselha parece um gaulês de história em quadrinho. Tem cabelos longos e barba e carrega um anel de motociclista na mão direita. O professor tem um olhar que perscruta o interlocutor. Parece querer cortar a cabeça de quem o contesta só para mostrar que no interior do crânio do oponente não há cérebro.
Estudo teve poucos pacientes
O que detonou a polêmica na academia foi Raoult ter decidido publicar um estudo que, em condições normais, não seria aceito por nenhuma revista científica. Primeiro, pelo baixo número de pacientes envolvidos. Ele tinha 26 que receberam a hidroxicloroquina em Marselha e 16 no grupo de controle em duas outras cidades francesas – Nice e Avinhão.
Dos 26 pacientes que receberam a medicação, seis abandonaram a pesquisa. Um porque morreu; três porque foram entubados, outro por deixar o hospital e um por ter náuseas. Nenhum deles foi incluído no resultado final, pois a pesquisa pressupunha testar todos os dias os pacientes para medir a carga viral.
Era 25 de fevereiro quando Raoult entrou em campo na luta contra a covid-19. Defendeu que a solução para a doença seria mais barata do que se imagina, com base no uso da hidroxicloroquina, uma molécula antiga usada contra a malária e o lúpus. Menos de um mês depois, seu trabalho estava publicado. Segundo o jornal Le Monde, no mesmo dia da publicação do artigo – 20 de março – Phillipe Ravaud, diretor do Centro de Pesquisas Epidemiológicas e Estatística Sorbonne Paris Cité, pediu ao colega os dados brutos da pesquisa, mas não os recebeu.
Dia 23, foi a vez da professora e infectologista Karine Lacombe, do departamento de doenças tropicais infecciosa do Hospital Saint-Antoine, em Paris, dizer que estava “enojada” com o que estava acontecendo. “Com base em um estudo absolutamente contentável do ponto de vista científico, expõem-se pessoas à falsa esperança de cura de uma doença que se sabe que, em 80% dos casos, ao cabo de alguns dias, não haverá mais vírus. O que está acontecendo em Marselha é absolutamente escandaloso”, afirmou à TV France 2.
Para um pesquisador especialista em biologia ouvido pelo Estado, Raoult deixa claro as inconsistências em seu trabalho. “Ele foi muito honesto ao dizer isso.” Do ponto de vista de ético, seria, portanto, justificável publicá-lo em razão da situação mundial. “É precio esperar. O mundo inteiro está testando a hidroxicloroquina e teremos os resultados em breve”, disse.
De fato, o professor de Marselha escreve no estudo que “por razões éticas em razão de resultado tão significativo e evidentes” é que ele e seus pares decidiram publicá-lo para que fosse avaliado pelo comunidade médica, dado a urgente necessidade de achar uma droga efetiva contra o Sars-Cov-2. “Nosso estudo tem limitações.”
Negacionista do aquecimento global
Questionado sobre as reações dos colegas, Raoult foi seco. “Eu faço ciência, não política.” O pesquisador é próximo de políticos de direita e de extrema-direita, como o Rassemblement National (RN, extrema-direita), de Marine Le Pen. Na última quinta-feira, recebeu o apoio de Jean-Luc Mélenchon, dos Insubmissos (esquerda) em seu blog. “O retrato traçado desse professor me fez tapar o nariz, pois sei muito bem o cheiro de pintura que vem da ‘boa sociedade’ e de suas penas de aluguel.”
Raoult possui trabalhos importantes publicados sobre o mimivírus, um vírus gigante descoberto por sua equipe e sobre vírus que infectam outros. Também tem trabalhos sobre bactérias ligadas ao tifo. Não caiu de paraquedas nessa história. Mas, em 2006, ele e sua equipe foram suspensos por um ano pela American Society for Microbiology, nas revistas editadas pela sociedade, por suspeita de fraude. O caso foi revelado pela revista Science, em 2012.
Um ano depois, Raoult resolveu se envolver em uma encrenca científica ao expor seu ceticismo sobre as mudanças climáticas. Disse então que as previsões sobre o aquecimento global eram absurdas. Também afirmou que o buraco na camada de ozônioestaria resfriando o globo.
Controverso sobre vacinas
Em 2018, publicou o livro La Vérité sur les vaccins (A Verdade Sobre as Vacinas) e voltou a causar polêmica. Na obra, ele critica a política de vacinação obrigatória da França. Diz ter pouca valia vacinar contra sarampo e poliomielite, pois a primeira é uma doença rara no país e outra, erradicada. Advoga, em vez disso, que o governo desenvolva vacinas para a gripe, a catapora e o rotavírus.
De 2011 até 2018, o país registrou, graças à vacinação, 5,3 mil casos de sarampo após ser atingido por uma epidemia de 2008 a 2011 (22 mil casos). Para quem contestava Raoult, afirmando que a alta taxa de imunização protegia os franceses da volta das doenças, ele dizia que as vacinas atuais estavam ligadas a doenças que existem só em países que não vacinam a população. Não teve sucesso.
Mas na semana passada conseguiu que o ministro da Saúde, Olivier Véran, permitisse que a hidroxicloroquina fosse dada a pacientes de hospitais. E para conduzir os trabalhos científicos sobre a doença (37.575 infectados e 2.314 mortos na França), nomeou uma comissão liderada por Françoise Barré-Sinoussi, Nobel de Medicina em 2008. Ao assumir, ela pediu “prudência” com a hidroxicloroquina.
Raoult, que era da comissão, afastou-se. Em artigo no Le Monde, denunciou conflitos de interesses entre cientistas e a indústria farmacêutica e criticou quem viu inconsistências em seu estudo: “Ninguém testa paraquedas dando a um grupo de controle sacos vazios para pular.” Por fim, comparou a covid-19 ao ebola. “Não se dá placebo a pacientes de uma doença que mata 30%.” A batalha acadêmica está apenas no começo.
O Estado procurou por e-mail os pesquisadores citados, mas não obteve resposta. Também buscou Raoult. Perguntou sobre como estava a pesquisa com a hidroxicloroquina e sobre as reações ao seu estudo nos mundos político e científico. Também não houve resposta.
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