A mãe disfarça a preocupação ao ouvir a pergunta: “mãe, o que é coronavírus?”. Ela responde: “é só uma tosse, lá longe”. A voz maternal vinha mansa em uma tentativa de proteger o pequeno da típica angústia dos que esperam pelo pior.
Esse estado de espírito de quem teme adoecer e morrer ou perder pessoas queridas encontra espelho em versos da canção "Gimme Shelter", dos Rolling Stones. Todos os membros do grupo nasceram durante a Segunda Guerra Mundial, em um país que estava mergulhado no conflito. É bem provável que algum deles, ainda molecote, perguntou o que seria guerra. E, de alguém que vivera os horrores, ouviu a resposta, que futuramente seria versificada: “guerra, criança, é só um tiro lá longe”.
Para uma criança pequena, a resposta só deixará de ser adequada se um dia o cheiro da pólvora chegar às suas narinas.
Apenas os que sentiram o odor dos explosivos detonados e os que perderam a saúde ou parentes pela infecção poderão dizer se há um exagero em comparar o temor da Covid-19 ao do reencontro bélico. Entretanto, pareada a esta questão existe uma outra que está no âmago da Organização Mundial de Saúde: a preocupação sobre a gravidade da próxima epidemia.
Pandemias surgem quando um vírus que vive em espécies animais diferentes do homem adquire mutações críticas. Assim, com novas características, cepas destes microrganismos tornam-se capazes de infectar humanos e serem transmitidos por nós. Foi desta forma que as pandemias, como a aviária de 1999, a febre suína H1N1 de 2009, a SARS de 2002/3 e a atual SARS-CoV-2 surgiram.
Estas doenças infecciosas têm a seu favor o enorme fluxo de pessoas entre continentes, característica de nossa época que facilita o contágio em nações distantes. Portanto, é real a expectativa de um dia vir uma nova onda virótica equivalente à gripe espanhola de 1918/19, que deixou 40 milhões de pessoas mortas, número que só as piores guerras provoca.
Enfrentamos uma situação crítica, mas parece que não será desta vez que reeditaremos a maior tragédia infecciosa do século passado. Existem grandes diferenças entre as duas pandemias: a gripe espanhola matava mais os jovens, enquanto a Covid-19 mata mais os idosos e as pessoas de saúde previamente debilitada. Temos também mais recursos tecnológicos para tratamentos e divulgação de ciência.
O medo em relação a 1918/19 trouxe lições sobre eficácia de medidas públicas contra a pandemia. Uma delas foi relembrada pelo historiador John M. Barry em artigo publicado no The New York Times: a verdade deve ser dita, não importa o quanto dura seja. Populações que receberam mentiras de seus governantes tiveram mais isolamento e mais mortes. Em São Francisco, nos Estados Unidos, líderes informaram a população, o que mitigou o impacto da catástrofe.
Além de campanhas de informação, outras atitudes foram utilizadas para abrandar a catástrofe, como fechamento de escolas, igrejas e espaços sociais. As cidades que prontamente adotaram estas intervenções reduziram o número de infectados. Contudo, a doença recrudesceu quando as restrições foram abolidas. Era a transmissão rebote.
Na China, berço da Covid-19, para combater a infecção foram aplicadas medidas restritivas que forçam o afastamento de pessoas, que orientar na direção do distanciamento social e do isolamento das populações infectadas. Tais ações foram bem-sucedidas e resultaram no fim da transmissão local do novo vírus. Infelizmente, ainda paira o risco de transmissão rebote. O sucesso inicial da China encorajou outros países ameaçados pela pandemia a empregarem as rigorosas práticas.
Líderes da Coreia do Sul também atuaram prontamente e conseguiram reduzir a incidência diária da infecção. A exemplo dos chineses, fecharam escolas e universidades, mas não proibiram viagens. Agentes de saúde coreanos, em busca de infectados, aplicavam exames para detecção da Covid-19 em até 20 mil pessoas por dia em aeroportos e em postos móveis de atendimento. Dessa forma, conseguiram diagnosticar pessoas com poucos sintomas e até os assintomáticos, isolando os casos e promovendo quarentena.
Na contra mão, esteve a reação britânica que seguiu o slogan local de “Mantenha a calma e continue”. O primeiro-ministro Boris Johnson conduziu medidas mais seletivas de contenção, focadas na identificação de pessoas sintomáticas com Covid-19, rastreando os contatos e isolando as pessoas com exposição comprovada. Até a segunda semana de março, não demonstrara a menor intenção em proibir aglomerações, por isso nada fez para que vários eventos esportivos fossem interrompidos. Todavia, não deixou de alertar: "muitas famílias perderão entes queridos precocemente".
Passivo também, o conselheiro-chefe de ciência do Reino Unido repetiu em entrevistas que a saída da epidemia aconteceria quando 60% da população se recuperasse da infecção e, assim, haveria "imunidade do rebanho".
Alguns leram nas entrelinhas que havia um convite para a população se resignar com um grande número de mortes que aconteceria em poucas semanas. No entanto, o “cheiro da pólvora” era trazido por ventos vindos da Itália, país com o recorde da letalidade viral. Alguns, ao farejarem a tragédia, cancelaram eventos, como partidas de futebol e rúgbi.
A postura dos dirigentes britânicos mudou após publicação de um modelo matemático construído sobre bases clínico-epidemiológicas da Covid-19. Em simulações numéricas apontaram que a quantia de pessoas infectadas que necessitarão de cuidados em UTI excederá em muito a capacidade do serviço nacional de saúde. O mesmo modelo previu que o fechamento de escolas e universidades ajudaria a atenuar o pico da epidemia, o que daria certo fôlego aos hospitais.
As experiências chinesa e coreana demonstraram que é possível, em tempo curto, reduzir o número de pessoas infectadas. Porém, existe o risco de retorno de transmissões quando as medidas restritivas forem relaxadas. Se isso acontecer, as ações deverão ser reintroduzidas e uma forte vigilância deverá ser mantida até que uma vacina eficaz possa ser utilizada.
Além disso, não sabemos como a pandemia se portará em nações que demoraram a adotar ações mais contundentes, como a Inglaterra. E ainda não temos certeza se os benefícios anti-epidemia das medidas de isolamentos perdurarão ao longo de meses.
Existem questões éticas, econômicas que devem ser consideradas frente à adoção de medidas de distanciamento de pessoas. A supressão de contato tem custo elevado, pode provocar falência e desemprego. Não obstante, pode causar prejuízos para o bem-estar e outros riscos de saúde, como adiamento de tratamentos médicos não tão emergenciais assim.
Em países como o nosso, repleto de favelas sem acesso a saneamento básico, os desafios serão ainda maiores. Lembremos que nem sempre a Covid-19 é apenas uma tosse lá longe. O temor é real.
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