Sérgio Augusto, O Estado de S.Paulo
28 de março de 2020 | 03h00
Praticamente tudo o que vemos agora é pela TV, pela internet ou pela janela mesmo. Imaginem como estaríamos anos atrás, nos informando só pelo rádio. O que me leva a supor que a maior paranoia, depois da contaminação pela covid-19 e sua possível mutação, é que a internet, de tão sobrecarregada, caia e não se reerga.
Por outro lado, saber demais sobre o que está acontecendo pode gerar neuroses, angústia e depressão. E o que é saber demais ou de menos numa guerra? Revelou-se na quinta-feira que nove em cada dez casos de covid-19 não são detectados no Brasil. O que fazer: bloquear o noticiário (e arriscar perder alguma informação fundamental, de utilidade pública e privada) ou promover uma alienação terapêutica, ventilando a cabeça com abobrinhas espirituais, livrescas e cinematográficas?
Talvez seja recomendável evitar, por inúteis ou irrelevantes, as análises e profecias mais pessimistas, como as do economista Nouriel Roubini, apelidado de “Doutor Catástrofe”, sobretudo porque ele costuma acertar todas. Roubini previu a crise econômica de 2008 com três anos de antecedência e está mais do que pessimista com os estragos imputáveis à covid-19: recessão persistente, com mais de US$ 2 trilhões de perdas em créditos e uma crise bancária sistêmica. Desculpem o spoiler.
Outra recomendação: não se deixar envenenar por teorias conspiratórias e alopradas, do tipo “o novo coronavírus foi inventado em laboratório pela China visando a destruir o sistema capitalista” ou “os EUA espalharam a covid-19 para evitar que a China se torne a primeira economia mundial”.
É bom lembrar que a pandemia de 1918 originou-se no Kansas, mas virou Gripe Espanhola porque a Espanha foi o único país que, diferentemente dos EUA e do resto da Europa, não censurava o noticiário sobre a devastação causada pela doença: cerca de 500 milhões de infectados, um quarto da população mundial na época.
As pessoas tendem a acreditar naquilo que gostariam que fosse verdade, que corresponda aos seus desejos confessáveis e inconfessáveis. Uma amiga ligou para me dar em primeira mão a notícia de que o presidente fora testado positivo. “Minha empregada ouviu na Globo News.” A empregada, que, aliás, deveria ter sido temporariamente dispensada do serviço sem perda salarial, para proteger-se junto aos seus, afinal reconheceu ter ouvido errado e guardou para si o “wishful thinking”.
Durante a primeira fase da quarentena conheci virtualmente muita gente bacana empenhada em aliviar as limitações do confinamento. Um personal de Nova York passou a oferecer ginástica de grupo aos vizinhos. A italiana Antonietta Orsini fez o mesmo da varanda de seu apartamento em Roma. Vi shows vocais, instrumentais e coreográficos – em janelas e terraços. Recebi dicas sobre improvisadas livrarias virtuais, com farta oferta de leitura.
Encantei-me particularmente com o exemplo de um poeta italiano, Franco Arminio, 60 anos, que no segundo fim de semana de março divulgou o número do seu celular nas mídias sociais e, identificando-se como “velho hipocondríaco”, se ofereceu para conversar com quem sentisse necessidade de espantar a solidão da quarentena. Prontificou-se a ficar de plantão diariamente, das 9h ao meio-dia, até 3 de abril, fim oficial da quarentena italiana, que no entanto pode continuar.
A receptividade foi quase instantânea. Quando descoberto e entrevistado por um correspondente do Washington Post em Roma, Armínio já recebia mais de uma centena de chamadas diárias de todas as regiões da Itália e do exterior. “A maioria se sente solitária, insegura, atormentada pelo medo”, disse o poeta, que não esconde de nenhum dos interlocutores que também está com medo. “Eles precisam mais de um companheiro de sofrimentos do que de um terapeuta.”
Foi por um medo crescente da agitação urbana e das consequências físicas e psíquicas de seus deslocamentos como palestrante (passava 25 dias por mês na estrada), que Armínio trocou Roma pela comuna de Bisaccia, no Avelino, onde aproveita o confinamento para ler Kafka, namorar a paisagem e ruminar sobre o tema mais presente em sua poesia: o medo da morte.
“As ligações me dão energia criativa”, diz. Livros, solidão e as ameaçadas dádivas da natureza são os assuntos mais abordados nas conversas, inevitavelmente sombreadas pelo avanço recrudescente da pandemia.
Nos primeiros dez dias, Armínio conversou com um ministro, dois senadores, um músico, um apicultor, um estudante de medicina forçado a exercer a profissão antes de se formar e outro universitário que sofre por não ter ideia de quando poderá abraçar os pais novamente. Conheceu ainda uma viúva que se vangloriou de ter finalmente aprendido “a viver consigo mesma” e outra, de 76 anos, residente na napoleônica ilha de Elba, cuja libido, adormecida havia alguns anos, fora “na pior hora” reacendida pelo distanciamento social obrigatório.
Depois do quarto dia de reclusão, as pessoas começam a perguntar sobre o que lhes pode acontecer. Raros não esperam pelo pior. Muito menos Armínio: “A Itália não está equipada, nem economicamente nem do ponto de vista emocional. Mesmo depois de o país diminuir as severas restrições vigentes, passaremos por uma fase cinzenta, em que o risco ficará reduzido, mas ainda presente, e as pessoas continuarão preocupadas, tensas, irmanadas no espanto e necessitadas de alguém para conversar. Algumas, tenho certeza, vão me ligar de novo.”
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