Tenho acompanhado diversas iniciativas —que admiro muito— de pessoas arrecadando álcool em gel e coisas assim. Realmente é fundamental, e ainda bem que as pessoas estão se mobilizando. O buraco, contudo, é mais embaixo. A maior parte das favelas não tem nem esgoto. As fezes e a urina correm a céu aberto e entram em contato com moradores, crianças, idosos.
Vi o impressionante documentário “Corona Virus”, que mostra a tragédia na China. Uma imagem me chamou atenção: um funcionário do governo todo encapado pulverizando as ruas e bocas de lobo. Uma pessoa no filme deduz que é para isolar o esgoto. Fica a pergunta: esgoto pode transmitir a doença?
Perguntei a diversos médicos se o coronavírus pode ser transmitido pelo esgoto a céu aberto. Nenhum soube me garantir —nem que sim, nem que não. Acredito que este é um ponto ainda a ser investigado.
O Sars-CoV-2 já foi encontrada em fezes, mas, segundo o CDC (Centro de Controle de Doenças, do governo americano), não se sabe se o vírus localizado nelas é infeccioso. Até agora não houve casos registrados de transmissão oral-fecal. O centro diz que há a possibilidade de que a Covid-19 seja transmitida pelo esgoto, mas considera baixo o risco de transmissão. Não há casos registrados disso até o momento, mas, segundo o CDC, essa informação deve ser atualizada quando houver dados mais concretos. O centro, no entanto, aponta que o Sars-CoV-1, um tipo mais antigo de coronavírus, já foi detectado em esgoto sem tratamento depois de um período entre 2 e 14 dias. Durante o surto da Sars em 2003, houve casos registrados de transmissão através de esgoto evaporado. O órgão americano sugere que o sistema de cloração seria suficiente para inativar os coronavírus —justamente o que as favelas brasileiras não têm. Água encanada é fundamental para a higiene.
Se há dinheiro para dar isenção fiscal a igrejas e se há dinheiro para encarcerar milhares e milhares de pessoas (das quais boa parte são vítimas da tragédia social), há dinheiro para dar uma vida digna aos excluídos. É importante que a sociedade se mobilize, mas pobre não precisa de esmola, e sim de acesso e dignidade. Que tal aproveitarmos este momento de crise para levar saneamento básico às favelas do Brasil? E se toda favela tiver pelo menos uma escola e um posto de saúde? Seria uma espécie de Plano Marshall brasileiro para reativar a economia, criar uma base social e mudar o país.
Em 2018, o total da população com acesso à água tratada era de 83,6%, segundo pesquisa do Instituto Trata Brasil. Pode parecer muito, mas pense no que estes quase 20% representam num pais de dimensões continentais. Há ainda o fato de que, segundo a mesma pesquisa, apenas 53,2% tinham acesso à coleta de esgoto. Além do potencial risco de transmissão, não se pode ter higiene —fundamental no combate à pandemia— sem acesso a água e esgoto devidamente tratados.
Alguém vai falar: mas de onde virá o dinheiro? Amplos setores da economia lucram e muito no Brasil. Lucros bilionários. A lista de bilionários no Brasil é imensa. Temos de todos os tipos, de banqueiros a bispos. Somos uma espécie de Belíndia, um misto de Bélgica com Índia, como um dia disse o economista Edmar Bacha. Pergunto a eles: o que é possível comprar com 1 bilhão que 500 milhões não compram?
Está na hora de cada um fazer a sua parte, mas que fique claro qual parte e quais pessoas e organizações podem de fato salvar o Brasil de uma tragédia social sem precedentes. Quem pode fazer a diferença de verdade nesta hora não pode enganar sua consciência doando uma cesta básica e um pacote de feijão achando que está fazendo a diferença. O Banco Itaú já deu o exemplo: fez uma doação de R$ 150 milhões.
É um excelente começo. A todos os que não fazem parte da turma do bilhão e do grupo dos centenas de milhões, fica aqui meu registro de admiração total aos seus esforços: do álcool em gel à cesta básica, mas não vamos deixar barato e cobrar de quem pode, para, de fato, fazer a diferença.
Colaborou Artur Andrade, cineasta
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